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Um balanço positivo, mas com várias problemas ainda por resolver. É assim que os maiores hospitais do país — que além dos cuidados que prestam aos utentes, formam centenas de médicos todos os anos — avaliam os primeiros seis meses da mudança de organização para já famosas Unidades Locais de Saúde (ULS), estruturas que o anterior governo alargou a todo o território do continente e que integram os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários.
Ao Observador, os hospitais admitem dificuldades na integração dos cuidados e queixam-se do subfinanciamento crónico e da falta de recursos humanos para responder ao aumento da atividade logística relacionada com a integração dos centros de saúde — um problema criado pela indefinição da passagem de competências das Administrações Regionais de Saúde (ARS). Outro problema também criado pelo processo de transição de competências da ARS para as ULS, dizem os administradores, é o dos concursos para contratação de médicos, que foram lançados com atraso e estão a fazer emperrar as contratações.
Uma das dificuldades que as ULS têm enfrentado nos últimos meses diz respeito à integração dos cuidados, um conceito amplo que abarca dimensões como a coordenacão e a cooperacão entre as várias unidades operacionais, com o objetivo de gerar ganhos para o doente.
Integração de cuidados marca passo, à espera de decisão do governo
Com a integração de cuidados a funcionar em pleno, as ULS contam com equipas multidisciplinares e têm os médicos hospitalares a discutir com os médicos dos cuidados de saúde primários, a encontrar novas respostas com os assistentes sociais e até com as autarquias — de modo a decidir como diagnosticar os doentes, acompanhá-los e a decidir que tipo de respostas oferecer, explica ao Observador o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.
O problema é que, em muitas ULS, isto não está a acontecer. Xavier Barreto reconhece que o processo de integração está a ser implementado de forma lenta em algumas ULS, nomeadamente naquelas que incluem hospitais universitários, devido à incerteza quanto ao futuro do modelo nestes hospitais.
“Esta indefinição sobre o que vai acontecer a estas ULS abre a espaço a que algumas pessoas entendam que não é prioritário avançar na integração. Há a ideia de que pode haver uma reversão. O governo tem de dar indicações claras de qual é o caminho“, defende Xavier Barreto. Fonte da maior unidade ULS da zona de Lisboa, a ULS de São José, reconhece que a “integração de cuidados ainda não está bem oleada” nesta fase.
Contactado, o gabinete de imprensa da ULS de São José (que abarca oito hospitais da zona central de Lisboa, como o Hospital de São José, o Curry Cabral, Santa Marta, Estefânia ou Capuchos) sublinha que os principais desafios se “prendem justamente com a integração de profissionais de várias carreiras e com a criação de novos circuitos e fluxogramas de funcionamento, abrangendo os cuidados de saúde primários e as estruturas hospitalares”.
Problemático continua também o atraso nas extinção das ARS — um processo que muitos consideram ter sido mal gerido e feito de forma precipitada –, ao mesmo tempo que as competências destas entidades foram transferidas para as ULS. As responsabilidades transitaram, os trabalhadores não.
Demora na extinção das ARS cria dificuldades aos hospitais
“Quanto às ARS, é um problema grave que continua por resolver: não estão extintas, as pessoas ainda não transitaram para os hospitais e as ULS já assumiram as funções destas, nomeadamente a gestão dos cuidados de saúde primários”, critica o presidente da APAH, acrescentando que “houve alguma indefinição relativamente às compras, nomeadamente de vacinas e de outros materiais” e que o dossier foi “mal gerido pelo anterior governo”.
Uma crítica também audível nos hospitais. “O atraso da extinção das ARS tem tido impacto nas questões logísticas, de recursos humanos e informáticas. Desafios ultrapassáveis com boa vontade de todas as partes, contudo, atrasa e cria entropia nos processos“, sublinha ao Observador o presidente da ULS de Coimbra, Alexandre Lourenço. Há cerca de mil pessoas sem funções atribuídas nas ARS, à espera que seja publicado o decreto-lei de extinção das cinco ARS existentes no continente. Há dois meses, a ministra da Saúde dizia que estava a trabalhar com “serenidade” no processo mas, a meio de julho, não há novidades quanto a este tema.
A presidente da ULS de São João, a maior da região norte, critica também a demora na transição dos recursos humanos para a esfera da ULS e sublinha que a mesma equipa tem agora de dar resposta a muitas mais unidades. “Com aproximadamente o mesmo quadro de recursos humanos, temos agora de dar resposta a múltiplas unidades de saúde dispersas numa área geográfica muito considerável. Isto implica um esforço adicional das equipas e uma exímia capacidade de organização“, sublinha Maria João Baptista.
Dificuldades na transição de competências que já criaram problemas aos centros de saúde, onde chegaram a faltar vacinas e consumíveis elementares ao funcionamento destas unidades. Tudo porque, com a reforma das ULS, estas estruturas (que agora juntam os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários) ficaram, a partir de 1 de janeiro, com a responsabilidade de proceder à abertura dos concursos públicos para a aquisição dos materiais consumíveis usados pelos centros de saúde — concursos que eram lançados nos últimos meses de cada ano pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS), de modo a abastecer as unidades para o ano seguinte.
