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Depois do coronavírus - o que resta da economia?

O aumento do desemprego é uma das consequências mais visíveis da crise trazida pela pandemia. Para combater o cenário, especialistas defendem a necessidade de mais e diferentes apoios sociais.

O isolamento decretado em quase todo o mundo como medida fundamental para poupar vidas, impedir o contágio de Covid-19 e evitar o colapso dos sistemas de saúde trouxe consigo uma crise que, todos os dias, se faz sentir. As consequências económicas e sociais são devastadoras, refletindo-se no aumento do desemprego e acentuando as desigualdades que já existiam antes, com um risco muito real de a pobreza se estender a ainda mais famílias. E se é verdade que os especialistas que ouvimos concordam com as medidas rápidas que foram tomadas para atenuar o impacto económico imediato, também é verdade que todos falam na necessidade de criar outros apoios, delinear estratégias mais abrangentes e, até, aproveitar a oportunidade para repensar o sistema de apoio social vigente.

Depois da crise financeira internacional de 2008 – que no nosso país se fez sentir a partir de 2009 e à qual se juntou ainda uma crise de dívida soberana – Portugal enfrenta de novo o perigo de recessão. No Boletim Económico  do mês de junho, o Banco de Portugal prevê uma redução do produto interno bruto (PIB) de 9,5% em 2020, salientando que “a economia portuguesa deverá contrair-se de forma muito acentuada, num contexto de reduções do PIB mundial e do comércio internacional apenas comparáveis às registadas na Grande Depressão de 1929”. E o problema é que esta realidade nos atinge numa altura em que ainda não tínhamos recuperado totalmente da crise de 2008/2009. Isso mesmo é o que refere o sociólogo Renato Miguel do Carmo, professor no Iscte-Instituto Universitário de Lisboa e diretor do Observatório das Desigualdades, segundo o qual “os impactos sociais e económicos da recessão anterior ainda não estavam completamente revertidos”. Embora admita que “houve, sem dúvida, uma melhoria significativa no que diz respeito à reposição de rendimentos e à diminuição do desemprego”, entende que “outras debilidades não só não foram atenuadas como conheceram um agravamento”. Como exemplo, indica que “nalguns setores do mercado de trabalho verificou-se um aumento das situações contratuais precárias e também do trabalho informal”, sendo que “estas situações foram proliferando, acompanhando o crescimento de alguns setores ligados ao turismo, nomeadamente o alojamento, restauração e similares”. E é aqui que “o impacto da pandemia incidiu quase de imediato, mas não exclusivamente, provocando uma subida considerável do desemprego registado”, observa, acrescentando que “não é por acaso que, até agora, a região mais afetada é o Algarve, cuja economia depende muito do turismo”.

Maior taxa de desemprego desde a Grande Depressão

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Segundo o recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre o emprego – Employment Outlook 2020 – a pandemia está a causar uma crise no mercado de trabalho pior que a de 2008. Em maio de 2020, a taxa de desemprego nos países da OCDE caiu para 8,4%, após um aumento sem precedentes de 3 pontos percentuais em abril (8,5%), a maior taxa de desemprego registada em dez anos. Mesmo no cenário mais otimista em relação à evolução da pandemia, ou seja, sem ocorrência de segunda vaga, aquela organização estima que a taxa de desemprego possa chegar aos 9,4% no último trimestre deste ano, ultrapassando todos os picos desde a Grande Depressão.

Quebra de rendimentos até quando?

Segundo o economista João Cerejeira, professor na Universidade do Minho, o que nos trouxe ao ponto em que nos encontramos foi “uma redução muito forte da atividade económica, quer por motivos de restrições de oferta, mas essencialmente por quebra na procura”. Desde logo, devido à quebra de rendimentos, quer tenha sido motivada pelo layoff, pela perda de emprego ou pela redução do capital das empresas com diminuição no volume de negócios, “o que acaba por gerar também quebras nos restantes rendimentos ao longo da cadeia económica”, pormenoriza.

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O resultado poderá muito bem ser, na sua perspetiva, uma crise pior que a de 2008, mas “mais grave no sentido de ser mais intensa a curto prazo, ainda que talvez não tão grave na sua duração temporal”. “A crise portuguesa começou com a crise internacional de 2008, que motivou a primeira queda do PIB em 2009, mas acaba por se estender até 2013”, recorda, referindo que nesses anos “não houve uma quebra do PIB como a que está prevista para este ano, mas foi muito prolongada no tempo e isso levou a algum desgaste”. “Se houver medidas, se a pandemia for controlada, se não houver uma extensão da crise nomeadamente ao setor financeiro, pode ser que a recuperação seja mais rápida”, antecipa.

