Genes e células são pródigos em fazer batota. Os corvos emitem vocalizações de falso alarme para afastarem os rivais. As sarigueias fingem-se de mortas quando são perseguidas por um predador. Se a Natureza é um habitat privilegiado para as imposturas, Lixing Sun, zoólogo e professor e investigador na Central Washington University, evidencia o modo como a mentira é um poderoso catalisador da disputa evolucionária. O jogo entre vigarista e vigarizado origina uma complexa teia biológica, omnipresente na sociedade humana, explorado em “Os Mentirosos da Natureza e a Natureza dos Mentirosos”.

Dos embustes inovadores às fake news e desinformação, o autor combina as descobertas científicas mais recentes com um número elevado de exemplos sugestivos a referências pop bem conhecidas do grande público. Em jeito de pré-publicação, antecipamos alguns excertos do sétimo capítulo desta obra com a chancela da Temas&Debates.

CAPÍTULO 7
Os Mentirosos Que Mentem a Si Mesmos

Quando sabes uma coisa, manter que sabes; e quando não sabes uma coisa, admitir que não sabes — é isso o conhecimento.

— CONFÚCIO

O significado da frase «Conhece-te a Ti Mesmo», inscrita no templo de Apolo em Delfos, tem inspirado um animado debate entre os estudiosos da Antiguidade Clássica. Mas a América só reconheceu a verdadeira importância do ditado depois da fundação no Minnesota, em 1974, da povoação a que foi dado o nome de Lake Wobegon. Não obstante ter apenas 900 habitantes, a vila era especial porque «as mulheres eram fortes e os homens bem-parecidos e as crianças acima da média», no dizer de Garrison Keillor.

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Keillor confessou em 2014 que tinha inventado a vila e os respetivos habitantes para o segmento «News from Lake Wobegon», do seu programa de rádio A Prairie Home Companion, transmitido por centenas de estações públicas. Durante 42 anos, de 1974 a 2016, milhões de pessoas riram à gargalhada com as histórias de Lake Wobegon, onde as pessoas pensam muitas vezes que são melhores do que na realidade são e fazem coisas loucas para lá das suas capacidades.

Apesar de ser um comediante, Keillor não estava exatamente a brincar. As pessoas da maior parte das vilas e pequenas cidades não são assim tão diferentes dos habitantes de Lake Wobegon. O efeito «acima da média», conhecido em psicologia como superioridade ilusória, está presente em todos os aspetos da nossa vida. Por isso o programa foi tão popular durante décadas. Na realidade, as histórias ficcionadas que Keillor contava pareciam tão autênticas que muitos dos ouvintes acreditavam que Lake Wobegon era real. Aparentemente, muitos de nós têm dificuldade em definir os limites do seu conhecimento e capacidades e tendem a sobrestimar ambos; ou seja, enganamo-nos a nós mesmos.

A prevalência da autoilusão é verdadeiramente impressionante. No que respeita à saúde individual, por exemplo, a maior parte das pessoas acredita que tem um estilo de vida mais saudável e por isso vai viver mais tempo do que as outras2. Mais de 90% acreditam que são melhores condutores do que a média3. No que respeita a competências sociais, 70% dos estudantes do ensino secundário consideram-se acima da média em termos de liderança, e 25% situam-se descaradamente no 1% do topo4. Na mesma linha, a maior parte das pessoas exagera a sua popularidade e inflaciona o número de amigos5. No que respeita a desempenho académico e profissional, 87% dos estudantes julgam-se melhores do que a média dos seus pares, e mais de 90% dos membros da faculdade situam-se a si próprios na metade superior em termos de capacidade de ensino6. Pode dizer-se o mesmo dos advogados que se julgam capazes de ganhar qualquer causa e dos corretores da bolsa que se consideram os melhores do ramo.

Sob o feitiço da autoilusão, as pessoas exageram os seus rendimentos, atração física, competências técnicas, dotes biológicos e carácter moral. Gabam-se muitas vezes sem ter consciência disso, mostrando apenas as suas facetas positivas na escola, no emprego, online. Quantos dos seus amigos do Facebook, por exemplo, postam imagens ou vídeos dos aspetos negativos das suas vidas — como ter sido despromovido, ter problemas financeiros ou terem-lhe sido postos os patins numa relação?