Centros de saúde podem ficar sem vacinas, pílulas e até pensos. Reforma das ULS atrasou concursos
As ULS estão a enfrentar um outro problema: o da contratação de médicos. O governo transferiu para as 39 ULS a responsabilidade de abrir os concursos e contratar os especialistas, abandonando o modelo que vigorava há décadas e que passava por um concurso centralizado e de âmbito nacional. Neste momento, e com o ano de 2024 já a meio, os concursos ainda nem sequer abriram e os hospitais apontam o dedo ao Ministério da Saúde.
Contratação de médicos atrasada. Administradores hospitalares culpam Ministério
“O Ministério demorou meses a definir como ia ser o processo. O anterior diretor-executivo tinha uma ideia, mas deixou de a ter a partir do momento em que se demitiu. Não sabíamos se os concursos iam ser centralizados ou se já eram as ULS a fazer isso. Depois definiu-se que seriam as ULS”, explica Xavier Barreto, criticando a indefinição que marcou o processo.
A somar a isso, e quando a tutela aprovou finalmente o número de vagas que cada hospital poderia abrir, a lista tinha erros, diz. “No dia 26 de junho, foi publicado a lista de vagas por hospital, lista que tinha erros. Foi publicada uma nova lista no dia 9, que só saiu para as vagas de médicos hospitalares e não para os cuidados de saúde primários”, explica o presidente da APAH, lembrando que a ACSS [Administração Central do Sistema de Saúde, entidade que centralizava os concursos] fez um esclarecimento apenas no dia 15.
Embora, entretanto, os hospitais já tenham constituído os júris, os médicos que acabaram a especialidade em março só deverão entrar nas unidades em setembro. “A minha expectativa é que o concurso abra nesta semana ou na próxima. Depois teremos um período de duas semanas para as pessoas concorreram, o que nos atira para agosto, e depois um período para reclamações. Na melhor das hipóteses, os médicos estarão contratados em finais de agosto, inícios de setembro“, critica Xavier Barreto, que sublinha que nunca houve um atraso tão grande.
“Isto é inexplicável, porque os médicos são um recurso essencial, o recurso mais escasso”, vinca.
Outra dificuldade que tem marcado os primeiros seis meses das ULS é a falta dos chamados Planos de Desenvolvimento Operacional, documentos em que as unidades explanam os investimentos e contratações de recursos humanos que precisam de fazer e que, a meio do ano, ainda aguardam a aprovação da Direção Executiva do SNS e do Ministério da Saúde. “Os hospitais continuam a não ter autonomia, nem para contratações nem para investimentos”, lamenta Xavier Barreto.
Neste momento, ainda não há decisões tomadas no Ministério da Saúde quanto à eventual reversão das Unidades Locais de Saúde em hospitais universitários. O que se sabe é que a ministra da Saúde é contra a extensão do modelo de ULS a estas unidades — porque considera que não é vantajoso e agrava o já crónico subfinanciamento — e que a revisão das ULS nestes hospitais faz parte do programa do governo. Em junho, Ana Paula Martins dizia no Parlamento que o “governo não tem nenhuma posição de princípio contra as ULS no seu todo”, mas sim “relativamente aos hospitais centrais e universitários” integrados nestas estruturas e cuja situação, realçou, está a revelar-se “muitíssimo difícil”. Ana Paula Martins já disse que “não há evidência suficiente a favor deste modelo”.
Hospitais queixam-se do subfinanciamento, que ministra acredita que se agrava nas ULS universitárias
A ministra teve sempre uma posição crítica em relação à transformação destas unidades em ULS, devido ao facto de estes hospitais receberem muitos doentes de fora da sua área de influência, o que faz com que o modelo de financiamento das ULS (que é por capitação, ou seja, calculado tendo em conta a complexidade de cada doente que reside na área do hospital) prejudique estas unidades e pelo facto de serem hospitais que tratam doentes mais diferenciados. Foi, aliás, por causa da discordância em relação à generalização do modelo aos hospitais universitários que Ana Paula Martins apresentou, no final de 2023, a demissão do cargo de presidente do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, agora ULS de Santa Maria.
A presidente da ULS de São João sublinha a falta de financiamento para dar resposta aos utentes que vêm de outros hospitais. “Os doentes seguidos nos cuidados hospitalares da ULS São João são maioritariamente fora da área geográfica. Exemplo paradigmático é a Neurocirurgia, em que este número atinge os 90%. Para continuar a garantir esta resposta, é essencial financiamento específico para aquisição de equipamento e investimento em estruturas físicas, suporte da investigação, bem como dotação de profissionais muito diferenciados e acesso a terapêuticas inovadoras”, sublinha Maria João Baptista.
