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Batatas que costumam custar cerca de oito hryvnias a serem compradas a 22. Ovos que não custam mais de sete a 17 hryvnias. Coxas de galinha que não vão além das 80 hryvnias com preço de 120. Foram estes os preços de um dos serviços contratados pelo Ministério da Defesa ucraniano para alimentar soldados nas regiões de Kiev, Sumy, Zhytomyr, Chernihiv e Cherkasy. Muito acima do custo de mercado. A diferença, noticiada pelo site jornalístico ZN.UA, fez soar os alarmes e disparar as suspeitas de corrupção. Esta terça-feira, o vice-ministro da pasta, Vyacheslav Shapovalov, apresentava a demissão.
Embora tenha inicialmente reagido com ímpeto — falando em “manipulação” e “engano” —, o ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, acabou por aceitar a demissão do seu vice-ministro, citando “a tradição política europeia e democrática”, em que “os interesses da Defesa são superiores a qualquer cargo”. Ainda em agosto, Reznikov escrevia que a batalha contra a corrupção era essencial durante o esforço de guerra, porque “numa guerra um responsável corrupto é um saqueador”.
E foi a luta contra a corrupção que motivou a demissão de Shapovalov, mas não apenas ele — e não são apenas de suspeitas de corrupção que estão na origem da purga de Zelesnky. Ao todo, 15 responsáveis ucranianos demitiram-se ou foram demitidos em pouco mais de 24 horas na Ucrânia.
Embora não seja possível provar que existem suspeitas de corrupção sobre todos eles, o próprio Presidente, Volodymyr Zelensky, deixou claro na sua comunicação ao país que o move o objetivo de limpar a casa. “Deixem-me ser claro: não haverá um regresso ao que já fomos, à forma como algumas pessoas próximas das instituições do Estado ou que passaram a vida à procura de um lugar viveram.” Mas porquê esta cruzada agora, num país já há muito conhecido pelo seu historial de corrupção? E estará Zelensky verdadeiramente investido nela?
Desviado dinheiro para ajuda humanitária, reconstrução e até geradores
A Ucrânia ocupa o lugar 122 entre 180 países no ranking da Transparência Internacional e essa realidade não é de agora. De tal forma que o próprio Zelensky, um antigo comediante tornado político, foi eleito em 2019 muito graças à sua mensagem anti-corrupção. Mas a sua atuação na área tinha deixado a desejar, razão pela qual, antes do início da invasão russa, a 24 de fevereiro, os seus níveis de popularidade estavam mais baixos do que nunca.
A guerra viria a mudar tudo. Não só a popularidade de Zelensky disparou desde então como o tema da corrupção deixou de ser prioritário face ao conflito. Mas isso não significa tolerância total por parte da população, explicou ao The New York Times Vitaly Shabunin, diretor do Centro de Ação Anti-Corrupção de Kiev: “Durante a guerra emergiu um contrato social novo entre a sociedade civil, os jornalistas e o governo: não iremos criticar-vos como fazíamos antes da guerra, mas a vossa reação a qualquer escândalo e ineficiência deve ser o mais dura possível”, resumiu. “A posição do ministro da Defesa quebrou este contrato.”
Ao desvalorizar as acusações e ao falar em “manipulações”, Reznikov abriu a caixa de Pandora do descontentamento. Até porque não é a primeira vez que o Ministério da Defesa da presidência Zelensky está debaixo de suspeitas: em 2021, um responsável do Ministério foi envolvido num escândalo sobre compra de munições; em maio de 2022, já com a guerra a decorrer, um tenente ucraniano confessava ao The Times saber que há roubo de material militar antes de este chegar à linha da frente.
Perante tudo isto, Zelensky decidiu agir. A demissão do vice-ministro da Defesa não foi a única. O vice-ministro das Infraestruturas, Vasyl Lozinskyi, não só foi demitido como foi mesmo detido esta segunda-feira. Em causa estão suspeitas de que terá desviado 400 mil dólares que tinham como destino restaurar infraestrutura de energia atingida pelos bombardeamentos russos, por exemplo com a compra de geradores.