A autoilusão leva-nos muitas vezes a atribuir êxitos aos nossos esforços, competências ou inteligência, mas desculpamos os fracassos assacando-os a causas externas ou a problemas alheios. «Foram cometidos erros», podemos afirmar quando as coisas não nos correm de feição, em vez de reconhecer o simples facto de que «errámos», ou «falhámos». Mesmo quando não há ninguém para arcar com as culpas, insistimos em procurar um bode expiatório: dividimo-nos em personalidades passadas e presentes, e então admitimos que o nosso antigo eu não se saiu muito bem, mas que o nosso eu atual está a portar-se muito melhor. Agora somos outra pessoa.

A mesma tendência narcisista torna-nos mais parecidos com as imagens que vemos num espelho do que com as que são captadas numa fotografia, porque só nós vemos aquilo que o espelho reflete, ao passo que as fotografias podem ser vistas por outros10. Pela mesma razão, detetamos mais depressa a nossa imagem quando ela é artificialmente trabalhada de forma a parecer mais atraente. Ao que parece, a maior parte de nós vive mais ou menos numa mentira.

A autoilusão é tão comum na América que Mitt Romney usou o slogan político «Junte-se aos 1% [de americanos mais ricos]» para apelar aos eleitores durante a campanha presidencial de 2012. (Claro que Romney não foi exceção. A maior parte dos slogans de campanha — desde o «Sim, Podemos» de Obama ao «Tornar a América Outra Vez Grande» de Trump — servem a mesma função: aumentar o moral e a autoconfiança dos eleitores.) Claramente, muitas pessoas são incapazes de reconhecer, e muito menos admitir, o teto das suas capacidades. (Veremos mais adiante que as mulheres são mais inclinadas do que os homens a menorizar as suas competências.) De outro modo, como poderia a maior parte das pessoas situar-se acima da média — a um grau em que a própria palavra «média» perde o seu significado estatístico?

Neste capítulo vamos tentar explicar porque é que nós, os humanos (e talvez outros animais também), nos enganamos a nós mesmos, quão prevalente e diversa é a autoilusão na sociedade, que ramificações positivas (como a promoção da autoestima e o efeito placebo) e negativas (como o viés de confirmação e o excesso de autoconfiança) tem e como podemos ultrapassar a presunção.

*

Desde os anos 1990 que os psicólogos se têm empenhado num grande esforço para compreender a autoilusão. Um dos estudos mais notáveis foi realizado por Justin Kruger e David Dunning, da Cor- nell University. Os dois recrutaram 65 cobaias humanas — estudantes de Psicologia — e pediram-lhes que avaliassem as suas capacidades respondendo a perguntas sobre humor, gramática e lógica antes de conhecerem as suas verdadeiras pontuações. E aconteceu que os participantes menos capazes se pontuaram muito acima do seu desempenho real. Esta distorção cognitiva foi pior nos incluídos no quarto inferior, que se sobreavaliaram em mais de 45% para se situarem perto do 60.º percentil (Fig. 7.1).

Kruger e Dunning publicaram os resultados da sua pesquisa numa comunicação de 1999, «Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one’s own incompetence lead to inflated self-assessments». Esta ignorância da própria ignorância ficou conhecida como efeito Dunning-Kruger, ou, mais pedantemente, metaignorância. É talvez mais fácil recordá-lo numa linguagem menos sofisticada: os idiotas não sabem que são idiotas15. A autoilusão é a razão por que existe tantas vezes um fosso significativo entre a avaliação que fazemos de nós mesmos e a avaliação feita pelos nossos pares. É, nas palavras de Dunning, «um duplo fardo» que impede muita gente de saber por que razão faz asneira e comete erros, sobretudo se tem um mau desempenho16. Mas se iludirmo-nos a nós mesmos não nos faz bem, porque continuamos a fazê-lo?

Curiosamente, a primeira pessoa a fazer um esforço sério para responder a esta pergunta não foi um psicólogo e sim um biólogo evolucionista, Robert Trivers, que já se tinha apercebido do dilema nos anos 1980. A autoilusão tem um custo óbvio. Pode levar a desastres familiares, desastres pessoais e românticos, acidentes de aviação ou mesmo à guerra — a Segunda Guerra do Golfo ficou como um exemplo notável. Para que a autoilusão prospere na evolução, pensou Trivers, tem de haver algum benefício biológico que compense o custo. De que maneira contribuiu no passado para aumentar as probabilidades de sobrevivência e reprodução da espécie humana?