Já o presidente da ULS de Coimbra diz que a transição para uma nova organização de cuidados, em integração com os centros de saúde, tem sido dificultada pelo crónico subfinanciamento dos hospitais da Universidade de Coimbra, que somam dezenas de milhões de euros de défice por ano. “Partimos de uma situação de subfinanciamento da componente hospitalar — o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra terminou o ano com uma situação financeira muito deficitária (cerca de 80 milhões de euros de défice) e isso tem impacto na nossa operação como Unidade Local de Saúde”, reconhece Alexandre Lourenço.
O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares sublinha que os hospitais têm “um problema de subfinanciamento” e um problema de caracterização da população (o que influencia o valor recebido por doente tratado), mas defende que o modelo de capitação — o das ULS — pode ser vantajoso, porque coloca o foco na promoção da saúde e não na produção hospitalar. “Não tenho a certeza de que pagar por produção seja melhor do que pagar por capitação”, diz Xavier Barreto, admitindo no entanto que o receio da ministra da Saúde tem fundamento, uma vez que os hospitais periféricos enviam doentes para os centrais sem que seja transferido o pagamento respetivo.
Decisão sobre ULS nos hospitais centrais na mãos de Adalberto Campos Fernandes
Num artigo de opinião escrito no Observador há poucos dias, Xavier Barreto defendeu as vantagens do modelo de capitação, que diz ajuda a “incentivar uma maior aposta na promoção da saúde”. “A capitação tem um vantagem enorme: o Estado antecipa os pagamentos e os hospitais deixam de querer produzir e passam a concentrar-se mais na prevenção da doença”, diz o presidente da APAH.
O problema do subfinanciamento dos hospitais universitários, agravado pelo modelo de Unidade Local de Saúde, vai ser um dos temas em análise no seio da nova Comissão Técnica Independente, liderada pelo ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes. O Observador sabe que o despacho que nomeia a equipa da comissão (que vai contar também com o conhecido cirurgião José Fragata) deverá ser publicado na próxima semana. À Comissão vai caber analisar, em conjunto com a tutela, o modelo de governação das ULS universitárias, a gestão e também a questão do financiamento.
Depois da análise técnica, o Ministério da Saúde vai decidir se reverte o modelo nos sete hospitais universitários do país (ULS de Santa Maria, São José, São João, Santo António, Coimbra, Cova da Beira e Algarve) ou se faz apenas alterações no modelo das unidades, mantendo a integração com os cuidados de saúde primários — um ponto que reúne consenso.
Ex-ministro Adalberto Campos Fernandes vai liderar avaliação às ULS em hospitais universitários
Ainda assim, nem tudo é negativo. As maiores ULS do país fazem um balanço globalmente positivo do primeiro semestre de funcionamento do novo modelo e sublinham que os ganhos devem começar a acentuar-se à medida que o modelo se consolidar. “No médio prazo, os ganhos em saúde, redução do desperdício e qualidade de serviços serão claramente notados pela população”, salienta o presidente da ULS de Coimbra, acrescentando que a unidade levou a cabo uma consulta junto dos funcionários para recolher ideias que pudessem levar a uma melhor integração dos cuidados. Chegaram 55 propostas e três estão a ser implementadas: nas áreas da diabetes, da insuficiência cardíaca e das doenças crónicas respiratórias.
A presidente da ULS de São João diz que já se sentem os ganhos de “proximidade entre as equipas de saúde hospitalares e de cuidados de saúde primários”, o que facilita o diálogo e a fluidez do circuito do utente na instituição, “com ganhos imediatos na qualidade de cuidados prestados”. Outro ganho imediato passa pela integração de profissionais, “antes relativamente isolados, em serviços de grande dimensão, com maior possibilidade de discussão e partilha de experiência”, dando como exemplo os psicólogos e os nutricionistas.
No médio prazo, estima Maria João Baptista, os ganhos prendem-se com a possibilidade de internalização de meios complementares de diagnóstico, “com benefício clínico e financeiro”, e com a possibilidade de realização de exames dentro da ULS articulada entre médicos de cuidados de saúde primários e hospitalares, o que permite “menos deslocações do utente, bem como uma resposta mais célere e eficaz”.
Em Santa Maria, o presidente da ULS, Carlos Martins, também faz um balanço positivo do modelo. “Crescemos cerca de 20% a atividade cirúrgica e temos crescido nas consultas e nos meios de diagnóstico terapêutico. Os factos dizem-nos que esta experiência está a ser positiva do ponto de vista da gestão, da sustentabilidade e do crescimento. Quanto ao cidadão, tenho de ter a humildade de reconhecer que temos ainda um longo caminho a percorrer. Mas também temos resultados. Já descemos o número de pessoas sem médico de família e estamos a introduzir um conjunto de mudanças para melhorar a articulação dos serviços, para que as pessoas não precisem de ir à urgência de Santa Maria para ter resposta, quando não têm médico de família”, disse o responsável à Rádio Observador, no podcast Pela Sua Saúde.