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E se uma nova pandemia como a da Covid-19 pudesse ser evitada com a vacinação de animais selvagens? Se é óbvio que não é viável alinhar numa fila macacos ou morcegos à porta de uma clínica, há quem defenda a hipótese de se criar vacinas transmissíveis, capazes de se propagarem da mesma forma que um vírus numa população animal depois de serem administradas a um grupo reduzido.
O tema, que ganhou destaque durante a pandemia de Covid-19, tem motivado várias investigações nos últimos anos, mas não é consensual entre a comunidade cientifica. Alguns cientistas acreditam que estas vacinas podem revolucionar a saúde pública ao interromper a disseminação de doenças infecciosas entre animais antes que estas se propaguem para humanos; outros alertam que os vírus usados nas vacinas podem sofrer mutações, saltar de espécies e desencadear uma cadeia de consequências imprevisíveis.
Certo é que o receio de uma nova pandemia voltar a partir de um vírus presente em animais e transmitido a humanos é muito real. Um estudo que recolheu as opiniões de quase duas centenas de investigadores especializados em doenças infecciosas, e que foi apresentado este fim de semana no congresso da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas, aponta, por exemplo, o vírus SARS-CoV-2 como um dos potenciais protagonistas da próxima pandemia, seguido por outros como Lassa, Nipah e Ébola, todos eles casos de zoonoses (vírus de origem animal que podem infetar humanos).
Tema ganhou destaque na pandemia de Covid-19
Sobre a possibilidade de o mundo voltar a atravessar um período de pandemia, Neil Vora, cientista da organização não-governamental norte-americana Conservation International não tem dúvidas: “Não é uma questão de ‘se’, mas de ‘quando'”. Em declarações ao Observador, o também professor de doenças infecciosas da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, diz, no entanto, que os governos mundiais não estão a fazer o suficiente para prevenir tal cenário. “Parece que já estamos a esquecer as lições da Covid-19 e não estamos a investir o suficiente na prevenção, preparação e resposta a pandemias, razão pela qual a Covid-19 foi tão mal gerida em muitos países”, adverte.
Tendo em conta essa preocupação e a possibilidade de mais vírus com origem em animais serem transmitidos a humanos, um número pequeno, mas “crescente” de cientistas acredita que é possível aprofundar as investigações sobre as vacinas transmissíveis — como já notava o Boletim dos Cientistas Atómicos, uma organização não-governamental sediada em Chicago, durante a pandemia.
Ao Observador, Amesh Adalja, cientista do Johns Hopkins University Center for Health Security que trabalha na área das doenças infecciosas emergentes, resposta a pandemias e biosegurança, diz que as vacinas transmissíveis podem ser “muito promissoras”. Mas a essa crença acrescenta um grande condicional: se for possível dar resposta às questões de regulação que as tornam tão difíceis de tornar realidade. “Acho que são uma tecnologia muito interessante, mas ainda são muito experimentais. Há coisas que precisam de ser trabalhadas do ponto de vista da regulação para poderem vir a ser usadas”, defende.
O que são e como funcionam as vacinas transmissíveis?
As doenças infecciosas estão a surgir “cada vez mais em todo o mundo” devido à atividade humana. “A maioria das doenças infecciosas emergentes tem origem em animais e depois atingem as pessoas. E estão a aumentar devido a atividades como o comércio de animais selvagens, a desflorestação e a forma como lidamos com os animais de criação”, enumera Neil Vora. É face a este aumento que alguns cientistas sugerem uma aposta na investigação em torno das vacinas transmissíveis.
Num artigo científico publicado este ano, os biólogos James Bull e Scott Nuismer, dois cientistas de um núcleo que se tem dedicado a estudos com modelos matemáticos sobre vacinas transmissíveis, apresentavam um modelo base para o funcionamento desta tecnologia como ponto de partida para futuras investigações. No estudo, disponível no site da Biblioteca Nacional de Medicina norte-americana, os autores defendem que os avanços na área da engenharia genética e na virologia fizeram avançar o conceito de uma vacina transmissível “para uma possibilidade que pode ser intencionalmente concebida e potencialmente implementada.”
Dentro das vacinas transmissíveis pode falar-se de dois tipos: as chamadas vacinas de vírus vivo e as vacinas de vetor recombinante. As primeiras são vacinas em que o microrganismo, obtido a partir de um indivíduo ou animal infetado é atenuado, diminuindo o seu poder infeccioso. Têm sido comparadas à vacina oral contra a poliomielite ou à vacina de vírus vivo atenuado contra influenza (Live-attenuated influenza vaccine, em inglês, LAIV), na medida em que “essas vacinas podem por vezes transmitir-se de pessoa para pessoa”, como refere uma revisão da Johns Hopkins.