Como sabemos, quando as pessoas mentem, muitas vezes traem a sua desonestidade através do comportamento, sobretudo através da expressão facial. Mentir é difícil quando estamos conscientes de estar a inventar uma história falsa. Deve-se isto ao facto de o nosso cérebro ser fraco em multitarefas. Na minha experiência pessoal, não tenho dificuldade em falar inglês ou chinês, mas apenas uma língua de cada vez. Se alternar rapidamente entre as duas, a minha fluência em ambas é muito prejudicada. Foi o que aconteceu quando servi de intérprete num simpósio conjunto sino-americano em Hefei, na China. Fartei-me de gaguejar quando a minha mente ficava momentaneamente em branco ao tentar encontrar palavras ou expressões exatas na outra língua17.

O mesmo se pode dizer da mentira intencional. Quando se mente com plena consciência do que se está a fazer, obriga-se o cérebro a desempenhar simultaneamente os papéis de Dr. Jekyll e Sr. Hyde. Esta tarefa é muito mais difícil do que encontrar paralelis- mos entre duas línguas: é preciso lidar com a contradição entre a realidade e as palavras que saem da nossa boca. Para amordaçar a verdade, o cérebro tem de suportar uma carga extra, conhecida como carga cognitiva, o que pode levar-nos a exercer um controlo excessivo sobre o que normalmente faríamos sem problemas. Como resultado, ficamos tensos e o nosso comportamento torna-se demasiado rígido. Falamos num tom mais agudo, fazemos pausas mais longas no discurso, agitamo-nos, gesticulamos e piscamos os olhos menos do que o normal. Estas e outras características, como expressões faciais e comportamentos invulgares, podem facilmente trair-nos.

A melhor ilustração da carga cognitiva é a deteção de mentiras na investigação criminal através do método conhecido como aná- lise linguística forense. Os criminosos — mesmo aqueles que ensaiaram cuidadosamente as suas mentiras — denunciam-se com frequência durante o interrogatório. Podem estar extremamente nervosos porque têm plena consciência dos seus crimes, pelo que utilizam termos diferentes dos que habitualmente utilizariam. Os padrões de discurso também se desviam do normal, com menos qualificativos e mais palavras negativas. Quando pressionados, dei- xam muitas vezes escapar o que estão a tentar esconder. Aqui fica um exemplo.

A 7 de outubro de 2007, Christopher McNabb e Cortney Bell, um casal da Geórgia, queixaram-se à polícia de que a sua filha Caliyah, com duas semanas, tinha sido levada de casa. O casal pediu ajuda à comunidade. O que se segue é parte da conversa entre marido e mulher quando foram deixados sozinhos numa sala de interrogatório na esquadra:

«Eu amava-a. Eu amo-a. Era o meu bebé», diz Christopher a Cortney.

«Acalma-te. Porque fizeste aquilo?»

«O que foi que eu fiz?»

«Fizeste-o agora mesmo.»

«Mas fiz o quê?»

«Disseste “amava-a”.»

«Não sei, Cortney. Onde está ela? Pensas que tive alguma coisa que ver com esta merda?»

«No meu coração, não. Só espero que não tenhas. O coração diz-me que não.»

Nenhum deles se apercebeu de que duas palavras na conversa alertaram a polícia. Está a vê-las? O uso do pretérito perfeito, «amava-a» e «era», no início do diálogo, indicava que ambos sabiam que a filha bebé já estava morta antes do interrogatório da polícia. Apesar de Christopher ter corrigido rapidamente o seu deslize freudiano, as potenciais consequências deixaram Cortney imediatamente alarmada.

A polícia revistou o bosque perto da caravana do casal e encontrou o corpo de Caliyah num saco da Nike atado com um cordão. Numerosas fraturas cranianas apontavam para um brutal espancamento até à morte. Veio a saber-se que os dois carregavam um historial de violência e apurou-se que tinham matado a bebé quando estavam drogados com metanfetaminas. Foram acusados de vários crimes de agressão e homicídio, e, a 14 de maio de 2019, Christopher McNabb foi condenado a prisão perpétua e Cortney Bell a uma pena de 30 anos19.