Dois governadores foram afastados na sequência de notícias semelhantes, relacionadas com desvio de fundos que serviriam para ajuda humanitária e reconstrução. Valentyn Reznichenko, governador de Dnipropetrovsk, pode ter beneficiado com contratos públicos uma empresa que pertence, em parte, à sua namorada. Já Oleksandr Starukh, governador de Zaporíjia, é suspeito de ter desviado fundos destinados a ajuda humanitária para a região.
E a limpeza foi para lá do governo e administração estatal. Também o deputado e vice-líder do partido de Zelensky, Pavlo Halimon, foi afastado. O dirigente do Servo do Povo tinha sido protagonista de uma notícia esta segunda-feira onde se dava conta de que terá comprado uma casa no centro de Kiev a um preço muito inferior ao de mercado e através de um intermediário.
Em tempos de guerra, a sociedade ucraniana não está disposta a aceitar corrupção e muito menos com dinheiro que tem como destino ajudar as tropas ou a população atingida pelos bombardeamentos. “Se um tipo quer roubar milhões de euros durante a guerra, quando a nossa economia está dependente da União Europeia em 60%, temos de travá-lo”, resumiu ao Politico Yurii Nikolov, o jornalista que denunciou o caso do Ministério da Defesa.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a corrupção na Ucrânia.
Kyrylo Tymochenko, o vice-chefe de gabinete que usou os carros errados
Nem todos os políticos afastados nas últimas horas têm suspeitas de corrupção a pender sobre si. Dois exemplos: Ivan Lukerya, vice-ministro do Desenvolvimento, que anunciou já ter pedido antes para sair no início deste ano de 2023; e o governador de Kiev, Oleksii Kuleba, que terá sido demitido para subir e substituir um dos demitidos no governo — e logo para o cargo de vice-chefe de gabinete do Presidente.
Já sobre os restantes afastados, quer governadores (Dmytro Zhyvytskyy, de Sumy, e Yaroslav Yanushevych, de Kherson), quer membros do governo — Vyacheslav Nohoda, também vice-ministro do Desenvolvimento, o vice-ministro da Política Social, Vitalii Muzuchenko, e os vice-responsáveis dos Transportes Marítimos, Anatolii Ivankevych e Viktor Vyshniov — não têm indícios públicos de qualquer ato de corrupção, mas também não é claro porque saem nesta remodelação.
E entre aqueles cujas denúncias são públicas, o tipo de atos de corrupção praticados é bastante diferente. Se Lozinskyi e Starukh, por exemplo, saem por suspeitas de desvio de fundos, o vice-chefe de gabinete do próprio Zelensky protagoniza um caso diferente. Não se trata de dinheiro, mas sim do uso indevido de um carro — um Chevrolet Tahoe —, SUV que foi oferecido pela General Motors à Ucrânia para transportar refugiados e ajuda humanitária e que estaria a ser usado para fins pessoais do político.
Só que Kyrylo Tymoshenko ocupava um cargo de enorme relevo. Vice-chefe de gabinete do Presidente desde que este chegou ao poder, era já próximo dele antes, tendo-o ajudado durante a campanha. Responsável pela comunicação de Zelensky, era um dos conselheiros mais populares do Presidente, que atingiu um estatuto de celebridade menor nas redes sociais. Agora, acumulava um cargo de extrema responsabilidade: era o coordenador do Programa de Desenvolvimento de Infraestruturas, papel extremamente relevante numa altura em que a Ucrânia precisa de pensar a reconstrução do país.
