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Há duas noites que se ouviam gritos na casa de Joaquina de Jesus. A mulher, que vivia no lugar de Oliveira, na freguesia de Soalhães, em Marco de Canaveses, estava doente há cerca de um ano e o seu estado tinha piorado nos últimos tempos, levando a que o povo começasse a chamar-lhe “Joaquina, a tola”. Já sem esperanças de melhorias, nessa semana, um padre tinha sido chamado para lhe dar a extrema-unção, ao mesmo tempo que amigos e familiares se revezavam à sua cabeceira, rezando e fazendo defumadouros com folhas de oliveira. Aquele dia 25 de fevereiro de 1933 não foi muito diferente: Anastácio Pereira, vizinho, chegou a casa da “tola” e do marido António de Queiroz Correia durante a tarde com o seu exemplar do Livro de S. Cipriano, no qual a doente tinha muita fé. Segurando uma imagem de Cristo crucificado, Anastácio começou a ler, como era seu costume, excertos do livro de magia, que eram depois repetidos em coro pelos vizinhos que ali se costumavam reunir.
Por volta das sete da tarde, juntou-se ao grupo Alexandre de Oliveira, cunhado de Joaquina. Alexandre vivia na Lameira, na freguesia de Tabuado, e, ao saber que a cunhada não andava bem de saúde, decidiu fazer-lhe uma visita. Quando chegou, encontrou uma casa cheia: além de Anastácio, a doente, o seu marido e os seus seis filhos (o mais velho tinha 14 anos e o mais novo era ainda um bebé de colo), estavam também presentes Francisco e Manuel de Queiroz Correia, irmãos de António, a mulher deste último, Virgínia de Jesus, José Monteiro e a irmã, Arminda de Jesus Pereira, vizinha e amiga da “tola”, que costumava tomar conta desta durante as suas estranhas crises. Apesar de pobre, a casa de Joaquina e António tinha uma sala espaçosa com uma grande lareira, onde o casal costumava dormir com as crianças.
Joaquina, que nos últimos dias parecia ter perdido a cabeça, gritava descontroladamente, afirmando que era santa e que o espírito do sogro estava a falar através dela. Em seu redor, os vizinhos rezavam seguindo as indicações de Anastácio, o mestre-de-cerimónias. Apenas Alexandre se mantinha quieto, observando em silêncio. O agricultor de 39 anos não acreditava em nada do que a cunhada doida dizia. De repente, como que acordando de um transe, Joaquina, que parecia exercer grande influência sobre aqueles que a rodeavam, ordenou a Virgínia de Jesus e ao marido Manuel de Queiroz Correia que se deitassem no chão. Por breves momentos, Virgínia e Manuel pareceram deixar de respirar e todos acreditaram quando Joaquina anunciou que estavam mortos e que voltariam depois à vida. Quando o casal se ergueu, a “tola” voltou a ter um novo ataque. Arminda de Jesus, que também não andava bem, caiu para o lado, provavelmente desmaiada. Quem estava naquela casa, naquela noite, garante que, uma vez no chão, Arminda começou a rir sem parar, batendo palmas de braços no ar. Perante a cena, Joaquina de Jesus ordenou que a pusessem “lá fora” porque “trazia o diabo dentro dela”. Arminda estava “excomungada”.
O que se passou a seguir encheu as páginas dos jornais e deixou em choque a população da pequena freguesia de Soalhães: seguindo as ordens de “Joaquina, a tola”, os seus vizinhos e familiares espancaram, com paus de marmeleiro, Arminda de Jesus, queimando-a em seguida numa fogueira que fizeram a céu aberto por acharem que essa era a única maneira de expulsar o demónio que estava dentro dela. Apesar da barbaridade do crime, em momento algum os homicidas acreditaram que estavam a magoar Arminda. Segundo Joaquina, a mulher ressuscitaria de alma limpa na manhã seguinte. Quando amanheceu no dia 26 de fevereiro de 1933, o domingo antes do Carnaval, um dos criminosos passou pelo corpo carbonizado de Arminda para a ir chamar para a missa.
A misteriosa doença de Joaquina, “a tola”
Joaquina de Jesus Couto não andava bem. Três ou quatro anos antes, começara a ter uns estranhos ataques, que se manifestaram pela primeira vez quando estava a trabalhar no campo com o marido, António. Apesar de ter melhorado desse primeiro episódio, a doença voltou em força em 1932, piorando consideravelmente em maio desse mesmo ano. Por essa razão, a mulher de 37 anos começou a ser chamada por todos na aldeia de “Joaquina, a tola”. Alzira da Glória Pereira, que nasceu e cresceu perto do local onde morava a doida, garante que Joaquina era de facto “tola”, mas “tola para o mal”. “Andava tolinha e começou a dizer que a ia matar”, contou a mulher, hoje com 90 anos, a última sobrevivente da geração que assistiu ao chamado “Crime de Soalhães”. Apesar das ameaças, Arminda de Jesus não abandonou a vizinha quando esta mais precisou. A mulher, que vivia na casa ao lado com os dois filhos pequenos (o marido, Joaquim Pereira Alves, estava emigrado no Brasil), decidiu tomar a “tola” a seu cargo. Joaquina confiava nela: era a vizinha e comadre que costumava tomar conta dos seus filhos pequenos.
Numa altura em que as visitas ao médico eram raras e a superstição era resposta para quase tudo, no lugar começaram a atribuir o mal de Joaquina a “espíritos maus”. O pároco da freguesia de Soalhães, Joaquim Monteiro, que foi ouvido pelo juiz de Marco de Canaveses durante a investigação, admitiu às autoridades que a sua freguesia era “um foco de crendice e superstição” e que, apesar de todos os esforços que tinha feito, não tinha conseguido “ainda convencer aquela gente da inutilidade e falsidade da prática de benzeduras e bruxedos” a que recorriam “quando se encontram doentes”. Para Joaquina, os seus familiares e muitos outros, a solução para todos os males estava na bruxaria.
