O psiquiatra Daniel Sampaio, que durante o último ano integrou a comissão independente que estudou os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica em Portugal, elogia os bispos de Angra e de Évora, que esta quarta-feira anunciaram a suspensão preventiva de três sacerdotes que constavam da lista de alegados abusadores entregue aos bispos portugueses na semana passada.
Esses dois bispos, afirmou Daniel Sampaio em declarações ao Observador, “estão em linha o que foi recomendado pela comissão”.
“Estes bispos estão no caminho certo. Lamento que os outros não façam o mesmo”, acrescentou, sublinhando, no entanto, estar a falar a título pessoal e não em nome da antiga comissão, que cessou funções depois da entrega do relatório final. “Esta posição dos dois bispos renova a esperança”, adiantou ainda Sampaio, que no início da semana, numa entrevista ao jornal Público, se tinha mostrado dececionado com a reação da Igreja Católica ao relatório da comissão.
A reação de Daniel Sampaio surge poucas horas depois de dois bispos portugueses — o de Angra, D. Armando Esteves Domingues, e o de Évora, D. Francisco Senra Coelho — terem anunciado publicamente o afastamento de três sacerdotes sobre os quais recaem acusações de abuso sexual de menores, que foram identificados pela comissão independente e cujos nomes foram entregues aos bispos.
No caso de Angra, a diocese revelou que o bispo recebeu, da parte da comissão independente, uma lista de apenas dois nomes — isto, apesar de o relatório final da comissão dar conta de oito casos de alegados abusos no arquipélago dos Açores no período estudado. Desses oito, quatro referem-se a abusadores que já morreram (três padres e um leigo) e outros dois dizem respeito a casos que, depois do cruzamento de dados, não foram considerados “relevantes” pela comissão independente.
Restam, assim, dois nomes de alegados abusadores ainda no ativo na diocese: um padre da ilha de São Miguel e outro da ilha Terceira. Além desta informação, a diocese não forneceu publicamente quaisquer outros detalhes sobre os casos em questão.
“O bispo diocesano já falou com ambos e, em conjunto, acordaram que os sacerdotes em causa ficarão impedidos do exercício público do ministério até ao final do processo de investigação prévia, que já foi iniciado na Diocese e de acordo com as normas canónicas. Igualmente seguirá a participação ao Ministério Público”, lê-se num comunicado da diocese de Angra.
A diocese liderada por D. Armando Esteves Domingues sublinha, ainda assim, que “esta decisão não é uma assunção de culpa dos próprios nem uma condenação por parte do Bispo diocesano”.
“Trata-se de seguir aquilo que o Papa Francisco tem recomendado como norma e prática da Igreja em matéria de abusos, sobretudo depois da publicação do Vade-mécum sobre procedimentos para enfrentar casos de abuso de menores na Igreja”, sublinha a diocese açoriana.
Também na manhã desta quarta-feira, a arquidiocese de Évora, liderada pelo arcebispo D. Francisco Senra Coelho, anunciou em comunicado o “afastamento cautelar” de um padre identificado pela comissão diocesana como possível abusador. O arcebispo determinou também a abertura de uma investigação prévia, cujos resultados serão enviados para o Vaticano, como mandam as normas internas da Igreja, e anunciou também o envio de “toda a informação” sobre o caso para o Ministério Público.
No caso de Évora, a situação foi diferente. Segundo o comunicado enviado pela arquidiocese aos jornalistas, a comissão independente “fez chegar ao Arcebispo de Évora, no passado dia 3 de março, os nomes de alegados abusadores, referidos nos testemunhos recolhidos”. Essa lista incluía apenas dois nomes — mas só um deles ainda se encontra vivo, já que o outro morreu “há alguns anos” e, por isso, “o processo considera-se extinto”.
Quanto ao outro caso, a lista não incluía “nenhuma informação complementar e a investigação efetuada nos arquivos diocesanos não encontrou nenhuma denúncia ou inquirição prévias”.
