Era um caso antigo e foi arquivado a 8 de novembro de 2023, como o jornal Eco avançou a 29 de novembro. Estavam causa 12 procedimentos de contratação pública do escritório Linklaters, do qual Pedro Siza Vieira (futuro ministro da Economia de António Costa) era um dos sócios, e um custo total de cerca de 820 mil euros para a Câmara de Lisboa em ajustes diretos contratualizados entre 2013 e 2016.
Apesar de os eventuais suspeitos dos alegados crimes de participação económica em negócio e de prevaricação, crimes que deram origem à abertura do inquérito em 2018, serem Fernando Medina (como presidente da Câmara de Lisboa a partir de 2015), Graça Fonseca (vereadora que assinou uma parte dos contratos com a Linklaters) e Duarte Cordeiro (vice-presidente da Câmara de Lisboa que também está relacionado com a contratação pública da Linklaters), certo é que a investigação também envolvia António Costa enquanto presidente da Câmara de Lisboa entre agosto de 2007 e abril de 2015 — um facto desconhecido até agora.
Fernando Medina, Duarte Cordeiro, Siza Vieira e Graça Fonseca ilibados no caso de ajustes diretos
Contudo, e apesar de considerar que a contratação de serviços jurídicos deve ser precedida de concurso público, o DIAP de Lisboa não viu qualquer indício criminal nos factos apurados, não tendo sequer constituído qualquer arguido nem ouvido António Costa.
Costa e o gabinete de Manuel Salgado deram indicações para a contratação da Linklaters
O envolvimento indireto de António Costa nestes autos nasce do facto de as primeiras contratações da Linklaters terem ocorrido no seu último mandato como presidente da Câmara de Lisboa, nomeadamente em relação a dois processos: o da liquidação da EPUL e o do conflito judicial com a Bragaparques, no qual António Costa mudou a posição da autarquia por influência do seu aliado político José Sá Fernandes e com grandes custos financeiros para o município.
Falando, para já, do conflito com a Bragaparques, que durava desde o tempo de Carmona Rodrigues como presidente da Câmara. Estão em causa nove contratos assinados entre a autarquia e o escritório de Pedro Siza Vieira (a Linklaters) no valor total de cerca de 554 mil euros. O primeiro remonta a 14 de novembro de 2014, sendo certo que as suspeitas de fracionamento da despesa também não se confirmaram.
Qual é o problema? Segundo o testemunho de Paula Pires Coelho citado no despacho de arquivamento da procuradora Maria Leonor Cardiga, a diretora do Departamento Jurídico da Câmara de Lisboa “esclareceu que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa [António Costa] se encarregou pessoalmente das negociações [com a Bragaparques] e que contactou Pedro Siza Vieira”, antes de ter sido assinado o primeiro dos nove contratos da Linklaters com a Câmara de Lisboa.
E, refira-se, isso aconteceu quando a Câmara de Lisboa era defendida por outro escritório de advogados, a espanhola Garrigues. Foi Paula Pires Coelho quem teve de comunicar à Garrigues que, no âmbito das negociações com a Bragaparques, a edilidade seria representada pela Linklaters.
Mais: aparentemente, antes de ter sido assinado o primeiro dos nove contratos, e “à margem dos processos judiciais”, António Costa fez-se “acompanhar de Pedro Siza Vieira” e iniciou as negociações tendentes à realização de uma transação judicial” com a Bragaparques, lê-se no despacho do DIAP de Lisboa.
Siza Vieira, que viria a ser ministro da Economia de António Costa entre 2017 e 2022 (tendo chegado a ser também ministro de Estado), é um amigo de longa data de Costa, desde os bancos da Faculdade de Direito de Lisboa. Contudo, também é um conhecido e reputado advogado, com larga experiência em arbitragem e contencioso empresarial e que, inclusive, chegou a trabalhar na autarquia no início da sua carreira.
Já no caso da liquidação da EPUL, terá sido o gabinete do vereador Manuel Salgado quem indicou a Linklaters de Siza Vieira ao departamento jurídico da CML. Tatiana Santos Silva, funcionária daquele departamento, “foi informada por Ana Gracindo, do gabinete de Manuel Salgado, que não se apoquentasse com aqueles processos, uma vez que a Linklaters havia acompanhado o processo de dissolução e iria assumir a situação”.
A mudança promovida por António Costa devido ao acordo político com José Sá Fernandes
Para melhor enquadramento do processo Brapaparques é preciso perceber que António Costa promoveu uma mudança negocial profunda da Câmara Municipal de Lisboa na ação popular que José Sá Fernandes em 2005 tinha interposto contra a edilidade para anular o negócio de permuta dos terrenos do Parque Mayer (propriedade da autarquia) com os terrenos da Feira Popular (propriedade da Bragaparques). António Costa sai de ministro de Estado e da Administração Interna de José Sócrates para ganhar as eleições autárquicas intercalares e tomar posse como novo presidente da CML em agosto de 2007. Para conseguir uma maioria de 9 vereadores, Costa aliou-se à lista independente de Helena Roseta (que tinha conseguido 2 vereadores) e ao Bloco de Esquerda, cuja lista era liderada pelo advogado José Sá Fernandes.