De tanto ouvir dizer que a sua doença era culpa do diabo, Joaquina convenceu-se de que era de facto esse o seu problema. O que, de acordo com o relato das testemunhas levadas depois a tribunal, não há-de ter custado muito: o cunhado da mulher, Alexandre de Oliveira, admitiu que a “tola” sempre tinha sido muito dada às rezas e às “benzedelas” e que gostava “muito de bruxas”. Foi, por isso, com toda a naturalidade que começou a organizar em sua casa rezas noturnas, coordenadas pelo vizinho Anastácio Pereira. Anastácio, um dos poucos habitantes de Oliveira que sabia ler e escrever, tinha uma edição do Livro de S. Cipriano, que insistia em manter apesar das recomendações do abade da freguesia, que já lhe tinha tirado um outro exemplar. O que de pouco valeu — Anastácio voltou a comprar um Livro novo em Penafiel, por 14 escudos.
Apesar das rezas e dos defumadouros, feitos com ingredientes que vinham descritos no Livro de S. Cipriano, a 22 de fevereiro de 1933 Joaquina de Jesus piorou. Como as orações pareciam não surtir efeito, a família decidiu consultar as bruxas da freguesia (segundo o testemunho do padre Joaquim, Soalhães era muito frequentado por “bentas e bruxas”). Emília de Jesus, que vivia no lugar de Ferreira, e Ana Pereira, de Pinheirinho, foram as primeiras. Engrácia Coelho, conhecida como a “bruxa de Baião”, a terceira. Terá sido, porém, Olívia Emília, que visitou a casa de Joaquina e António a 22 de fevereiro, que terá tido um papel mais relevante no tratamento da doente.
Olívia Emília de Jesus conheceu António de Queiroz Correia por mero acaso, quando se deslocou ao lugar de Oliveira para levar um saquinho de S. Solimão a uma vizinha de Joaquina, Maria da Glória, que tinha conhecido no ano anterior na apanha do linho. Olívia, que tinha prometido a Maria que lhe levaria um amuleto quando passasse pela zona, chegou a Oliveira por volta das dez da manhã de 22 de fevereiro. Ao passar por casa de António, este chamou-a para ir ver a mulher. Depois de ver a doente, Olívia Emília chegou à conclusão que o mal de Joaquina “não era de médicos, mas sim de duas almas que a assombravam”, uma boa e outra má. Estas eram de tal forma poderosas que até causavam dores no corpo à própria Olívia que, enquanto tremia e chorava, explicou à “tola” que não havia outro remédio — ia “sofrer sempre por determinação de Deus”. O seu mal só ia ter “fim quando morresse”. De acordo com os autos do processo, consultado pelo Observador, Olívia aconselhou Joaquina a fazer defumadouros com folhas de oliveira e incenso nos momentos de maior aflição. Estes deviam ser feitos durante três dias, sem interrupções.
O estado de Joaquina manteve-se no dia seguinte, 23 de fevereiro. Já perdendo a esperança de qualquer melhoria, a mulher pediu ao marido que chamasse o padre para se confessar. O abade da freguesia — o mesmo que tinha tirado, quatro anos antes, o Livro de S. Cipriano a Anastácio –, que morava no lugar de Eiró, deslocou-se a Oliveira nessa mesma manhã. Mas de nada valeram as suas rezas: assim que saiu porta fora, Joaquina de Jesus começou “a cantar o bendito, dando mostras de estar pior da sua doença”, relatou mais tarde o marido, quando foi ouvido pelas autoridades. Arminda passou essa noite com a comadre, que insistia em dizer que, durante os ataques, “via alminhas boas e alminhas más”. Anastácio também lá esteve, lendo excertos do Livro de S. Cipriano. As rezas foram retomadas durante a tarde do dia seguinte.
“Pegai-lhe fogo! Vai arder tudo!”
Tal como nos dias anteriores, na tarde de 25 de fevereiro, reuniram-se em casa de Joaquina de Jesus amigos e familiares. Quando chegou a Oliveira, vindo do lugar da Lameira, na freguesia do Tabuado, Alexandre de Oliveira encontrou “o poder do mundo” na casa da cunhada. Além dos dois irmãos de António de Queiroz Correia, Francisco e Manuel, encontravam-se também presentes Virgínia de Jesus, mulher de Manuel de Queiroz Correia, Arminda de Jesus e um dos filhos de Anastácio. Pouco tempo depois, chegou José Monteiro, irmão de Arminda, e a mulher. Todos rezavam seguindo as indicações de Anastácio Pereira, que lia o Livro de S. Cipriano. “A minha cunhada Joaquina dizia que era santa e que o falecido sogro estava a falar nela. Berrava, muito alterada”, contou mais tarde Alexandre ao juiz de Marco de Canaveses. Todos acreditavam menos ele.
Quem é que estava em casa da "tola"?
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Na noite de 25 de fevereiro de 1933, vizinhos e amigos reuniram-se em casa de Joaquina de Jesus para mais uma sessão de leitura do Livro de S. Cipriano, a cargo de Anastácio Pereira. Eis a lista dos que lá se encontravam:
- Joaquina de Jesus Couto, conhecida como “Joaquina, a tola”: 37 anos, lavradora e cunhada de Arminda;
- António de Queiroz Correia: 45 anos, lavrador e marido de Joaquina;
- Manuel de Queiroz Alexandre Correia, de 14 anos, e os cinco irmãos, filhos de Joaquina e António;
- Manuel de Queiroz Correia: 48 anos, jornaleiro e irmão de António;
- Virgínia de Jesus: mulher de Manuel Correia;
- Francisco de Queiroz Correia: 30 anos, lavrador e irmão de António e Manuel;
- Anastácio Pereira: 45 anos, lavrador, cunhado de Arminda e dono do Livro de S. Cipriano;
- Um dos filhos de Anastácio;
- Arminda de Jesus Pereira: 32 anos, lavradora;
- José Monteiro Alves: 36 anos, lavrador e irmão de Arminda;
- A mulher de José Monteiro.