Não é preciso pormo-nos na pele de um criminoso para compreender a carga cognitiva. Os conflitos que resultam de contradições internas são facilmente identificáveis pelas pessoas na nossa vida de todos os dias, sobretudo aquelas que nos conhecem bem. Quantos de nós, por exemplo, tentaram sorrir quando não estão felizes? Essa expressão facial forçada é conhecida como sorriso social, por oposição ao honesto sorriso Duchenne (Fig. 7.2), assim chamado em homenagem ao neurologista francês do século xix Guillaume Duchenne, que estudou as expressões emocionais.

Há alguma maneira de aliviar a carga cognitiva de modo a podermos ser melhores mentirosos? A resposta é sim, e a receita é acreditar nas nossas mentiras. Se o fizermos, a nossa mente deixará de ser sobrecarregada pelo conflito entre o que é real e o que é fabricado. Em vez de nos traírem, as nossas expressões e comportamentos tornam-se cúmplices das nossas mentiras pelo simples facto de se manterem normais. Esta linha de pensamento levou Trivers a teorizar que «mentimos a nós mesmos para melhor mentir aos outros»20. Por outras palavras, a autoilusão evoluiu para «tornar-se o embuste mais difícil de detetar», escreve Trivers. «A autoilusão acontece quando a mente subconsciente é mantida na ignorância. A chave para definir a autoilusão é, pois, que a informação verdadeira seja preferencialmente excluída do consciente e, se guardada, o seja em diversos graus de inconsciência.»

Além disso, mesmo que a falsidade seja desmascarada, é mais fácil defender a nossa inocência e honestidade se nós próprios acreditarmos nela. Se não tivermos a intenção de mentir, não perderemos a credibilidade. Assim, mentirmos a nós mesmos, contrariamente a mentir aos outros, tem pouca consequência social.

Na realidade, a mente funciona com menos atritos quando acreditamos nas nossas próprias mentiras. Exames de imagiologia feitos ao cérebro mostram que, quando uma pessoa se vê como mais desejável do que as outras (ou seja, quando está sob o efeito da autoilusão), o seu córtex pré-frontal médio experimenta um nível mais alto de atividade22, ao passo que o córtex orbitofrontal e o córtex cingulado dorsal anterior ficam inativos. Aparentemente, as atividades coordenadas nestas regiões do cérebro assumem o papel de «controlo cognitivo»23. Não deve constituir surpresa o facto de estas atividades cerebrais características rebentarem a escala num grupo de pessoas que têm uma visão grandiosa de si mesmas: os narcisistas.

(…)

A autoilusão pode ser reforçada por uma falha cognitiva: o viés de confirmação, uma expressão psicológica que designa a nossa prefe- rência por ideias e factos que estão de acordo com as nossas visões do mundo, evitando ou filtrando a informação que contradiz aquilo em que acreditamos. Esta parcialidade pode alimentar a autoilusão ao proteger a nossa autoestima, orgulho e ego. Mesmo quando os factos mostram o contrário, algumas pessoas continuam a ter a esperança de que as provas sejam falsas.

O viés de confirmação é um ponto fraco cognitivo que pode ser explorado em grande escala. Havia poucas pessoas que rivalizassem com as proezas de Frank Abagnale até que, em junho de 2016, apareceu em Londres «a Rainha das Criptomoedas», uma mulher de 36 anos chamada Ruja Ignatova (Fig. 7.4), como é relatado numa espantosa história da BBC76. Conhecida do público como Dra. Ruja, subiu à ribalta do mais prestigiado palco para a prática do ténis, a Wembley Arena, e anunciou ao mundo que uma nova criptomoeda, a OneCoin, seria «a Assassina da Bitcoin». «Dentro de dois anos», disse perante uma multidão frenética, «ninguém falará da Bitcoin».

