“Ser líder não é tomar as decisões fáceis, é tomar as decisões certas. É nisso que estou focada agora.” Theresa May surgiu determinada na conferência de imprensa da tarde desta quinta-feira, o ponto final num dia de combate pelo futuro político da Primeira-ministra. “Acredito que este é um acordo que respeita o interesse nacional. Vou conseguir levar esta avante? Sim”, sentenciou a líder dos conservadores.
Aparentemente calma, repetindo as mesmas ideias que foi dizendo ao longo de todo o dia e evitando equacionar sequer um cenário em que o acordo que está a propor não vinga, May optou por entrar em modo the lady’s not for turning, popularizado por Margaret Thatcher. Não ceder uma vírgula e continuar, convicta de que está a tomar a decisão correta e que os deputados irão acabar por pôr a mão na consciência e aprovar a sua proposta de acordo, apesar de todas as reservas.
“Acredito com todas as fibras do meu ser que estou a fazer o que é certo”, garantiu May perante os jornalistas e as câmaras de televisão que levaram a sua mensagem a milhões de britânicos preocupados com o futuro incerto do país. Por um lado, a Primeira-ministra está a executar uma fuga para a frente, sabendo que não consegue outro acordo melhor com a Europa e que o tempo se está a esgotar; por outro, parece estar convicta de que um dia as próximas gerações compreenderão o que fez. Por agora, enfrenta a batalha da sua vida — e, se for derrotada, é certo que não conseguirá sobreviver ao embate. “A resiliência e a determinação dela são admiráveis. Mas suspeito que a História não será meiga com o julgamento que fará dela, independentemente do que ela espera”, prevê ao Observador Paul Webb, professor da Universidade de Sussex e autor da obra “O Sistema Partidário Moderno Britânico”.
Muitos repetiram ao longo do dia a ideia de que May está “em negação”. Um jornalista confrontou mesmo a própria primeira-ministra com essa possibilidade, tendo ela respondido, uma vez mais, que o acordo “respeita o interesse nacional”. “May parece estar num plano de realidade diferente do resto de Westminster”, decretava ao final da tarde Patrick Maguire, na revista de esquerda New Statesman. “Como pode Theresa May governar agora?”, perguntava Isabel Hardman do outro lado do espectro político, na Spectator.
Da demissão de Raab à rebelião de Rees-Mogg. Um dia de embates que não deitaram abaixo May
À medida que o dia ia decorrendo, aumentava o espanto dos que assistiam à performance de May. Os obstáculos políticos iam-se acumulando e não faltou quem previsse diferentes guinadas: que a Primeira-ministra iria reagir pedindo lealdade através duma moção de confiança; que recuaria no acordo e voltaria às negociações; que se demitiria, incapaz de continuar sem capital político.
Em vez disso, May manteve o rumo. Foi assim quando a manhã começou com a notícia retumbante de que o próprio ministro para o Brexit, Dominic Raab, apresentava a sua demissão. O rosto principal das negociações deixava, assim, claro que foi May quem assumiu as rédeas do acordo e sacudiu responsabilidades por um compromisso que, considera, deixaria o Reino Unido “preso num regime, sem poder dizer uma palavra sobre as leis em questão”.
May seguiu para a Câmara dos Comuns sem ministro para o Brexit e, pelo caminho, perdeu também a ministra do Trabalho, Esther McVey. Antes deles, já o secretário de Estado para a Irlanda do Norte, Shailesh Vara, tinha dado o tiro de partida. E depois deles, ao longo da manhã, seguir-se-iam outros quatro membros júniores do Governo. Ao todo, sete governantes apresentaram a demissão ao longo do dia.
No Parlamento, acumulavam-se os golpes. O Partido Trabalhista recusou dar-lhe a mão, com Jeremy Corbyn a pedir que recue “neste acordo mal amanhado que não tem o apoio do Governo, desta Câmara, nem do país no seu todo”. Os unionistas do DUP, aliados da Primeira-ministra, deixaram no ar a possibilidade de contribuir para derrubar o acordo, com Nigel Dodds a recusar fazer perguntas a May porque “a primeira-ministra claramente não ouve”. Fora do Parlamento, as sondagens iam dando conta de que a maioria dos britânicos não aprova o acordo.