Era já noite quando se deu a cena da morte e ressurreição e o estranho ataque de Arminda que todos atribuíram a forças do mal. Foi Alexandre, com a ajuda de Manuel de Queiroz Correia e José Monteiro, que levou a mulher para fora de casa, enquanto Joaquina gritava que a comadre estava “excomungada”. Lá dentro, ficaram Anastácio Pereira e os parentes de Joaquina, que continuaram a ler o Livro de S. Cipriano como se nada se tivesse passado. Todos rezavam de joelhos, enquanto Anastácio segurava um crucifixo com uma das mãos. Então, Joaquina ordenou-lhe “que fosse dar duas pancadas com uma vara de marmeleiro na Arminda”. Anastácio saiu para a rua.
Chegando ao pé de Alexandre, Manuel e José, o homem de 45 anos ordenou aos três homens que largassem a mulher e se retirassem. Depois, sem mais explicações, começou a bater em Arminda. Quando lhe perguntaram o porquê daquela cena, Anastácio Pereira explicou que ia espancá-la até que ela dissesse “ai meu Deus”, sinal de que estaria por fim livre de todo o mal. Dentro de casa, Joaquina apelava a que o vizinho lhe “batesse enquanto ela bulisse”. E é precisamente aqui que os relatos se tornam contraditórios, sendo que é difícil perceber exatamente o que é que aconteceu: quando foi ouvido pelas autoridades, Anastácio confessou ter batido em Arminda, mas apenas no ombro esquerdo, enquanto esta era segurada pelos dois vizinhos e pelo próprio irmão. Já Alexandre garantiu que, pelo menos inicialmente, Anastácio agiu sozinho, espancando Arminda enquanto esta se contorcia de dores no chão.
O que é certo é que assim que Arminda gritou “ai meu Deus”, os homens voltaram a levá-la para dentro. Segundo Anastácio, “depois das pancadas”, a mulher “continuou a gritar com uma voz esquisita” que o lavrador não soube explicar. Sinal, talvez, de que continuava com o diabo dentro dela. Joaquina parecia ser dessa opinião e insistia que a vizinha estava possuída, o que levou a que Anastácio a bater novamente em Arminda, levando-a depois “aos empurrões” para fora de casa. Alexandre terá tentado impedir uma segunda cena de pancadaria (pelo menos foi o que o próprio garantiu), mas Anastácio ter-lhe-á dito, furioso: “Sai daqui! Sem a Arminda dizer ‘Ai meu Deus’, não pode voltar a entrar em casa”.
Foi Anastácio, promovido a exorcista, que acendeu o lume com a ajuda de Francisco: acendeu um primeiro fósforo, que se apagou, pegando depois num segundo que usou para pegar fogo à lenha. “Com uma candeia de petróleo também incendiaram a caruma”, relatou o jornal do Porto. Enquanto Arminda ardia, o lavrador lia passagens do Livro de S. Cipriano. Os restantes gritavam que estavam a queimar o diabo. “Estava consumado o ato da mais repugnante barbárie de todos os tempos”, escreveu o Jornal de Notícias. Todos acreditavam que a pobre mulher haveria de ressuscitar. Mais tarde, no primeiro interrogatório judicial, Anastácio haveria de dizer que nunca teve intenção de fazer mal a Arminda, de quem era até muito amigo. “Eu sou o cunhado da Arminda, concunhado da Joaquina. Não queria mal a uma nem a outra. Só lhe dei duas vergastadas quando a vi caída, sem sentidos, a ver se ela arrebitava”, explicando que a cena toda teve apenas como objetivo “salvar-lhe a alma”, “livrar-lhe o corpo do ‘porco sujo’”. “Demais, estava no livro santo: ela havia de ressuscitar.”
Foi em casa de Anastácio que os vizinhos se reuniram depois do ritual. Esse, ainda embalado pelo exorcismo que acabara de praticar, confessou aos restantes que a sua filha Deolinda, de 16 anos, também tinha o diabo no corpo. Sem ter por onde escapar, Deolinda foi espancada. A jovem, porém, teve mais sorte do que Arminda: sobreviveu à sova mas, a partir daquela noite, nunca mais foi a mesma.
Todos viram, ninguém fez nada
Assustado com a cena macabra, Alexandre de Oliveira fugiu para casa do pai. Não chamou a polícia nem pediu ajuda, temendo que, se o fizesse, também seria atirado para a fogueira. E não foi o único: foram vários os habitantes de Oliveira e de outros lugares próximos que, ao se aperceberem que havia fogo junto à casa de Joaquina de Jesus Couto e de António de Queiroz Correia, se deslocaram até ao local com vasilhas cheias de água. Apesar do que viram, ninguém fez queixa. Ninguém disse nada. José Pereira foi um deles. Estava em casa — que ficava a uns cinco ou seis minutos a pé do sítio onde morava Joaquina — quando ouviu “dois gritos”. Quando chegou ao local, viu Arminda a ser atirada porta fora pelo grupo de homens, enquanto gritava “não me levais”. Quando se aproximou, Anastácio disse-lhe logo, “com ar de ameaça”: “Retire-se”. Temendo pela vida — e sem ter chegado a perceber exatamente o que é que se passava —, José decidiu voltar para trás. Enquanto regressava a casa, ainda conseguiu ouvir, ao longe, o som de Arminda a ser espancada.
João Augusto Pinho, um carpinteiro que vivia há quatro anos no lugar de Cadimes, chegou a casa de Joaquina mais ou menos na mesma altura que José. Ao Jornal de Notícias, relatou que tinham “dado onze horas” quando ouviu um grande alarido perto da casa da doida. Juntamente com um vizinho, João Pereira, acorreu a ver o que se passava. Durante os poucos minutos que permaneceu no local, ainda viu Arminda a ser arrastada pelos quatro homens para fora de casa. Quando Anastácio, António, Manuel e Francisco repararam nos dois homens, disseram-lhes para se retirarem. Caso contrário, faziam-lhes “o mesmo”. “Eles estavam medonhos. Um dos que veio à porta perguntou-me: ‘Estão aí os filhos?’. Decerto queriam também queimá-los!”, relatou João Pereira. Assustados, os dois amigos voltaram para casa. “Não vimos nem ouvimos mais nada”, acrescentou João Pinho. Questionado pelo jornalista do Jornal de Notícias sobre se tinha tentado ajudar Arminda de Jesus, o carpinteiro de Cadimes disse apenas: “Eu? Queria-o ver no meu lugar! Uma coisa é ver, outra coisa é dizer”.