“Muitas empresas que, aquando do início da crise, enfrentavam graves dificuldades, já fecharam. Para muitas outras, cada mês representa incorrer em prejuízos. A decisão de se manterem, ou não, no mercado vai depender das suas expectativas sobre o futuro, as quais serão muito fortemente influenciadas pelo que suceder nas próximas semanas ou meses”.
Nádia Simões, professora no ISCTE

Também a economista Nádia Simões, professora no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa -, realça que “as consequências dependerão em larga medida da duração da pandemia”. “Um dos aspetos que mais condiciona a extensão do impacto está relacionado com a capacidade que as empresas tenham para ultrapassar este período”, afirma, sendo que “esta capacidade é diretamente influenciada pela duração do período em que a quebra de procura se verificar”. Com efeito, “muitas empresas que, aquando do início da crise, enfrentavam graves dificuldades, já fecharam. Para muitas outras, cada mês representa incorrer em prejuízos. A decisão de se manterem, ou não, no mercado vai depender das suas expectativas sobre o futuro, as quais serão muito fortemente influenciadas pelo que suceder nas próximas semanas ou meses”.

Futuro d.C.: como vamos viver depois do coronavírus?

Para a especialista em economia do trabalho, “a importância do impacto sobre as empresas é absolutamente crítica, na medida em que condiciona o que sucederá com o emprego e por consequência com os níveis médios de rendimento da população”. Ou seja, “o desemprego e a pobreza, que são as duas principais consequências económicas e sociais, dependem da extensão dos efeitos sobre as empresas”, reforça.

Os números do desemprego em Portugal

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Em Portugal, os números acompanham a tendência mundial da subida do desemprego, com o Instituto do Emprego e Formação Profissional a registar, no final de maio, 408,934 desempregados, o que representa um aumento de 34% face ao mesmo período do ano passado. Em relação a abril deste ano, registou-se um aumento de 16,611 desempregados, correspondente a um crescimento de 4,2%. A mesma tendência é observada pelo Instituto Nacional de Estatística, cujos dados provisórios para maio revelam uma taxa de subutilização de trabalho de 14,2%, sendo que aqui estão incluídas as pessoas sem trabalho, mas que não reúnem os critérios para serem consideradas desempregadas.

Quem está mais vulnerável à pobreza?

A “amplificação da pobreza, que em Portugal ainda se cifra em valores muito elevados”, é uma das consequências que Renato Miguel do Carmo teme que se venha a constatar. “Penso que já se percebeu muito claramente que o impacto da pandemia não é nada democrático e que não afeta todos os grupos e classes sociais da mesma maneira”, sublinha, defendendo que “na verdade, não é o vírus que é pouco democrático, o que se verifica é que as sociedades são muito desiguais e que o vírus está a sinalizar isso mesmo, na medida em que incide mais sobre os grupos vulneráveis e mais frágeis”. “De certa maneira, a Covid-19 está a desvelar de forma muito brutal os enormes desequilíbrios da nossa economia e as vincadas assimetrias sociais e territoriais. Neste sentido os que já se encontravam numa situação vulnerável e precária são aqueles que estão a sofrer mais com a crise sanitária e com a crise socioeconómica”, sintetiza.

“De certa maneira, a Covid-19 está a desvelar de forma muito brutal os enormes desequilíbrios da nossa Economia e as vincadas assimetrias sociais e territoriais. Neste sentido os que já se encontravam numa situação vulnerável e precária são aqueles que estão a sofrer mais com a crise sanitária e com a crise socioeconómica”
Renato Miguel do Carmo, sociólogo e professor no ISCTE

De acordo com o também coordenador científico do CoLABOR – Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social, “o desemprego está a afetar consideravelmente a população trabalhadora jovem, que é também aquela onde a precariedade mais incide”. Nas suas palavras, “alguns inquéritos, aplicados durante o período do confinamento, identificaram precisamente maiores quebras de rendimento na população mais jovem e também nas camadas com menores níveis de escolaridade”.

Nádia Simões corrobora a vulnerabilidade dos mais jovens, desde logo porque aqui “se incluem os que estão a acabar as suas Licenciaturas ou Mestrados, que realizaram um investimento avultado na sua formação, mas que ainda não fizeram a sua transição para o mercado de trabalho e enfrentam neste momento perspetivas muito incertas sobre o seu futuro”. Por outro lado, atinge também os jovens que já estão no mercado de trabalho, os quais “possuem, em média, menor antiguidade nas empresas e por isso contratos menos seguros, estando mais expostos a despedimentos e não permanência nas empresas”.