Sá Fernandes tinha interposto em 2005 uma ação popular contra a CML para anular todo o negócio realizado com a Bragaparques. É com a aliança política entre Costa e Sá Fernandes que tudo vai mudar. A CML, que se opunha aos argumentos do agora seu vereador, alterou a posição.
Como a Câmara de Lisboa pode perder mais de 300 milhões para a Bragaparques
Em janeiro de 2008, o Executivo aprova por maioria uma deliberação proposta por António Costa na qual fica claro que a nova visão da CML é simples. Entre outros pormenores, a operação de loteamento dos terrenos da Bragaparques da Feira Popular aprovado em 2005 é nulo porque viola o PDM de Lisboa. O que significa que a empresa não pode construir naqueles terrenos, logo os contratos de permuta e de compra e venda realizados entre a autarquia e a empresa de Domingos Névoa são igualmente inválidos.
Na prática, a autarquia passou a concordar com o queixoso Sá Fernandes. O que, como é óbvio, aumentou substancialmente as probabilidades de a CML ser condenada na ação popular.
Foi o que, sem surpresa, aconteceu em 2010 por decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa — decisão que veio a ser confirmada em 2012 pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
E é aqui que começa a surgir a necessidade de contratar a Linklaters. António Costa vai buscar o seu amigo Pedro Siza Vieira para começar a negociar um acordo enquanto decorre a apreciação do último recurso da autarquia no Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, António Costa surpreende em 2014 ao anunciar um acordo com a Bragaparques que promove a paz judicial entre a autarquia e a empresa de Domingos Névoa e estipula os pagamentos totais de cerca de 101 milhões de euros por parte da autarquia à empresa de Braga entre junho de 2016 e junho de 2023.
Ao mesmo tempo que Costa também aceita a constituição de um Tribunal Arbitral para dirimir o valor da indemnização remanescente que a Bragaparques continuava a reclamar no valor total de 300 milhões de euros.
Quem representou a CML no Tribunal Arbitral foi precisamente Pedro Siza Vieira, tendo no final a autarquia perdido a ação em 2016 e sido condenada a pagar uma indemnização que poderia vir a custar cerca de 239,6 milhões de euros à autarquia.
No testemunho que prestou no DIAP de Lisboa, Siza Vieira revelou mesmo que “o processo foi muito traumático para os colegas que estavam na equipa do contencioso na Linklaters” devido ao resultado obtido. A arbitragem foi uma jogada arriscada de António Costa e a autarquia saiu claramente a perder.
No final do conflito, a Câmara de Lisboa veio a ser ‘salva’ pelo Tribunal Central Administrativo Sul que anulou a decisão do Tribunal Arbitral liderado por Menezes Cordeiro em 2021, com duras críticas à arbitragem. Contudo, a Câmara de Lisboa já tinha pago 101 milhões de euros à Bragaparques.
As razões para o arquivamento do inquérito no DIAP de Lisboa
Regressando ao inquérito do DIAP de Lisboa que escrutinou a alegada ilicitude da contratação da Linklaters por parte da Câmara de Lisboa. O arquivamento decidido pela procuradora Maria Leonor Cardiga a 8 de novembro de 2023 ocorreu devido às seguintes razões:
- “Os trabalhos foram executados, não nos cabendo apreciar do mérito de cada uma das soluções adotadas”, escreveu. Mais: “Pedro Siza Vieira tinha capacidade técnica e conhecimentos jurídicos nas referidas áreas de direito” para as quais os seus serviços foram contratados. Além disso, já tinha trabalhado anteriormente, no início da sua carreira como jurista, na Câmara de Lisboa e na EPUL, logo tinha conhecimento de como funcionavam as duas entidades.”
- “Os valores acordados e pagos ficaram aquém do trabalho realizado, tendo ficado a ideia de que era a relação pessoal de Siza Vieira com Costa que teria justificado tal ónus para a sociedade de advogados”. Logo, não houve qualquer favorecimento à Linklaters nem a CML e a EPUL “foram prejudicadas financeiramente”, lê-se no despacho.
- Por outro lado, a relação profissional entre Pedro Siza Vieira, Linklaters e CML não se iniciou com a celebração dos contratos. Há indícios fortes de que antes da celebração de cada um dos contratos já a sociedade e o advogado tinham trabalhado nas questões jurídicas e práticas em causa, tanto no que respeita à dissolução da EPUL, como também nos processos relacionados com o Parque Mayer.
- A procuradora dá mesmo o exemplo de que, antes da celebração do primeiro contrato com a Linklaters relacionado com o Parque Mayer (a 14 de novembro de 2014), “Pedro Siza Vieira acompanhou à data o presidente da CML [António Costa] às reuniões com a parte contrária [Bragaparques] e já havia tido intervenção escrita no assunto.”