O caso do Chevrolet não foi o único problema. Já no início de dezembro, o jornal ucraniano Ukrainska Pravda deu conta de que Tymoshenko andaria a conduzir um Porsche comprado um junho. Oficialmente, o carro pertence ao empresário Vemir Davitian. Além disso, o vice-chefe de gabinete de Zelensky também estará a viver numa mansão que pertencerá oficialmente a outro empresário, o construtor Ihor Nikonov.
Para além das inimizades que fez dentro do governo, o comportamento público de Tymoshenko colocava-o em risco. “Era claro que Kyrylo fazia truques e nem a liderança do Gabinete da Presidência nem os parceiros internacionais gostavam deste comportamento”, alertou uma fonte do partido de Zelensky à edição ucraniana da Forbes.
Corrupção pode por em causa adesão à UE — e até apoio militar ocidental
“Os parceiros internacionais” são de extrema importância para a Ucrânia, se tivermos em conta que deles depende toda a ajuda militar e financeira de que o país necessita em plena guerra. E é por isso que a ação decisiva de Zelensky de afastar políticos potencialmente corruptos surge agora.
“Este é um trabalho sistémico e consecutivo de que a Ucrânia precisa muito e que é parte integral da integração na União Europeia”, resumiu o primeiro-ministro, Denys Shmyal, numa reunião do Conselho de Ministros, citado pela Reuters, para justificar as demissões.
Se formalmente a Ucrânia já é país candidato a membro da UE, a verdade é que para poder fazer parte da aliança política tem de provar que está empenhado no combate contra a corrupção. “É claro que apreciamos o facto de as autoridades ucranianas estarem a levar estes assuntos a sério”, resumiu a porta-voz da Comissão Europeia Ana Pisonero, esta terça-feira.
Além disso, os ucranianos querem garantir que o apoio europeu e norte-americano a curto-prazo não falha. O recente debate internacional sobre o fornecimento de tanques Leopard por parte do governo alemão ilustra bem como o compromisso de apoio inabalável à Ucrânia pode fraquejar — e casos flagrantes de corrupção só servirão para contaminar mais a opinião pública internacional.
O apoio de Washington tem parecido mais resoluto, mas há quem dentro do Partido Republicano levante dúvidas. Quando Zelensky foi ao Congresso norte-americano, o senador Josh Hawley anunciou que não iria estar presente por não querer fazer parte de um espetáculo de um líder a “pedir mais dinheiro” quando não deu “nenhuma prova de como está a gastá-lo”, lembra o Wall Street Journal.
“Os contribuintes dos países ocidentais querem que o seu dinheiro não seja roubado. As elites dos países ocidentais são responsáveis pelo seu povo e por isso colocam questões ao nosso governo”, resumiu ao Kanal 24 o cientista político ucraniano Taras Zahorodniy. As demissões de Tymoshenko e companhia parecem, por isso, ser também fruto de alguma pressão externa.
Tatarov, o outro vice-chefe de gabinete de Zelensky, “será o próximo”?
A purga de Zelensky é, por isso, em muito promovida pela pressão internacional. Mas continua por esclarecer o grau de compromisso do Presidente ucraniano com uma política de tolerância zero à corrupção no país. Ou de quanta margem de manobra dispõe para ir até ao fim.
É que o caso de Tymoshenko colocou os holofotes num outro colaborador próximo do Presidente que, ao contrário do esperado, continua no cargo. Ao longo dos últimos dias, os media ucranianos escreveram várias notícias que davam como quase certo o afastamento do vice-chefe de gabinete e também de Oleh Tatarov, que ocupa o mesmo cargo que Tymoshenko. Este, porém, não foi anunciado como demitido esta terça-feira.
Mais: outra das demissões anunciadas por Zelensky, a do vice-procurador-geral Oleksiy Symonenko, também relembra o caso de Tatarov no meio de tudo isto. Como? Vamos por partes.
