Se no dia anterior foi evidente o cerco dos Ricciardi a Ricardo Salgado, esta sexta-feira foi repetida a ideia do “total controlo” do ex-banqueiro no universo Espírito Santo através palavras de José Maria Ricciardi. Os lesados já não estão presentes nas sessões deste julgamento — só foram no primeiro dia —, mas segundo José Maria Ricciardi nem sequer existiriam lesados se o Banco de Portugal tivesse escolhido outro caminho. No quarto dia do GES/BES, além das críticas a Ricardo Salgado, que não foram novidade, Ricciardi concentrou os ataques e considerações em Carlos Costa.
As acusações de Ricciardi a Carlos Costa
José Maria Ricciardi foi chamado para testemunhar, mas não desperdiçou a oportunidade de falar sobre os motivos que acha que levaram à resolução do banco da família Espírito Santo. Ainda que não tenha relevância processual, uma vez que não envolve nenhum dos arguidos, nem é um processo que tenha impacto na falsificação das contas, a participação do Banco de Portugal e, sobretudo do antigo governador Carlos Costa, mereceram considerações.
Ricciardi voltou a atirar responsabilidades ao Banco de Portugal. Para si, a responsabilidade da resolução do BES é de Carlos Costa. “O BES era um banco sólido. Se não se tivessem posto a fazer resoluções, o BES estava cá. Por isso é que ponho as culpas no Banco de Portugal. Se não se tivesse feito a resolução e se tivesse emprestado quatro ou cinco mil milhões, o BES tinha sobrevivido e hoje era um banco ótimo. A forma como se conduziu a resolução, no meu entender patética, custou uma fortuna aos contribuintes e aos lesados, porque queriam fazer uma saída limpa e não queriam pegar em quatro ou cinco mil milhões para dar a um banco“.
Se não fosse o Banco de Portugal, no entender de Ricciardi, hoje não existiam lesados. Em 2014, a ideia de Carlos Costa e, consequentemente do Banco de Portugal, terá sido: “Vamos tomar a conta dos lesados, porque não é uma conta que afete o BES, que se lixem os lesados, e vamos deslocar esse dinheiro para os créditos das contas que a gente fez mal no Banco Espírito Santo”.
Já esta quinta-feira, Ricciardi acusou Carlos Costa de o ter convencido a continuar no grupo: “Em outubro de 2013 tinha ido ao Banco de Portugal demonstrar que não estava bem com a governance do dr. Salgado. E o senhor governador pediu para não me ir embora [do banco], para que tivesse calma.”
Esta reunião, no entanto, não é confirmada pelo antigo governador, que garantiu ao Observador ter consultado a sua agenda e constatado que não se reuniu com Ricciardi nessa data. E garantiu também nunca ter feito nenhum comentário depreciativo sobre os lesados.
O “medo” de Salgado
Nesta altura do julgamento, há ainda muitas questões por esclarecer e que vão sendo desvendadas ao longo das sessões. Uma delas foi partilhada pela juíza Helena Susano, que preside ao coletivo, perante mais uma resposta de José Maria Ricciardi. É que o primo de Salgado disse várias vezes, quer na sessão de quinta, quer na sessão desta sexta-feira, que sabia já em dezembro de 2013 que as contas tinham sido falsificadas, mas que a confirmação só chegou em maio de 2014.
[Já saiu o terceiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio e aqui o segundo.]
E acrescentou que antes de dezembro já tinha noção de que havia problemas com as contas do banco. Só não sabia exatamente quais. Mas para o coletivo a questão é: se sabia, seria o único? E por que razão foi o único a perceber o que se passava? Mais ninguém percebeu? A resposta foi dada, mais uma vez, para mostrar o controlo que Ricardo Salgado teria no banco: dentro do banco, as pessoas teriam “medo” do ex-banqueiro.
“– Mas porque é que o senhor teve essa clarividência que mais ninguém teve?
– Não sei se não tiveram ou se tiveram medo.
– Medo de quê? Quando temos medo, temos medo do escuro.
– Medo do dr. Salgado.”
A decisão de não confrontar o pai e Salgado com controlo total
Mas não foi só a questão da “clarividência que mais ninguém teve” que se quis esclarecer neste julgamento. António Ricciardi, cujo depoimento feito em 2015 foi reproduzido em tribunal esta quarta-feira, assumiu que assinava os documentos numa fase em que as decisões já estavam tomadas — estando, por isso, a compactuar, ainda que alegando não saber, com a falsificação das contas e com os sucessivos negócios ruinosos para o banco e para quem investiu.
Se António Ricciardi assinava os papéis e se o filho, que terminou o seu depoimento na tarde desta sexta-feira, sabia que as contas não estavam bem e depois teve até a confirmação, através do documento que diz ter obtido, e que envolve o contabilista Machado da Cruz, então por que razão nunca pediu esclarecimentos ao pai?
Desta vez, foi José António Barreiros, advogado de Manuel Fernando Espírito Santo, que pediu este esclarecimento. “Quanto isto tudo aconteceu, não confrontou o seu pai?”, perguntou o advogado do ex-membro do conselho superior do banco. E Ricciardi disse que não.
Apesar de não ter dito diretamente por que motivo não o fez, deu logo um exemplo que mostrava, no fundo, a confiança e a submissão que o pai, também fruto da sua idade já avançada, demonstravam em relação a Salgado.
“A única coisa que me magoou com o meu pai foi quando, em novembro, o meu pai votou a favor do dr. Salgado e contra mim”, acrescentou Ricciardi a José António Barreiros, em referência à reunião que aconteceu nesse mês. Nessa altura, António Ricciardi tinha assinado um documento feito pelo filho para afastar Salgado do conselho de administração — que contou com outras cinco assinaturas. Mas não só o documento desapareceu depois de Manuel Fernando Espírito Santo ter ficado com ele, como alguém contou ao ex-presidente do BES quais as pretensões de Ricciardi.
É depois deste documento para afastar o antigo banqueiro que Salgado acaba a dizer a Ricciardi que coloca o lugar dele no banco à disposição caso Ricciardi lhe desse o voto de confiança no conselho superior. “Quando ele me garantiu que ia abrir a sucessão, que se ia reformar, eu acreditei”, disse Ricciardi. Mas não foi isso que aconteceu e o pai acabou por votar contra si. Mais uma vez, Ricciardi quis mostrar, tal como aconteceu esta quinta-feira, que Ricardo Salgado “tinha poder total e não dava contas do que fazia”.