A falta de reação parece ter sido geral. Joaquim Queiroz, de 21 anos, morava a cerca de 20 minutos da casa de Joaquina mas, ainda assim, conseguiu ouvir o som dos gritos da mulher que, de acordo com o testemunho que deu a 6 de março de 1933 em Marco de Canaveses, já acontecia há duas noites. Como os gritos não paravam, Joaquim, que já estava deitado, decidiu ir ver o que se passava. Ao chegar à rua, apercebeu-se que vinha fumo dos lados da casa de Joaquina. Pensando tratar-se de um incêndio, o lavrador, pegou numa vasilha com água e, juntamente com a irmã Maria, encaminhou-se para o local. Sem conseguir perceber do que se passava, Joaquim julgou que talvez estivessem a chamuscar um porco. Vendo-o chegar com a irmã, Manuel e Francisco de Queiroz Correia disseram-lhe que subissem, não precisava de ter medo. “Então, não conhecem quem é?”, perguntaram os dois homens a Joaquim e Maria, apontando para o fogo. Só então é que os dois irmãos se aperceberam que, numa fogueira acesa a céu aberto, estavam a queimar uma pessoa. Foram Manuel e Francisco que explicaram a Joaquim e Maria que era a “Arminda do Outeiro”.
Os vizinhos que acorreram ao local do crime
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Foram vários os habitantes de Oliveira e de outros lugares próximos que acorreram a casa de Joaquina na noite de 25 de fevereiro. Entre eles contavam-se:
- José Pereira: 59 anos, lavrador. No depoimento que deu em Marco de Canaveses, disse ser “tio por afinidade” dos irmãos Queiroz Correia;
- João Augusto Pinho: 28 anos, carpinteiro, natural de Fornos (Marco de Canaveses) e residente no lugar de Cadimes, perto de Oliveira;
- João Pereira: amigo de João Pinho, também residente no lugar de Cadimes;
- Joaquim Queiroz: 21 anos, lavrador, morava a 20 minutos a pé de Oliveira;
- Maria de Jesus Monteiro: 39 anos, lavradeira, irmão de Joaquim Queiroz;
- Manuel de Queiroz: 20 anos, lavrador, residente no lugar de Miraz (Soalhães).
Em choque, os dois irmãos não conseguiram reagir. Apesar da insistência dos dois Queiroz, decidiram regressar imediatamente a casa. Estavam de tal forma desorientados que, no depoimento que deram a 3 de março de 1933 em Marco de Canaveses, Joaquim Queiroz e Maria de Jesus Monteiro admitiram não se lembrar do caminho que fizeram até casa. Manuel de Queiroz (que tinha o mesmo nome que um dos criminosos), de 20 anos, também estava em casa quando ouviu um homem gritar “ai Jesus, Deus nos acuda”. Vendo luz ao longe, também julgou tratar-se de um incêndio. Pegou numa vasilha e dirigiu-se ao local, encontrando a mesma cena que Joaquim e a irmã Maria. Junto à fogueira, encontrou Manuel e Francisco de Queiroz Correia e a mãe destes, sentada junto ao lume. “Que é isto?”, perguntou Manuel. “É uma mulher”, responderam-lhe os criminosos, explicando-lhe que se tratava da “Arminda do Outeiro”. O irmão da vítima, que entretanto tinha ido a casa por ouvir a mulher gritar, voltou entretanto ao local. Enquanto olhava para a cena, desesperado, José Monteiro Alves chorava.
O corpo de Arminda ficou ao relento. Os cães vadios, dando com os restos mortais, atiraram-se a ele, esfomeados. “Foi um festim para aqueles irracionais esfaimados”, relatou o Jornal de Notícias, acrescentando que “as pernas da vítima, menos atingidas pelas chamas, foram devoradas pelos rafeiros”. José Alves passou a noite junto à fogueira, com a cunhada, Maria de Jesus, e a sogra, com o mesmo nome. A mulher, que tinha assistido a tudo, parecia ter enlouquecido: José foi dar com ela a bater nela própria.
O dia seguinte
O dia seguinte amanheceu frio. Joaquim Pereira, que morava no lugar de Lardosa, saiu bem cedo de casa. Na noite anterior, “estando à lareira em sua casa”, tinha ouvido gritos para os lados de Oliveira, “vindo fora, ver o que era”. Como sabia que Joaquina não andava bem e que tinha recebido a extrema-unção, convenceu-se de que a mulher tinha morrido e de que era esse o motivo da gritaria. Comentou isso mesmo com a família, que estava sentada consigo à lareira. No dia seguinte, depois de dar de comer aos bois e de ver como estava a égua que trazia no campo, fez-se à estrada e deslocou-se a Oliveira. Ao chegar ao pé da casa de Joaquina, deparou-se com um cadáver carbonizado, “impossível de reconhecer”. Nas casas ao lado, as janelas estavam todas fechadas e não havia ninguém na rua. Reinava o silêncio em Oliveira.
Joaquim dirigiu-se então a casa da “louca”. Ao contrário do que tinha suposto na noite anterior, encontrou Joaquina viva e de boa saúde, “com o lume aceso”. Perguntou-lhe o que se tinha passado, mas esta respondeu que não sabia. Joaquim Monteiro apareceu pouco tempo depois. Levava uma criança ao colo e chorava compulsivamente. Foi ele que contou a Joaquim que o corpo carbonizado que estava junto à casa de Joaquina era o da sua irmã Arminda, que tinha sido assassinada durante a noite. Ao Joaquim da Lardosa, Joaquim Monteiro explicou que não tinha chamado a polícia “por não ter quem lá mandar” e por “não poder abandonar a sua casa por sua mulher estar também doida”. Foi Joaquim Pereira que tomou a iniciativa de ir chamar o regedor.