Symonenko foi afastado e o Presidente anunciou que os responsáveis do Estado ucraniano só podem agora sair do país por motivos de trabalho justificado. Tudo isto porque Symonenko passou férias durante o final do ano em Marbella (Espanha), num caso denunciado pelo jornal Ukraysnka Pravda. E, para sair do país, terá viajado a bordo de um Mercedes que pertence, nada mais nada menos, que a um oligarca suspeito de evasão fiscal — o empresário do tabaco Grigory Kozlovsky. À semelhança de Tymoshenko, também ele parece ter um nível de vida muito superior àquilo que o seu salário permitiria, com várias propriedades em bairros de luxo de Kiev e carros de alta cilindrada.
O agora afastado vice-procurador é também conhecido por ser leal ao poder político, a um nível que pode indiciar estar disposto a instrumentalizar a Justiça. Durante a presidência de Viktor Yanukovich, investigou a líder da oposição Yulia Tymoshenko; agora, sob a presidência Zelensky, investigou o seu adversário político, o ex-Presidente Petro Poroshenko. “Sempre que o Yermak [chefe de gabinete de Zelensky] precisa de alguma coisa, o Symonenko fá-lo”, chegou a dizer Oleksandr Lemenov, da associação StateWatch.
De tal forma que Symonenko é suspeito de ter ajudado a enterrar um caso de corrupção que pendia sobre Oleh Tatarov — o outro vice-chefe de gabinete de Zelensky que se mantém no cargo —, em vez de o investigar. Tatarov é, nas palavras do jornal Kyiv Independent, “o símbolo da tolerância de Zelensky para com a corrupção no seu círculo íntimo”.
Em 2020, o conselheiro do Presidente foi acusado de ter tentado subornar um especialista forense para ajudar um antigo deputado num caso judicial que enfrentava. No final desse ano, o vice-procurador Symonenko retirou o caso da jurisdição da agência estatal anti-corrupção NABU e transferiu a investigação para os serviços secretos do país, o opaco SBU. Um tribunal decretou no ano seguinte que o caso deveria voltar para a NABU, mas a procuradoria recusou fazê-lo. E o prazo de investigação esgotou-se, sem que os procuradores tivessem entregue a papelada necessária a tempo. Como se não fosse suficiente, quando a investigação ainda decorria, Symonenko foi à festa de anos do próprio Tatarov, como denunciaram os media ucranianos, com fotografias tiradas no local.
É certo que Tatarov não foi condenado por corrupção, mas o mesmo se passa com todos os políticos afastados ao longo dos últimos dois dias por Zelensky. A distingui-los, só existem dois fatores. O primeiro é que as suspeitas de crime de Tatarov não estão relacionadas com a própria guerra, remontando a 2020. O segundo é que o vice-chefe de gabinete de Zelensky tem claramente influência sobre o Presidente.
“Há razões para acreditar que Tatarov tem um dossiê sobre cada pessoa relevante, incluindo sobre o seu chefe Yermak”, teorizava já em julho o deputado da oposição Yaroslav Yurchyshyn. “Provavelmente tem material comprometedor sobre várias figuras-chave da administração”, dizia o político, que faz parte do comité parlamentar anti-corrupção e que se afirmava “cético” de que Tatarov viesse algum dia a ser afastado do governo ucraniano.
Agora, porém, a pressão internacional agudiza-se. “Os parceiros internacionais”, diz a Forbes ucraniana, “estão descontentes com a falta de reformas nas agências judiciais” — que são atualmente geridas por Tatarov a partir da presidência. “O assunto tem sido discutido várias vezes em reuniões internacionais, mas o gabinete do Presidente não gosta de ser pressionado”, resumiu à revista um responsável do Ministério dos Negócios Estrangeiros ucraniano.
Uma das fontes ouvidas pela Forbes previa mesmo que, caso Tymoshenko fosse afastado, “Tatarov será o próximo candidato ao despedimento”. Por agora, mantém-se no cargo, ao contrário de outros 15 responsáveis, demitidos em menos de 48 horas.