A docente destaca ainda como particularmente expostas as pessoas com idade superior a 50 anos, tendo em conta “os setores de atividade em que trabalham, as ocupações que desenvolvem e o facto de terem um capital humano mais desatualizado”. “Este grupo levanta grandes preocupações em termos de políticas públicas”, diz, sendo que aqui “a questão do desemprego de longa duração coloca-se de forma muito significativa”. A equação fica ainda mais complexa, porque em causa estão “pessoas que possuem, em muitos casos, um papel crítico nos agregados familiares, na medida em que têm filhos jovens dependentes do seu rendimento e pais que também precisam de apoio”.

“A questão do desemprego de longa duração coloca-se de forma muito significativa”
Nádia Simões, professora no ISCTE

Nádia Simões chama ainda a atenção para o grupo dos indivíduos que possuem vínculos contratuais mais precários, pois “em caso de necessidade de ajustamento da dimensão da força de trabalho serão fortemente afetados” e ainda para “aqueles que trabalham em setores mais tradicionais que já enfrentavam dificuldades de sustentabilidade financeira”.

OCDE prevê queda de 7,6% da economia com segunda vaga

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De acordo com as previsões económicas mundiais da OCDE, publicadas no Economic Outlook, se uma segunda vaga de Covid-19 se verificar ainda este ano e isso provocar novo isolamento e paragem, é provável que a produção económica mundial caia 7,6% e recue 2,8% em 2021.  Quanto ao PIB, estima-se que em 2020 caia 11,5% na zona euro e 8,5% nos EUA. Por outro lado, se se conseguir evitar uma nova onda, é provável que a atividade económica global recue 6% em 2020 e o desemprego suba 9,2%, face a 5,4% em 2019. Já o PIB deverá baixar 9% na zona euro e 7,3% nos EUA.

Pouca cobertura do subsídio de desemprego

Porque “as franjas da população são sempre mais afetadas do ponto de vista económico”, João Cerejeira sustenta que o primeiro passo para contrariar a tendência passa por “manter os postos de trabalho, evitar que haja falências”. Mas, logo a seguir, defende o “suporte ao rendimento das famílias que estão afetadas por quebras de rendimentos”, sendo que estas quebras “foram grandes e os mecanismos não foram suficientes para as mitigar”. Por exemplo, “tivemos a situação das moratórias aos créditos, o que foi importante, mas há que pagar na mesma, por isso provavelmente deverá haver uma extensão das moratórias, pelo menos enquanto a recuperação da economia não for conseguida”, avança.

“As franjas da população são sempre mais afetadas do ponto de vista económico”
João Cerejeira, economista e professor na Universidade do Minho

Para o economista, poderá ser necessário “avançar para mecanismos de acesso a um tipo de complemento de rendimento para pessoas que temporariamente deixam de ter os rendimentos habituais e a quem não seja possível aceder aos apoios habituais, nomeadamente através do centro de emprego”. A este propósito, João Cerejeira realça que “cerca de metade dos desempregados em Portugal não tem subsídio de desemprego”. “Nós temos uma cobertura de subsídio de desemprego muito precária e mesmo o Rendimento Social de Inserção acaba por ser para casos mais extremos, bastando alguém ter habitação ou algum património, mas que não é líquido e não pode transformar em dinheiro de um dia para o outro, para não poder aceder”.

Igual alerta é feito por Renato Miguel do Carmo, segundo o qual “um número relevante de pessoas – difíceis de identificar nas estatísticas – não puderam acionar os apoios habituais, como o subsídio de desemprego, porque se encontravam em situações extremas de precariedade laboral ou de subemprego, ou seja, não detendo, em certos casos, um contrato de trabalho”.

A Covid-19 veio salvar o planeta ou nem por isso?

O investigador, que colaborou no estudo Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento II: desemprego, layoff e adaptação ao teletrabalho, especifica que “os dados mais recentes revelam que as pessoas mais qualificadas e com níveis salariais mais elevados tiveram maior capacidade para se protegerem do vírus, transitando, por exemplo, com maior facilidade para o teletrabalho, e, ao mesmo tempo, sentiram uma menor redução dos seus rendimentos”. Como resultado, acredita que “uma das consequências desta crise pode ser o incremento de uma maior polarização social e económica no interior do mercado de trabalho, entre os mais e os menos qualificados e/ou entre os mais e o menos protegidos, o que a prazo poderá corresponder a um aumento das desigualdades sociais que, em Portugal, se mantêm num patamar muito elevado”.