Entretanto, os habitantes de Oliveira tinham começado a sair de casa, ao mesmo tempo que um sino anunciava a primeira missa do dia. A maioria, porém, nem chegou a sair da pequena aldeia. Foi o que aconteceu com o pai de Alzira da Glória Pereira. Ao Observador, a mulher de 90 anos contou que, naquela manhã, o pai saiu cedo para “ir à missinha”, deixando a mulher em casa com os filhos pequenos a preparar o almoço. Alzira tinha apenas quatro anos, mas lembra-se bem de todos os pormenores: pouco antes de o pai sair, a mãe acendeu o lume e pôs uma panela ao lume para fazer arroz. Quando o pai voltou, pouco tempo depois, “muito aflito”, gritou: “Ó Cândida, bota água ao fogo! Anda cá! Anda cá ver!”. Sem perceber o que se passava, Cândida agarrou nos filhos mais pequenos e saiu porta fora atrás do marido. Não muito longe dali, junto à fogueira já extinta, deparou-se com um corpo tapado por uma manta. Talvez por curiosidade, a mulher decidiu levantar o pano, deixando à vista o que sobrava do corpo queimado de Arminda. Alzira da Glória Pereira nunca se esqueceu daquele momento. “Estava coberta por uma manta, mas a minha mãe levantou-a”. O que viu marcou-a para toda a vida: a cara de Arminda estava preta, como o carvão, e no chão, junto à cara desfeita, estavam as argolas de ouro que costumava usar.
À medida que os homens e mulheres de Oliveira iam saindo de casa, o grupo de pessoas em torno do que restava da fogueira que tinha queimado Arminda ia aumentando. Manuel Pereira, de 45 anos, estava a regressar a casa vindo da missa quando “ouviu chorar” e pessoas a falarem muito alto. Quando se aproximou é que se apercebeu do que se tinha passado. Francisco Monteiro, outro habitante de Oliveira, contou às autoridades que ouviu dizer a vários vizinhos que Anastácio Pereira tinha saído de casa logo pela manhã “com um picareto, provavelmente para enterrar o cadáver da infeliz Arminda antes de se dar com ele”. Contudo, vendo “o povo que lá se juntara”, teria desistido da ideia.
Joaquim Monteiro Soares, o regedor, chegou ao local por volta das oito da manhã, acompanhado pela polícia e pelo regedor substituto, Cláudio Monteiro, que era seu sobrinho. Do cadáver só restavam “quase os ossos”, escreveu O Primeiro de Janeiro a 2 de março. Depois de confirmar a história relatada por Joaquim Pereira, o regedor procedeu à detenção dos “criminosos Anastácio Pereira, Manuel de Queiroz Correia, António de Queiroz Correia, Francisco de Queiroz Correia e Manuel de Queiroz, menor”, como refere o relatório que enviou para o Administrador do concelho de Marco de Canaveses, datado desse mesmo dia 26 de fevereiro. Dos cinco suspeitos, apenas Anastácio terá tentado evitar a detenção, chegando mesmo a agredir Joaquim Monteiro Soares, “que teve de ser enérgico para efetuar a prisão”, segundo o relato de O Primeiro de Janeiro. Claudino Monteiro Soares, que deu ordem de prisão a Anastácio, contou aos investigadores que este ter-se-á mostrado muito admirado, dizendo simplesmente: “Não sei porque me prendeu. Não cometi crime algum”.
António Oliveira, que também vivia no lugar de Oliveira, estava no local quando os cinco homens foram capturados. Como tinha uma espingarda que tinha pedido emprestada a um vizinho, o regedor convidou-o a acompanhá-lo até Marco de Canaveses — onde os suspeitos iam ficar detidos nas “cadeias civis” — e guardar um dos criminosos. Durante o caminho, António perguntou ao suspeito porque é que tinham matado Arminda. O detido explicou-lhe que tudo tinha sido obra do diabo e que “mais não fizeram” porque Joaquina não tinha mandado. António de Queiroz Correia passou a viagem inteira de mãos erguidas, a cantar e a rezar.
Como nos tempos da Inquisição
Nos dias seguintes, não se falava de outra coisa em Oliveira. Os vizinhos, indignados com o crime, tentavam perceber como é que um grupo de homens que nunca tinham feito mal a ninguém tinha sido capaz de matar uma mulher inocente, de quem todos gostavam. Apesar de a notícia ter chegado rapidamente a Marco de Canaveses, onde era tema de conversa nos cafés da vila (a localidade só foi elevada a cidade em 1993), o resto do país só ficou a saber da morte de Arminda alguns dias depois. No dia a seguir ao homicídio, 26 de fevereiro de 1933, a capa de O Primeiro de Janeiro, um dos principais jornais do Porto, era dedicada ao “Domingo Gordo”, o primeiro dia de Carnaval que, “de ano para ano”, se mostrava “mais sensaborão, mais pelintra e menos espirituoso”. “As crianças, envergando lindas fantasias e trajes tradicionais, são o que resta do Carnaval de tempos antigos”, lamentava o diário.
Foi só a 28 de fevereiro que a notícia do “Crime de Soalhães” chegou aos jornais, incluindo ao próprio O Primeiro de Janeiro. Num artigo intitulado “Cena macabra: como nos tempos da Inquisição”, o diário portuense admitiu que tinha recebido informação relacionada com o assassinato ainda no domingo, dia 26, mas que tinha escolhido não a pôr no “placard” porque parecia mentira. “Tão extraordinária e inverosímil ela nos pareceu que duvidamos da sua autenticidade e não a inserimos no nosso placard de ontem [27 de fevereiro]. Como estamos em período de Carnaval, tratar-se-ia duma blague? Infelizmente tal não sucede. A notícia é realmente verdadeira e enviada pelo nosso correspondente de Soalhães”, referia o artigo. Foi só quando o enviado de Soalhães confirmou as notícias, que os responsáveis pelo jornal decidiram publicá-la.