- Mais: “foi o próprio Siza Vieira a ser notificado da sentença de um dos processos. Notificação essa que tem a data de 24/6/2024 (SIC). Motivos pelos quais se conclui que a intervenção do advogado nas questões jurídicas precede todos os contratos celebrados e neste caso em largos meses.”
Contudo, tal intervenção antes da assinatura de qualquer contrato não é censurada pela procuradora Maria Leonor Cardiga, visto que não tem qualquer problema criminal.
O próprio Pedro Siza Vieira explicou à magistrada que foi a sua “relação pessoal e profissional com o à data presidente da CML [António Costa] que teria conduzido” a tais “contactos prévios”.
Por outro lado, ficou igualmente claro pela voz da diretora Paula Pires Coelho e de outras testemunhas da CML que o departamento jurídico não tinha capacidade nem recursos humanos com conhecimento para defender a autarquia na arbitragem com a competência da Linklaters.
CML entendia que não era necessário concurso público para contratar Linklaters
Outro dado curioso do despacho de arquivamento do DIAP de Lisboa prende-se com o facto de a procuradora discordar da ideia do departamento jurídico da CML de que bastava o ajuste direto para contratar a Linklaters.
Paula Pires Coelho, diretora do Departamento Jurídico da CML, disse mesmo nos autos que, tendo em conta a “relação de confiança entre cliente e advogado, está excluída da aplicação das regras do Código dos Contratos Públicos, a seu ver, como estabelece a diretiva [europeia] que deu origem ao referido diploma”. Mais acrescentou a este propósito que, tendo sido já escolhido o advogado pelo presidente da CML [António Costa], não faria sentido lançar qualquer concurso, bem como nenhum dos contratos ultrapassava o limite material” de 75 mil euros imposto pelo Código dos Contratos Públicos.
Bragaparques perdeu uma fortuna mas já recebeu 101 milhões de euros
A procuradora Maria Leonor Cardiga fez questão de analisar a diretiva 2004/18/CE invocada pela CML para não ter aberto um concurso público e concluiu em sentido contrário. Porquê?
- Porque “os contratos de aquisição de serviços jurídicos não estão excluídos do âmbito de aplicação da diretiva, mas sim sujeitos a uma aplicação parcial da mesma, transitoriamente”;
- Por outro lado, “essa aplicação parcial não permite que a entidade adjudicante” opte por regra pelo ajuste direto em detrimento do concurso público, “uma vez que esse procedimento é, em princípio, proibido pelo direito comunitário primário e pela interpretação de que dele é feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”;
- Logo, “não se reconhece qualquer incompatibilidade na utilização” de concursos públicos para contratar serviços jurídicos, “mas tão só que se reconhecem esses serviços como não prioritários no estabelecimento do mercado interno”.
Acresce a tudo isto que, de acordo com a lei portuguesa, só os contratos superiores a 200 mil euros têm de ser alvo de concursos públicos.
Por outro lado, também é verdade que “a diretora do serviços jurídicos da CML” e outra responsável pelos contratos da EPUL “não estavam a par” nem tinham consciência jurídica “destas exigências” da lei europeia, logo o tema não tem relevância criminal.
As explicações de Pedro Siza Vieira no DIAP de Lisboa
Como já referido, Siza Vieira foi apenas ouvido como testemunha no DIAP de Lisboa, tendo tido autorização da Ordem dos Advogados para depor sobre temas que estavam a coberto do seu segredo profissional de advogado.
Siza Vieira esclareceu que “trabalhou na CML trinta anos antes, onde conheceu a testemunha” Paula Pires Coelho, a diretora do Departamento Jurídico da autarquia que também testemunhou nos autos. Nos anos 90, o advogado fez alguns trabalhos pro bono para a CML e outros para a EPUL, tendo em 2004 e 2005 integrado um grupo independente para a “elaboração de um projeto de revitalização da baixa pombalina e da zona ribeirinha de Lisboa”.
No que diz respeito à intervenção de António Costa na sua contratação, Siza Vieira deu uma versão diferente de Paula Pires Coelho. Enquanto esta afirmou que tal intervenção aconteceu, o ex-ministro da Economia apenas refere contactos da vereadora das Finanças da autarquia, que será Maria João Mendes, que lhe pediu “ajuda para resolver os problemas relacionados com a EPUL, que à data estava numa situação financeira muito complexa e de difícil resolução”.
Relativamente aos contratos celebrados entre o município de Lisboa e a Linklaters respeitantes ao Parque Mayer, Siza Vieira foi peremptório em afirmar que “o processo era muito complexo, envolvia milhões de euros, teve uma duração muito superior ao esperado e implicou a realização de perícias”, sendo igualmente certo que a decisão final do tribunal liderado por Menezes Cordeiro foi “horrível”, tendo havido a necessidade de recorrer da mesma.