Por isso, o arcebispo de Évora decidiu pedir à comissão independente “eventuais dados suplementares que permitissem iniciar a investigação”. Em resposta à arquidiocese, a comissão independente enviou esta terça-feira a informação de que o caso dizia respeito a “abusos ocorridos contra rapazes na década de 1980, no Seminário Menor”.
Com base nessa informação, o arcebispo determinou a abertura da investigação, o envio dos dados para o Ministério Público e ainda o “afastamento cautelar do sacerdote do ofício de pároco e de todas as atividades pastorais que incluam contacto com menores, sem prejuízo da sua presunção de inocência”.
Também esta quarta-feira, questionada pelo Observador, a diocese de Viana do Castelo confirmou que o bispo da diocese minhota, D. João Lavrador, recebeu uma lista das mãos da comissão independente, mas que não tem nenhum nome além do padre que já foi afastado em janeiro. Por isso, a diocese “não tem nada a acrescentar ao seu último comunicado sobre esta matéria no dia 23 de janeiro”, quando a diocese anunciou que tinha afastado um padre depois de receber uma queixa de abusos e de o padre, confrontado com a denúncia, ter confirmado os factos.
“Além do caso tornado público pela diocese de Viana não existe mais nenhum padre no ativo que conste do material entregue pela comissão independente”, confirmou fonte da diocese.
Outra diocese, a do Funchal, confirmou em comunicado que a comissão independente entregou ao bispo D. Nuno Brás Martins um total de quatro nomes “resultantes das denúncias recebidas por parte de eventuais vítimas de abusos sexuais no âmbito da Igreja”. “Apesar de nenhum daqueles nomes exercer atualmente qualquer ofício eclesiástico na diocese (um deles é mesmo desconhecido), a Diocese do Funchal não deixará de tomar a sério esta indicação e de procurar eventuais procedimentos canónicos e civis se aplicáveis no respetivo caso concreto”, lê-se no comunicado.
“A Diocese do Funchal pede perdão se em algum caso não foi capaz de proteger as vítimas e ao mesmo tempo reitera o seu empenho para que qualquer futura denúncia venha a conhecer o respetivo procedimento canónico e civil expressamente consignado para a proteção das vítimas”, diz ainda a diocese.
Reação ao relatório motiva divergências entre bispos
As decisões anunciadas esta quarta-feira pelas dioceses de Angra e Évora acontecem num momento particularmente delicado para a Igreja Católica em Portugal, cuja credibilidade foi posta em causa nos últimos dias devido à forma como a Conferência Episcopal Portuguesa respondeu ao relatório da comissão independente sobre os abusos de menores.
O relatório, divulgado publicamente em fevereiro, permitiu pela primeira vez traçar um retrato da realidade dos abusos na Igreja em Portugal, ainda que os números do documento sejam, segundo a comissão, conservadores: a partir de 512 testemunhos válidos, a comissão reconstituiu uma rede de 4.815 potenciais vítimas de abusos no contexto da Igreja entre 1950 e 2022.
Quando o relatório foi apresentado, a comissão prometeu também que entregaria aos bispos portugueses uma lista com os nomes dos alegados abusadores que ainda se encontravam no ativo e que foi possível identificar a partir dos testemunhos das vítimas — uma lista inicialmente estimada em cerca de 100 nomes.
A lista foi entregue na última sexta-feira, quando os bispos portugueses se reuniram em Fátima para uma assembleia plenária destinada a analisar o relatório e a decidir medidas concretas em resposta ao documento: cada bispo recebeu um envelope com a lista dos nomes que diziam respeito à sua diocese.
No final dessa assembleia plenária, porém, acabaria por estalar a polémica, quando o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, deu uma conferência de imprensa na qual não se comprometeu com o afastamento preventivo imediato de todos os alegados abusadores, algo que tinha sido pedido pelo psiquiatra Pedro Strecht, o coordenador da comissão independente, no dia em que apresentou o relatório final. “Não querendo ser Humberto Delgado… Obviamente, afastava-os”, disse Strecht, em resposta a uma pergunta sobre o que a Igreja deveria fazer com os suspeitos.