Como acontece com todos os cultos que divinizam o dinheiro, as pessoas acreditaram nela e seguiram-na quando falava para multi- dões entusiasmadas em todo o mundo. Em menos de três anos, de 2014 a 2017, foram transacionados mais de 4,5 mil milhões de dólares em OneCoin. As pessoas despejavam o dinheiro que tanto esforço lhes custara a ganhar em pacotes vendidos pela empresa dela e calcu- lavam alegremente a sua riqueza enquanto viam subir o «valor» da OneCoin. Não só compravam a criptomoeda para si mesmas como também arrastavam amigos e familiares para esta «oportunidade de uma vida». A história da Dra. Ruja era tão convincente que até um vigarista especializado em esquemas de pirâmide, autoproclamado guru do marketing multinível77, se deixou convencer a investir dezenas de milhões de dólares na OneCoin, persuadido de que a sua riqueza poderia muito em breve ultrapassar a de Bill Gates.

Nenhuma destas coisas viria a acontecer. A verdadeira Dra. Ruja era uma discreta dona de casa alemã cujas elaboradas operações eram geridas por uma obscura empresa sediada num complexo de apartamentos em Sófia, a capital da Bulgária. As suas credenciais de mulher de negócios de topo vinham de um anúncio pago na contra-capa da edição búlgara da revista Economist. E o mais bizarro de tudo é que a tão falada criptomoeda OneCoin nunca sequer existiu.

Bjorn Bjercke, um perito norueguês em blockchain, detetou o cheiro de algo suspeito no frenesi do dinheiro rápido. Entrou em contacto com algumas das vítimas, alertando-as para a vigarice. Para sua grande surpresa, as tentativas de denunciar a fraude levaram-no muitas vezes a discussões aos gritos com os lesados, que recusavam acreditar no que ele dizia. Chegou até a receber ameaças de morte, aparentemente não só dos que lucravam com o esquema, mas tam- bém de alguns dos enganados. De facto, como poderiam as pessoas admitir a perda e seguir em frente depois de terem investido tanto dinheiro, juntamente com a sua crença, paixão, reputação e orgulho? A empresa por trás da OneCoin conhecia bem as fraquezas humanas e instava os «acionistas» a calar os céticos e «trolar» os crí- ticos da OneCoin. Isto foi particularmente desencorajador para Bjercke, que julgava estar a fazer um favor à sociedade. «Se soubesse aquilo por que ia passar», disse numa entrevista, «nunca teria feito a denúncia».

Só em outubro de 2017, quando a Dra. Ruja não compareceu em Lisboa para uma muito propalada apresentação pública, as pessoas começaram a compreender que não passava tudo de uma grande mentira. A partir de então, tornou-se uma fugitiva. A 5 de novembro de 2019, o irmão, Konstantin Ignatov, confirmou a burla ao depor num tribunal de Nova Iorque, e declarou que até ele tinha sido vigarizado pela irmã. A peça da BBC termina assim:

A Dra. Ruja identificou vários pontos fracos da sociedade e explorou-os. Sabia que haveria pessoas suficientemente desesperadas, ou suficientemente gananciosas, ou suficientemente confusas, para apostar na OneCoin. Compreendeu que é cada vez mais difícil distinguir a verdade da mentira quando há tanta informação contraditória a circular online. Percebeu que as defesas da sociedade contra a One-Coin, os legisladores, a polícia, e também nós, nos média, teríamos dificuldade em compreender o que estava a acontecer.

Se alguma coisa a história da OneCoin nos diz é que, na Era da Informação, a informação pode prejudicar-nos — a menos que tenhamos a certeza da sua exatidão e fiabilidade. O viés de confirmação — e a de outro modo subtil e inocente preferência pelo que gostamos de ouvir — emergiu como perigo de primeira grandeza. Na realidade, a burla da OneCoin só foi tão espetacularmente bem-sucedida graças à metódica exploração que fez do viés de confirmação das pessoas. Encorajava-as a escolher informação falsa que apelava às suas preferências e a rejeitar informação verdadeira que as protegeria do engano.

(…)

A quem podemos pedir ajuda, além dos sábios que, na sua maio- ria, já faleceram? Bem, uma possibilidade é recorrer a um grupo de pessoas vivas e que, estatisticamente, estão mais bem ancoradas na realidade objetiva: as mulheres. As mulheres são mais propensas a minimizar as suas próprias capacidades do que os homens, por vezes ao ponto de não conseguirem ver os seus pontos fortes89. Um estudo mostra que, em comparação com os homens, as mulheres se subava- liam em 13% no número de perguntas respondidas corretamente e em 17 pontos percentuais no que respeita ao desempenho90. A apa- rente insegurança das mulheres é muitas vezes confundida com falta de confiança. Tem sido estereotipada nas sociedades tradicionais orientais e ocidentais como uma fraqueza específica do género, moldando a crença popular, mas falsa, de que não se adequam a papéis de liderança. (Lembra-se da famosa apóstrofe: «Fragilidade, o teu nome é mulher!», no Hamlet de Shakespeare?)