Já as vacinas de vetor recombinante, citadas com mais frequência pelos que defendem vacinas transmissíveis, resultam da combinação de dois fatores: elementos de um vírus patogénico que induz imunidade (removida a porção que causa a doença) com um vetor viral transmissível (um vírus benigno já endémico na população a vacinar e que será responsável por disseminar a vacina). Investigadores como Bull e Nuismer argumentam que o sucesso de uma vacina de vetor recombinante vai depender “da escolha cuidadosa da engenharia do vetor” e também da população animal alvo que se quer vacinar. Isto é, se o objetivo for vacinar ratos, se pensarmos na febre de Lassa, recorre-se a um vírus que de forma natural infeta esses animais, mas que não lhes provoque danos.
O teste em coelhos selvagens que foi um sucesso
Os cientistas que se dedicam a estudar a hipótese de criar este tipo de vacinas falam, por isso, na utilização dos citomegalovírus (CMV, na sigla em inglês), que pertencem à família dos vírus herpes, como vetor. É que estes são exclusivamente específicos da sua espécie. Isto é, os CMV característicos dos ratos não podem infetar outros animais, como explicou à National Geographic Alec Redwood, investigador da University of Western Australia. Por outro lado, como têm um genoma longo, o seu código genético é mais estável e pode acomodar genes adicionais do vírus alvo. Além disso, infetam um hospedeiro para o resto da vida e induzem uma forte resposta imunitária, mas muitas vezes não provocam uma doença ou sintomas graves.
Há ainda muitas questões em torno deste tipo de vacinas às quais é preciso dar resposta em termos de viabilidade do método, defende Amesh Adalja. “O primeiro ponto é se temos a capacidade para produzir algo assim. Depois também são precisos mais estudos sobre como lidar com possíveis consequências negativas”, sublinha. É que os esforços para estudar e desenvolver vacinas transmissíveis só começaram na década de 1980 e só mais recentemente, com os avanços na tecnologia genómica e na virologia, ganharam outra expressão. Em 2020, por exemplo, cerca de uma dezena de instituições estavam a desenvolver trabalhos de investigação nesta área, a maior parte nos Estados Unidos, alguns também na Austrália e na Europa.
As primeiras tentativas para criar uma vacina transmissível visaram duas doenças infecciosas altamente letais na população europeia de coelhos — a mixomatose e a Doença Hemorrágica Viral dos Coelhos –, nenhuma das quais infeta humanos. Em 2001, investigadores espanhóis liderados por José Sánchez-Vizcaíno, à época diretor do Centro de Pesquisa em Saúde Animal espanhol, testaram uma vacina híbrida contra as duas doenças na Isla del Aire, com a expectativa de que fosse possível disseminá-la entre os coelhos selvagens. Foram capturados 147 animais e a metade deles foi administrada a vacina, sendo todos eles posteriormente libertados depois de lhes ser colocado um localizador. Quando os animais que não foram vacinados foram capturados, passados 32 dias e tendo convivido com os vacinados, os investigadores descobriram que 56% deles tinham anticorpos contra ambos os vírus. O teste, o primeiro e único ensaio de campo com uma vacina transmissível, foi considerado pelos autores bem sucedido.
A equipa chegou a submeter, no ano seguinte, os dados à Agência Europeia de Medicamentos (EMA), que concluiu que existiam problemas técnicos com a avaliação da segurança da vacina e pediram que os investigadores decodificassem o genoma do myxoma. Sem financiamento para continuar o trabalho, a investigação ficaria por aí. Desde então já se pensa na aplicação destas vacinas em outros animais. Em 2015, por exemplo, numa altura em que a epidemia de Ébola na África ocidental se propagava, uma equipa de investigadores especulava sobre a possibilidade de se desenvolver uma vacina transmissível que pudesse ser usada nos primatas africanos para combater o vírus. Pensa-se que pode ser uma opção para vacinar uma grande variedade de animais, desde selvagens, como morcegos, raposas, a domesticados, como cães, porcos e ovelhas.
Numa revisão da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, publicada anos antes da pandemia de Covid-19, investigadores recomendavam atenção dedicada e investimento em 15 tecnologias potencialmente transformadoras, incluindo as vacinas transmissíveis, para evitar que futuros surtos de doenças se tornassem “catastróficos”. “Em animais, a implementação bem-sucedida de vacinas transmissíveis evitaria a propagação de agentes patogénicos com potencial pandémico nas populações humanas, sem a necessidade de operações difíceis e dispendiosas de vacinação em massa nas populações animais”, destacava o relatório.
Quais os riscos? Superam os benefícios?
Tudo isto tem riscos. Um dos principais que é apontado é a imprevisibilidade dos vírus, visto que estes são geneticamente instáveis e propensos a mutações ou recombinações. “Estamos a falar de vetores de vírus vivos ou vacinas de vírus vivos. Pode haver mutações, recombinações. Tudo isto tem de ser trabalhado quando falamos de vacinas transmissíveis“, sublinha Amesh Adalja.