Na conferência de imprensa, D. José Ornelas usou uma expressão que causaria indignação nos membros da comissão: a ideia de que a Igreja recebeu uma mera “lista de nomes”, que seria difícil de investigar.
“É uma lista de nomes. Sendo uma lista de nomes, sem outra caracterização, torna-se difícil essa investigação, exige redobrados esforços”, disse Ornelas, que sublinhou que sem a identidade dos acusadores e sem dados concretos sobre os abusos é difícil investigar os casos, tanto que dificilmente se poderia afastar os suspeitos das funções apenas com base na lista: “Eu não posso tirar uma pessoa do ministério só porque chegou alguém que disse ‘este senhor abusou de alguém’. Mas quem foi que disse, em que lugar, onde? Tirar do ministério é uma coisa grave.”
As declarações de Ornelas foram lidas em vários setores, dentro e fora da Igreja, como uma forma de desacreditar não só os testemunhos anónimos das vítimas como também o trabalho da comissão independente, que validou a credibilidade dos testemunhos.
Pelo menos dois elementos da comissão independente vieram a público manifestar-se desiludidos com a reação da Igreja ao relatório. “Foi uma conferência de imprensa dececionante. A Igreja não se colocou do lado das vítimas”, disse o psiquiatra Daniel Sampaio numa entrevista ao Público. Já a socióloga Ana Nunes de Almeida, outro dos elementos da comissão, disse no podcast “Perguntar Não Ofende”, do jornalista Daniel Oliveira, que a conferência de imprensa de D. José Ornelas a deixou “perplexa” por ter sido uma “negação daqueles princípios básicos e dos resultados fundamentais que o relatório trouxe”.
A controvérsia adensou-se no domingo, quando o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, repetiu as palavras de D. José Ornelas e descartou a possibilidade de afastar os padres suspeitos sem que haja “factos comprovados, sujeitos a contraditório”. “Aquilo que nos foi entregue pela Comissão Independente foi uma lista de nomes. Se essa lista de nomes for preenchida por factos, tanto nós como as autoridades civis podemos atuar”, disse D. Manuel Clemente.
Questionado sobre a suspensão dos alegados abusadores, D. Manuel Clemente rejeitou a possibilidade e considerou que “essa é uma pena muito grave, é a mais grave que a Santa Sé poderá dar e é a Santa Sé que a poderá dar”.
“Se nós tivermos factos, e factos comprovados e sujeitos a contraditório, claro – nós estamos num país de direito e de leis – só pode ser feita pela Santa Sé, não é uma coisa que um bispo possa fazer por si”, frisou o patriarca de Lisboa.
As declarações de D. Manuel Clemente causaram uma nova onda de indignação pública e expuseram divergências internas na Igreja Católica. “Quando o cardeal-patriarca diz que a Igreja não tem dados não é verdade”, disse o psiquiatra Daniel Sampaio à Lusa. “Não é verdade que é só uma lista de nomes.”
Um dia depois das declarações de D. Manuel Clemente, o bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida, publicou um texto na página da arquidiocese de Braga a contrariar o que tinha sido dito pelo patriarca de Lisboa e a afirmar que os bispos podem suspender os padres de funções. “Pedir perdão é necessário, mas não é suficiente”, escreveu o bispo, sublinhando que é necessário “pôr em prática, sem hesitação” as normas internas da Igreja — normas essas que preveem expressamente a possibilidade de um bispo afastar preventivamente um padre suspeito de abusos durante a investigação.
Segundo o Código de Direito Canónico, como medidas cautelares o bispo “pode afastar o acusado do ministério sagrado ou de qualquer ofício ou cargo eclesiástico, e impor-lhe ou proibir-lhe a residência em determinado lugar ou território, ou proibir-lhe a participação pública na santíssima Eucaristia”.