A estocada final veio dos tories eurocéticos, a maioria associados ao European Research Group liderado por Jacob Rees-Mogg. “É do interesse nacional que ela saia”, declarou o deputado conservador Andrew Bridgen sobre a sua própria líder. Nos corredores, os membros do ERG já preparavam uma reunião para discutir a possibilidade de provocar uma moção de censura a Theresa May. À saída, Rees-Mogg anunciou que tinha entregado a sua carta ao presidente do Comité 1922, Graham Brady, que tem responsabilidade para ativar a discussão, caso receba 48 cartas no mesmo sentido. “O que foi conseguido hoje não é o Brexit”, declarou o deputado, justificando a decisão de tentar afastar May com a necessidade de ter “um líder que diga à UE que é impossível dividir o Reino Unido e aceitar uma situação com uma união aduaneira perpétua.” Colocou-se, contudo, de fora da corrida à sucessão.
Acordo aprovado, moção de censura, novas eleições, referendo… O que acontecerá a May (e ao Reino Unido) no futuro?
A jogada de Rees-Mogg é arriscada. Até ao momento, vários deputados conservadores já anunciaram ter entregado as suas cartas a Brady, mas não é certo se o número mágico de 48 terá sido atingido. Mesmo que tal seja o caso, isso também não garante que a moção de censura seja aprovada: “Theresa May pode ganhar à mesma”, relembra Webb. “É claro que ela seria altamente prejudicada pelo simples facto de uma moção ser votada — mas o problema para o partido é que não é óbvio quem poderá uni-lo melhor do que ela. Ela pode sobreviver por defeito”, explica, apesar de ser “uma Primeira-ministra fraca”.
O estoicismo de May em reação a todos os ataques que sofreu ao longo deste dia surpreende quem a observa. “É provavelmente uma grande fraqueza a relutância dela em rebater os argumentos dos adversários”, apontava estava tarde Andrew Sparrow no jornal Guardian. “No dia em que os seus adversários pró-Brexit dominam as rádios e televisões, ela não faz qualquer tentativa de os repreender pelas muitas falsas promessas que fizeram durante a campanha para o referendo.” May, que fez campanha pela manutenção na UE, reforçou ao longo do dia que conseguiu “o melhor acordo possível”; mas não acusou os seus inimigos internos pró-saída de não terem deixado isso claro ao longo da campanha, como podia ter feito.
Os cenários que o Reino Unido tem agora pela frente são tão incertos que quase ninguém arrisca fazer previsões. May pode conseguir convencer os aliados unionistas, estender uma ponte a alguns trabalhistas ou pôr na ordem uns quantos conservadores eurocéticos, arranjando os votos suficientes para aprovar o acordo. Mas May também pode falhar neste intento, o acordo ser chumbado e a Primeira-ministra escolher regressar à mesa das negociações, com apenas 21 dias para o fazer.
Em vez disso, pode recuar em duas promessas que fez esta quinta-feira e pedir uma extensão do Artigo 50 — para tentar ganhar mais tempo e evitar a saída já a 29 de março — ou convocar um referendo para votar a proposta de acordo, embora ambas sejam pouco prováveis. Ou, surpresa das supresas, pode decidir convocar eleições. Isto, é claro, se os amotinados de Rees-Mogg não conseguirem, de facto, levar a plenário a moção de censura e deitar abaixo a líder, o que provocaria uma corrida interna à liderança dos Conservadores (e, por conseguinte, do país) ou até mesmo uma nova ida às urnas.
Até lá, outros ministros podem apresentar a sua demissão. Penny Mordaunt, ministra do Desenvolvimento Internacional, esteve reunida com May ao final do dia, aumentando a especulação sobre a sua posição. Michael Gove, o eterno peso pesado do Governo que está no Ambiente e que terá sido sondado para a pasta do Brexit, estará a “ponderar” se deve demitir-se ou não. “Parece provável que surjam mais demissões”, prevê Webb. “E tenho de admitir que seria bizarro se, depois de tantas demissões, May conseguisse sobreviver e aprovar o acordo no Parlamento.”
O que segura, então, May, que parece caminhar decidida para o abismo, sem nenhuma sombra de dúvida a toldar-lhe o discernimento? O professor de Sussex não tem dúvidas: a falta de alternativas, quer para outro acordo, quer para outro líder. “Margaret Thatcher foi afastada pelo partido numa situação em que havia muito menos insatisfação com ela do que nesta — mas havia alternativas mais claras a Thatcher do que há agora. Theresa May está estranhamente protegida pela total polarização do seu partido”, resume o académico. “Quem conseguiria fazer o trabalho de uma forma menos atabalhoada?”, pergunta. A resposta, por agora, parece ser “ninguém”. E May, depois de enfrentar o dia mais duro da sua carreira, sobrevive para lutar mais um dia e tentar ganhar a maior batalha que alguma vez terá, chamada Brexit.