Há também alertas sobre a possibilidade de os vírus usados para ativar a disseminação da vacina conseguirem cruzar espécies, ainda que a propósito desta questão os cientistas que trabalham na área sublinhem que com o uso dos vírus CMV é altamente improvável que isso ocorra, visto serem específicos da sua espécie. O investigador do Johns Hopkins University Center for Health Security diz também que é preciso acautelar a questão da segurança de eventuais testes. “Se por definição estas vacinas são capazes de se replicar, de mover, é preciso garantir um nível adequado de biosegurança”.
Amesh Adalja refere que, em certa medida, estas são algumas das questões que foram lançadas quando se começou a apostar nos mosquitos geneticamente modificados, pensados para ajudar a prevenir a transmissão de doenças. No Brasil, por exemplo, uma empresa anunciou este ano a intenção de apostar nesta área para ajudar a combater o dengue. “Há um processo que ocorre nas comunidades em relação ao impacto de novas tecnologias. Quais são as consequências negativas? Quais são as consequências positivas? Quais os piores cenários? Tudo isto tem que ser pensado”, sublinha.
Pesando todos estes riscos, Amesh Adalja considera ainda assim que esta é uma área que vale a pena explorar. “Há muito trabalho a fazer, mas é suficientemente promissor, os benefícios são suficientemente significativos para que seja investigada, para ver até que ponto é viável”, nota, acrescentando que esta é apenas uma pequena parte do trabalho para garantir melhores respostas a eventuais surtos. Para o investigador importa no imediato olhar para as famílias virais com potencial para gerar vírus pandémicos, em particular os respiratórios, e desenvolver vacinas e testes de diagnósticos acessíveis. “Tudo isso são coisas muito importantes. Parte desse caminho pode incluir dar atenção às vacinas transmissíveis, mas em geral o foco tem de ser nestas famílias virais que apresentam maior risco e trabalhar na prevenção sem esperar que venha uma nova pandemia”, refere.
Há, porém, membros da comunidade científica mais reticentes quanto a um eventual papel das vacinas transmissíveis. “Embora possa ser tecnicamente viável para combater doenças infecciosas emergentes como a Covid-19, o Ébola e o Zika, com vírus que se propagam desta forma, e embora os benefícios possam ser significativos, como se encontra o equilíbrio entre esses benefícios e os riscos, que podem ser ainda maiores?”, questionavam os investigadores Filippa Lentzos, especialista do King’s College de Londres, e Guy Reeves, investigador do Max Planck Institute for Evolutionary Biology, na Alemanha, num artigo publicado durante a pandemia. Alertavam, em particular, para o potencial de abuso. “Embora os investigadores possam querer produzir vacinas transmissíveis, outros poderão redirecionar as suas descobertas e desenvolver armas biológicas“, referem.
Com estes e outros receios em mente, um grupo de investigadores internacionais, liderado por Scott Nuismer e Daniel Streicker, da Universidade de Glasgow, publicaram na semana passada um artigo na revista Science em que detalham salvaguardas e mecanismos de transparência para garantir um processo seguro. Numa lista de compromissos para uma investigação responsável incluíam a garantia de que nas vacinas só deveriam ser usados vírus que existem naturalmente como vetores e nas espécies de onde são provenientes; um desenvolvimento transparente e comunitário; uma monitorização constante de eventuais consequências não intencionais aos longo de todas as fases de desenvolvimento e com planos de contingência.
No caminho para garantir que o mundo consegue prevenir uma nova pandemia ou estar preparado para uma outra, o investigador Neil Vora sublinha que “nenhuma solução é por si só perfeita”. O professor de doenças infecciosas da Universidade de Columbia considera que ainda não há um investimento suficiente na prevenção de ameaças à biossegurança, ainda que destaque como positivo as negociações lideradas pela OMS para criar um acordo mundial sobre pandemias e a criação pelo Banco Mundial de um fundo para financiar investimentos e fortalecer as capacidades de prevenção, preparação e resposta a pandemias.
“O fundo foi criado para receber doações de todo o mundo, principalmente de países mais ricos, de cerca de dez mil milhões de dólares por ano. Parece muito, mas na verdade não é assim tanto quando comparamos com o custo de uma pandemia como a de Covid-19”, refere. Vora destaca que é preciso uma aposta em melhorar a saúde e a segurança económica das comunidades que vivem em focos de doenças infecciosas emergentes, encerrar ou regular estritamente os mercados e o comércio de animais selvagens, expandir a vigilância de agentes patogénicos e, sobretudo, apostar no desenvolvimento de vacinas, que segundo a OMS salvaram 154 milhões de vidas em 50 anos.
“São uma parte absolutamente crítica da nossa resposta às doenças infecciosas. É por isso que vivemos vidas mais longas hoje. Acho que precisamos de explorar novas tecnologias de vacinas, novos métodos de entrega, novos métodos de trabalhar”, refere. Se esse caminho passa necessariamente pela utilização de vacinas transmissíveis, está mais reticente, apesar de admitir que nesta fase é preciso “considerar todas as hipóteses”.