Num texto em que ficam evidentes as diferenças de pensamento em relação aos posicionamentos de D. Manuel Clemente e D. José Ornelas, o bispo auxiliar de Braga faz até questão de colocar em maiúsculas a referência às medidas cautelares e à possibilidade de afastamento ou proibição de exercício do ministério.
Esta quarta-feira, as decisões dos bispos de Angra e Évora vieram provar cabalmente que os bispos têm a competência para afastar os sacerdotes suspeitos, bastando a vontade nesse sentido.
Já depois dos anúncios dos bispos de Angra e Évora, o presidente da CEP, D. José Ornelas, emitiu um comunicado a garantir que a Igreja quer ser “parte ativa na resolução desta dramática situação que é transversal a toda a sociedade”.
“Este é um ponto muito positivo, que vai ao encontro de algumas decisões tomadas na última Assembleia Plenária do episcopado português, e que já está a ter consequências práticas, desde logo na atuação por parte de algumas dioceses que receberam as listas elaboradas, com toda a competência, por parte da Comissão Independente e do Grupo de Investigação Histórica dos Arquivos Diocesanos e dos Institutos de Vida Consagrada”, disse Ornelas.
“Todos nos empenhamos, no possível e no impossível, para tornar transparente e verdadeira, esta investigação que, penso, não deixa ninguém indiferente. As medidas já tomadas, e que continuarão nos próximos dias, são sinal de um compromisso sério da Igreja em Portugal e de um total empenho em erradicar os abusos sexuais de crianças e jovens, porque isto é algo não só devastador para as vítimas, mas também completamente contraditório com aquilo que é a Igreja e com aquilo que é o seu papel, e daquilo que ela pretende fazer”, acrescentou.
O presidente da CEP não respondeu, porém, a um conjunto de perguntas mais detalhadas colocadas esta quarta-feira pelo Observador sobre esta questão.
Vítimas ficaram “indignadas” com reação da Igreja
Para Daniel Sampaio, a profusão de declarações dos últimos dias deixa bem clara a existência de divisões internas na Igreja. O psiquiatra que integrou a comissão independente sustenta também que os bispos não podem argumentar que não têm conhecimento concreto dos casos que dizem respeito às suas dioceses.
“A declaração do bispo José Ornelas não tem razão de ser nenhuma, ele escamoteia que houve reuniões dos historiadores em todas as dioceses”, diz Sampaio ao Observador. “É uma lista de nomes, mas não é o meu nome nem o seu, uns nomes vieram da comissão independente e outro do grupo de investigação histórica. Esses nomes foram trabalhados com os bispos. Os historiadores foram a Angra, tiveram uma reunião de trabalho que correu muito bem. Estiveram horas reunidos com a equipa de D. Manuel Clemente.”
Sublinhando que a lista de nomes não é uma lista de acusações, o psiquiatra destaca que a lista foi “trabalhada diocese a diocese e a prova disso é que já há dois bispos a tomar medidas, não é preciso resposta da Santa Sé para tomar medidas”.
Daniel Sampaio também deixa elogios ao bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida, classificando-o como “uma pessoa que tem estado no rumo certo” e lembrando a intervenção do bispo numa conferência organizada pela comissão independente, no ano passado, na qual D. Nuno Almeida afirmou que a Igreja não pode “tolerar a conspiração do silêncio” sobre os abusos.
Nas declarações ao Observador esta quarta-feira, o psiquiatra voltou a lamentar que a conferência de imprensa da Igreja na última sexta-feira tenha sido centrada na Igreja, e não nas vítimas, e criticou também o facto de os bispos pedirem mais dados, incluindo a identidade das vítimas, para investigar os casos. “Se não fosse o anonimato teríamos meia dúzia de testemunhos”, diz Daniel Sampaio. “Tivemos 512 porque foram anónimos. Em estudos deste tipo tem de haver anonimato. Temos algumas vítimas que falaram connosco presencialmente e tivemos feedback dessas pessoas, no sentido de terem ficado indignados com a conferência de imprensa.”