O Jornal de Notícias também só divulgou o incidente a 28 de fevereiro. Numa notícia mais longa do que a d’O Primeiro de Janeiro, o diário relatou pormenorizadamente a “tremenda tragédia” que atingiu “a pacata vila do Marco de Canaveses”. “Se o nosso espírito voar e nos transportar às longínquas épocas da Idade Média, não encontra cena tão selvagem e revestida de tanta perversidade como aquela que vamos narrar”, começava a notícia. “A realidade dos factos, porém, convence-nos de que sob este lindo céu azul, que num enorme e divino amplexo estreita toda a humanidade, há feras humanas muito mais ferozes do que as feras do monte. As cenas horríveis que vão ler-se não se passaram em remotas paisagens do sertão onde não tenha entrado a luz da civilização ou da fé. Foi aqui a tenha — Marco de Canaveses.”
Assim, o crime que chocou Soalhães acabou também por chocar Portugal. “A selvajaria praticada em Soalhães, concelho de Marco de Canaveses, causou a mais profunda emoção em todo o país”, escreveu O Primeiro de Janeiro. Oliveira passou a estar no mapa.
Ganância, bruxaria ou hipnotismo?
Detidos os presumíveis culpados (depois de Anastácio Pereira, Manuel de Queiroz Correia, António de Queiroz Correia, Francisco de Queiroz Correia e Manuel de Queiroz Alexandre Correia, foi ainda detida Joaquina de Jesus Couto), começaram as investigações, a cargo dos agentes João Pereira e Cipriano Maria da Silva, de Vila Nova de Gaia, sob a direção do Administrador de Marco de Canaveses, tenente Manuel Teixeira de Macedo. A autópsia do corpo foi feita a 27 de fevereiro, dois dias depois do crime, pelos médicos João Leal e Amadeu Encarnação, também de Marco de Canaveses. De acordo com o relatório final dos peritos, datado de 2 de março de 1933, anexo ao processo consultado pelo Observador, o corpo de Arminda de Jesus encontrava-se “completamente carbonizado, com queimaduras de segundo e terceiro graus”, nos “membros superiores, tórax, abdómen, face interna dos membros inferiores, dorso e períneo”, de tal forma que nem dava para perceber se o cadáver pertencia a um homem ou a uma mulher. A cara também estava “completamente” queimada.
Na cabeça da vítima, os médicos João Leal e Amadeu Encarnação encontraram “uma fratura linear do parietal esquerdo e sangue no meio longitudinal superior”. Contudo, esta não era suficientemente grave para “provocar a morte imediata, embora a pudesse originar posteriormente”, o que levou os médicos a concluírem que, “tendo conhecimento pelas informações recolhidas que as lesões pelo fogo foram feitas logo depois da agressão que provocou a fratura, deve a morte ter tido como causa imediata as queimaduras”. Por outras palavras: apesar de ter sido espancada com paus com cerca de três centímetros de diâmetro, Arminda de Jesus não morreu da tareia que levou e que lhe provocou uma fratura no crânio. A mulher de 32 anos morreu queimada.
A polícia, que parecia ter dificuldades em acreditar que um crime tão violento tivesse sido cometido apenas por superstição, começou a explorar outras possibilidades. O processo, hoje guardado no Museu do Tribunal da Relação do Porto, e os jornais da época, dão conta do interesse das autoridades na teoria de que a morte de Arminda de Jesus se tinha devido a um roubo e que tudo estava relacionado com dinheiro. Durante os interrogatórios, que arrancaram a 3 de março em Marco de Canaveses, Manuel Pereira, de 45 anos, contou ter visto, no momento das detenções em Oliveira, o filho mais velho de António de Queiroz Correia, Manuel, a atirar um porta-moedas para dentro de casa. A carteira, recolhida pelo regedor substituto, Claudino Monteiro Soares, tinha no seu interior duas notas de 100 escudos e uma receita médica para uma criança.
Interrogado pelas autoridades, Anastácio Pereira admitiu que devia dinheiro a Arminda. “Tive uma doença há uns anos que me levou para cima de oito notas [oitocentos escudos]. Morreram-me cinco filhos. Na doença e nas mortalhas, gastei o que tinha e o que não tinha”, afirmou, confessando que devia a toda a gente, não só à vítima, que guardava quase tudo o que tinha no banco e muito pouco em casa. De acordo com o Jornal de Notícias de 2 de março de 1933, Arminda tinha apenas “um pequeno terreno arrendado, duas ou três ovelhas e o pouco que o marido lhe mandava do Brasil”. Mulher poupada, tudo quanto recebia era depois depositado numa conta na Caixa Geral de Depósitos, para render juros. Só que Arminda não recebia nada há dois anos. “Aquilo lá pelo Brasil a modos que está pior do que cá. Sei que tinha 2.800 escudos na Caixa Económica. Constou-se-me também que tinha dinheiros emprestados. Ao certo, não sei”, contou o sogro da vítima, António Júlio Pereira, de 70 anos, ao Jornal de Notícias. Segundo um artigo publicado n’O Primeiro de Janeiro, a 2 de março, Arminda fez o último depósito na agência da Caixa em Marco de Canaveses a 11 de agosto de 1932. Nessa data, depositou 1.800 escudos. Ao todo, tinha 2.892 escudos no banco — tal como adiantou António Júlio Pereira –, onde a vizinha e amiga Joaquina também tinha conta bem recheada.
Excluído o interesse financeiro, os agentes João Pereira e Cipriano Maria da Silva viram-se para outro lado: a bruxaria. Teriam os assassinos de Soalhães matado Arminda por iniciativa própria ou teriam sido levados a isso? Vários testemunhos deram conta da visita de bruxas a casa de Joaquina de Jesus, o que talvez ajudasse a explicar os acontecimentos de 25 de fevereiro. Havia, porém, quem atribuísse ao crime uma outra causa: “Dizem que a Joaquina de Jesus tem um grande poder hipnótico e tanto que tendo agredido alguns dos autores da barbara cena, deixando-os inanimados. Momentos depois intimava-os a levantarem-se, sendo prontamente obedecida!”, escreveu O Primeiro de Janeiro, a 2 de março. “E tanto assim, acrescentou-nos o obsequioso informador, que uns julgam já terem morrido e ressuscitado, dizendo até um deles que se não estivera bem morto, mas pouco faltará.”