"Uma das consequências desta crise pode ser o incremento de uma maior polarização social e económica no interior do mercado de trabalho, entre os mais e os menos qualificados e/ou entre os mais e o menos protegidos, o que, a prazo, poderá corresponder a um aumento das desigualdades sociais que, em Portugal, se mantêm num patamar muito elevado”.  
Renato Miguel do Carmo, sociólogo e professor no ISCTE

O que fazer para evitar o pior?

Questionada sobre o que deve ser feito para evitar o pior cenário no mercado de trabalho em Portugal, Nádia Simões considera que “as políticas que o Governo tem tomado têm dado uma contribuição importante para suster o aumento do desemprego”. Ainda assim, julga que “essas medidas são difíceis de manter num período significativo de tempo” e “os problemas no mercado de trabalho carecem de intervenções de médio/longo prazo, muito diretamente relacionadas com o sistema de educação para jovens e adultos”. Ou seja, destaca a necessidade de “apostas estratégicas, pois são aquelas que permitem que as pessoas sejam menos afetadas por recessões como esta e tenham maior capacidade para se ajustar no mercado de trabalho”. Entre o que deve ser levado a cabo, elenca o “investimento em qualificações, em conhecimentos atualizados, pois estes são um ativo imaterial que proporciona capacidade para ultrapassar períodos mais adversos”.

De igual modo, Renato Miguel do Carmo identifica dois horizontes temporais de atuação, com o mais imediato a corresponder “ao conjunto de medidas acionadas pelo Governo, designadamente, o recurso ao lay-off simplificado ou à implementação do pacote de apoios para acudir as situações urgentes relacionadas com o desemprego, a perda de atividade e/ou de rendimento”. Porém, e fazendo coro com João Cerejeira, o sociólogo frisa que “apesar do conjunto destas políticas estar a ser importante para conter e atenuar os impactos da crise, torna-se, no entanto, necessário contemplar respostas mais adequadas que abranjam os casos de maior precariedade e que não são enquadrados pelos apoios habituais, como o trabalhado independente mais intermitente ou o trabalho informal”. “No horizonte de médio e longo prazo é fundamental implementar uma estratégia nacional que alie ao desenvolvimento e ao crescimento económico a promoção da qualidade e da proteção do emprego”, defende, pois “não é possível construirmos uma economia sustentável se esta continuar a assentar largamente na precariedade laboral e a depender dos baixos salários”.

Também João Cerejeira entende que talvez esta seja uma oportunidade para “repensar o sistema de apoio social, porque a forma tradicional deixa muitas coisas em aberto e continua a ter custos elevados”. Especificamente, o economista critica a opção “muito frequente em Portugal” de se “fazerem muitos programas, mas com dotações financeiras ridículas e de acesso burocrático difícil”, pelo que “seria melhor ter menos apoios e mais simples”, em lugar de “diversos programas muito fragmentados, setoriais, que não olham à situação global da pessoa”.

Emigrar, agora, não é uma saída

Tendo em conta que esta é uma crise mundial – tal como a epidemia de Covid-19 – nem sequer é possível equacionar a emigração como solução. João Cerejeira aponta isso mesmo, lembrando que “também há desemprego e mão de obra disponível nos países que são destinos habituais da nossa emigração”.

Renato Miguel do Carmo reforça a ideia, apontando conclusões de um estudo desenvolvido no âmbito do Observatório das Desigualdades, para o qual foram entrevistados jovens qualificados que emigraram ou equacionaram a possibilidade de emigrar como uma via para sair do ciclo de precariedade laboral e de baixos salários em que se encontravam durante a recessão anterior. “Nesse sentido, a emigração era muitas vezes encarada como uma potencial alternativa, independentemente de ser mais ou menos desejada”, sustenta. Todavia, “uma das excecionalidades desta crise provocada pelo impacto da pandemia é que, pelo menos nos próximos meses, a emigração tornou-se numa quase impossibilidade, já que, por um lado, praticamente todas as economias estão a passar por processos difíceis e complicados dos quais demorarão algum tempo a recuperar e, por outro lado, verifica-se que a mobilidade e as ligações entre países está, por enquanto, muito condicionada”. Também por isto, o sociólogo reforça a “perceção de vulnerabilidade entre aqueles que já estão a sofrer os impactos da crise, no sentido em que as suas possibilidades e as alternativas são ainda mais reduzidas e limitadas do que anteriormente”.

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