Esta visão preconceituosa não podia estar mais distante da ver- dade. Admitamos que um pouco de dúvida sobre as suas capacida- des dá às mulheres uma melhor noção da realidade — são vítimas acentuadamente menos prováveis do efeito Dunning-Kruger. As qualidades que admiramos nos sábios — modéstia, humildade e ceticismo — permitem às mulheres uma compreensão mais pro- funda de como as coisas são verdadeiramente, essencial para tomar boas decisões. Falamos de qualidades que deveriam ser vistas como pontos fortes, não como fraquezas, em termos de liderança.

Esta teoria tem sido apoiada por dados. Nos anos 1990, a Cali- fórnia encorajou o recrutamento de mulheres para as administrações de empresas públicas. A medida destinava-se originariamente a pro- mover a igualdade de género. Mas passado algum tempo as pessoas começaram a reparar que as empresas que contavam com mulheres nos respetivos conselhos de administração tendiam a ter melhores resultados financeiros. Chamemos-lhe o mistério das administrado- ras. Será apenas um acaso?

A resposta é não, de acordo com uma meta-análise recente que relacionou os tipos de funções de liderança com o desempenho económico de uma empresa em 11 parâmetros. Embora o estudo confirme o impacte positivo da liderança das mulheres em geral, aponta para duas áreas específicas em que elas têm um desempenho claramente superior ao dos homens. Uma é as vendas, a outra a administração. No entanto, as diretoras executivas não conseguem brilhar mais do que os seus homólogos masculinos. Porquê? Aparentemente, os pontos fortes da liderança das mulheres destacam-se sobretudo na tomada de decisões coletivas92. Mas muitas vezes os diretores executivos tomam as decisões sozinhos. Embora as mulheres sejam tão competentes como os homens nestas posições de liderança, a sua vantagem única num cenário de grupo não emerge.

O mistério das mulheres nos conselhos de administração está, portanto, resolvido. Embora a liderança feminina não seja inferior à masculina em nenhuma categoria, não se apresse a assumir que pôr mulheres a liderar pode, por si só, melhorar a situação financeira da sua empresa. Um padrão estatístico não se aplica a empresas individuais. Se a sua empresa fosse a Hewlett Packard, por exemplo, lamentaria ter contratado como diretora executiva Carly Fiorina, a primeira mulher a dirigir uma empresa tecnológica de topo em 1999. Fiorina tomou tantas decisões erradas que a sua liderança causou à empresa a perda de metade do seu valor. O sofrimento só terminou quando foi destituída, em 2003.

Além disso, não há provas de que as mulheres se saiam melhor numa equipa totalmente feminina. Talvez a confiança continue a ser um fator importante para que as coisas sejam feitas com rapidez e determinação no mundo dos negócios. Estatisticamente, parece que uma mistura de homens e mulheres na liderança pode proporcionar os melhores resultados. Deste modo, consegue-se ter confiança suficiente, mas não excesso de confiança. Infelizmente, por enquanto, só 4% dos diretores executivos e 16% dos membros dos conselhos de administração das 500 empresas listadas pela Fortune são mulheres93, uma indicação de que estamos ainda longe de usar plenamente a vantagem psicológica das mulheres.

Chegados a este ponto, já passámos em revista uma grande variedade de modos de engano num amplo leque de organismos e descobrimos que todas as formas de engano são praticadas através do uso das «duas leis» — falsificar mensagens honestas na comunicação e explorar as falhas cognitivas, que são as bases biológicas respetivamente da mentira e do engano. Também tentámos enquadrar o engano humano na imagem mais vasta do mundo biológico com ênfase na sua diversidade, complexidade e unicidade. Antes de fecharmos a loja, temos ainda de responder a uma importante pergunta: que podemos fazer em relação ao engano?