Olívia Emília, a “bruxa de Gaia”
A 28 de fevereiro, o Administrador do concelho de Marco de Canaveses, Tenente Macedo, e o Secretário da Câmara, António Babo, acompanhados pelo chefe Alberto da Fonseca e pelo agente João Pereira, da Polícia de Investigação de Gaia, foram bater à porta de Olívia Emília de Jesus Vieira, uma mulher de 58 anos, natural de Soalhães, que vivia na Rua Barão do Corvo, em Vila Nova de Gaia. Olívia, que se vestia “modestamente” e tinha “abundantes cabelos brancos” — de acordo com a descrição do repórter de O Primeiro de Janeiro, que acompanhou a diligência –, mostrou-se surpreendida e até despreocupada com a visita das autoridades policiais, chegando mesmo a sorrir para o fotógrafo de O Primeiro de Janeiro. “Nem que o meu crime justifique este aparato! Mas Deus lá está para dar o pago aos meus detratores!”, exclamou a chamada “bruxa de Gaia”.
Olívia foi levada de carro para Marco de Canaveses, onde decorria a investigação, por volta das sete da tarde. Questionada pela polícia, a mulher, “que se dedicava ao mister de benzedeira”, confessou que recebera uma carta para ir a Soalhães “consultar” uma doente e que aceitara porque não tinha regateado a despesa. (Entre as suas coisas, as autoridades encontraram de facto uma carta assinada por Francisco Vieira, seu parente, que vive em Soalhães, na qual este lhe pedia que ajuda para um caso urgente). Além disso, confessou que lhe agradou a ideia de poder visitar a sua terra natal, por onde acabou por passar a 22 de fevereiro, uma quarta-feira, informação que foi confirmada pelo próprio António de Queiroz Correia, marido de Joaquina, em interrogatório.
Depois de uma longa conversa com as autoridades, Olívia foi conduzida pelos agentes da polícia de Gaia aos calabouços, onde passou as noites seguintes. Enquanto subia pesarosamente as escadas, com um ar cansado e queixando-se do coração, lamentou em voz alta: “Que culpa tenho eu de a queimarem? Não a mandei queimar!”. De pouco lhe valeu o lamento: naquela altura, a polícia estava convencida de que Olívia Emília sabia muito mais do que dizia.
A vida de Olívia Emília de Jesus Vieira também tinha algo de trágico. De acordo com uma investigação de O Primeiro de Janeiro, publicada na edição de 2 de março do diário, Olívia teria vivido durante alguns anos com um brasileiro rico conhecido por António Canelas, que morava na Rua Visconde das Devesas, também em Vila Nova de Gaia. Quando António morreu, Olívia recebeu em testamento o palacete onde viviam e alguns terrenos em Serzedo, nos arredores da cidade. Habituada a outros luxos, Olívia Emília depressa se apercebeu que o rendimento que provinha das propriedades não lhe chegava para as despesas domésticas, o que “a levou à prática de bruxedo e outras invencionices”, escreveu O Primeiro de Janeiro.
Olívia mudou-se então para uma outra casa, mais modesta, na Rua José Mariani, onde, na porta interior, colocou um letreiro anunciando que dava consultas por dois escudos: “Consultas a 2$00. Quem quer, quer; quem não quer, não quer”. Com o dinheiro que tirava das propriedades e com o que ganhava com as mezinhas, Olívia tinha uma boa vida. O que não passou despercebido a um jovem vizinho, filho de um industrial de tanoaria que vivia em Oliveira do Douro. Com os olhos no dinheiro de Olívia Emília, o rapaz decidiu pedir a mulher, vários anos mais velha, em casamento. Olívia aceitou. A cerimónia foi realizada em finais de 1928.
As primeiras desavenças surgiram pouco depois. Em fevereiro do ano seguinte, apenas dois meses depois de Olívia ter dado o nó com o seu príncipe da indústria de tanoaria, este apresentou uma queixa na polícia por ter sido ameaçado com uma arma pela mulher. O divórcio foi oficializado e os bens distribuídos pelos dois. Mais uma vez em dificuldades, Olívia Emília teve de vender tudo o que tinha e mudar-se novamente, desta vez para a Rua André de Castro, no lugar de Barrosa, onde recomeçou o negócio da bruxaria, “explorando-o em larga escala”, segundo O Primeiro de Janeiro. Em 1932, cerca de um ano antes da tragédia que assolou Soalhães e também a sua vida, a chamada “bruxa de Gaia” regressou à Rua Barão do Corvo, onde vivia então um seu sobrinho, o alfaiate Vieira. Apesar de sempre ter procurado exercer a sua profissão com algum “recato” por causa da vizinhança, pouco tempo antes da sua detenção, Olívia foi chamada à polícia, onde foi multada “por exercer a prática de exorcismos e benzeduras”. Na altura em que foi visitada pelas autoridades, a 28 de fevereiro de 1933, Olívia Emília de Jesus Vieira preparava-se para mudar outra vez de casa.
Joaquina, a oficialmente tola
Joaquina de Jesus Couto foi presa a 27 de fevereiro de 1933 e desde logo se questionou a sua sanidade mental. Contudo, as provas pareciam apontar no sentido contrário: Libânia de Jesus Rufina, de 42 anos, contou às autoridades que, na noite de sexta-feira antes do crime, Joaquina lhe disse que se ia realizar um milagre em sua casa no dia seguinte. A previsão foi feita perante o marido, António, os irmãos deste, Francisco e Manuel, e a própria Arminda, que, de acordo com Joaquina, seriam testemunhas do milagre. Este levaria gente “de cima do lugar e do fundo” à casa de Joaquina, e o “Zé Povinho”, a chorar, diria que Anastácio Pereira era bruxo e Joaquina bruxa. O viúvo da vítima, Joaquim Pereira Alves, também se mostrou convicto de que o homicídio da mulher tinha sido premeditado e planeado com antecedência. De acordo com o homem, que procurou obter informações sobre o sucedido assim que chegou a Portugal, na manhã do dia 25, os vizinhos muniram-se de pás e picaretas para que, à noite, pudessem esconder o corpo de Arminda. Além disso, segundo Joaquim, Anastácio já tinha querido fazer o mesmo ao seu próprio pai.
Uma vez detida em Marco de Canaveses, Joaquina começou a sofrer de longas crises. Não comia nem dormia, e passava as noites a falar, a cantar ou a rezar. Nos momentos de maior loucura, insultava quem por ela passava, despia-se e atirava a roupa para fora da cela. Uma vez, atirou-se ao carcereiro da cadeia, David da Silva, que tinha entrado na divisão onde a mulher se encontrava para tirar uma lâmpada, com medo que a louca a partisse. Num acesso de fúria, Joaquina agarrou-se a David e à sua gravata. O carcereiro só se conseguiu livrar dela depois de a sua mulher, que estava de visita, ter aberto a porta a um outro preso. Este, com a ajuda do contínuo da secção administrativa, João Pinto Babo, conseguiu atirar “Joaquina, a tola” para o fundo da cela e fechar rapidamente a porta.
Num dos poucos momentos de lucidez, Joaquina de Jesus confessou — durante “um ligeiro interrogatório verbal que foi assistido pelo carcereiro” — ter sido cúmplice na morte de Arminda. Mais tarde, porém, mostrou-se admirada ao saber que a vizinha tinha sido morta e queimada por ordem sua, até porque as duas eram bastante amigas. Questionada pelas autoridades a 8 de junho de 1933, explicou que tinha estado com “o juízo perdido” desde inícios de fevereiro até 17 de abril, domingo de Páscoa, não tendo qualquer ideia do que tinha acontecido na noite de 25 de fevereiro. Apesar de pouco provável, Joaquina afirmava categoricamente que, daquele período, apenas se lembrava de que, durante os primeiros oito dias da doença, tinha tido muito frio e que, por isso, costumava pôr-se ao sol. Não comia e tinha muitas dores de cabeça.
A verdade é que, quando foi feito o primeiro “exame de alienação mental”, a 4 de abril de 1933, os médicos encontraram-na deitada no chão da cadeira, embrulhada no que sobrava dos cobertores que tinha desfeito com as próprias mãos, “toda esfarrapada” e “num mutismo absoluto”. Se era fita, isso não ficou registado. Neste primeiro exame, foi concluído que já o pai “tinha crises epiléticas”, que o avô paterno “sofria de alienação mental” e que um irmão tinha “crises nervosas”. Joaquina, que aparentemente também sofria de epilepsia, tinha “crises histéricas” desde a juventude, que se tinham agravado com a idade. “Fora das crises”, governava “a casa” e era “amiga da família”. Os médicos diagnosticaram-na com “histero-epilepsia”.
A histeria, um termo que entretanto caiu em desuso entre a comunidade médica, era usado para falar sobre o que hoje se chama episódios dissociativos ou conversivos. Estes últimos estão relacionados com uma alteração quantitativa da consciência, que causa dormência nos membros e até paralisia. Os primeiros dizem respeito a uma alteração qualitativa da consciência, durante o qual o doente entra num estado de quase sonho, existindo perda de memória, sintoma que corresponde ao descrito pela “tola”. Joaquina, porém, parecia também ter convulsões, o que corresponderia mais ao diagnóstico de epilepsia, mesmo não sendo epilética (daí a classificação de “histero-epilepsia”). Qualquer um destes episódios costuma ser de curta duração.
Este relatório, contudo, parece não ter sido suficiente para o Tribunal de Marco de Canaveses que, em finais de 1933, ordenou um segundo exame médico-legal, realizado com base em exames feitos em 25 de outubro e 20 de dezembro de 1933, no Hospital do Conde Ferreira, no Porto. Apesar de concordarem, em parte, com o diagnóstico feito durante a primeira perícia — “em face destes dados é incontestável que estamos na presença de uma histérica com ataques e estados crepusculares”, ou seja, de perda de consciência –, os médicos responsáveis pelo segundo relatório defenderam que a “duração bastante grande do episódio delirante durante o qual teve lugar o crime” tornava “verosímil a hipótese de que ao habitual mecanismo dissociativo da síntese psíquica, que preside ao determinismo destes estados, se viesse juntar, no caso presente, um elemento etio-patogénico”. Para os responsáveis, o diagnóstico deixava claro que, ao contrário do que tinha sido inicialmente defendido, Joaquina de Jesus não constituía, “de futuro, um perigo para a ordem e segurança pública” porque o crime que tinha ajudado a cometer não tinha sido “apenas um produto direto e imediato da sua psico-nervose”, mas sim a “consequência de um somatório de fatores que dificilmente” se poderiam “conjugar de novo”.
Comparando o que se passou na noite de 25 de fevereiro em Oliveira às “epidemias nevróticas” da Idade Média, os médicos do Instituto de Medicina Legal do Porto consideraram que, além da arguida, também tinham tido “ataques histéricos” Manuel de Queiroz Correia, a sua mulher, Virgínia, o menor Manuel Queiroz Correia, a própria vítima e a sua cunhada, mulher do irmão José. “À personalidade mórbida da arguida, podemos juntar a superstição, a ignorância, a rudeza intelectual de todos os figurantes deste drama sombrio e medievo, não devendo esquecer-se a influência nefasta das sugestões da bruxa Olívia. A noite de 25 de fevereiro veio estalar, em ponto pequeno e localizada, uma dessas epidemias nevróticas tão frequentes na Idade Média”, refere o relatório de 30 de dezembro de 1933, consultado pelo Observador. Isto queria dizer que Joaquina, uma histérica com um grande poder de sugestibilidade, teria passado a sua histeria àqueles que a rodeavam, como se de uma verdadeira epidemia se tratassem. Por sugestão, Anastácio Pereira e os irmãos Queiroz, teriam ficado também “histéricos”.
Os responsáveis concluíram também que Joaquina sofria de “histeria”, que o crime de que era acusada “foi praticado sobre a influência da sua psiconevrose”, não tendo, por isso, qualquer responsabilidade criminal. Além disso, era também “de presumir” que a arguida não constituísse “um perigo para a ordem e segurança públicas”. Assim, a 15 de fevereiro do ano seguinte, quase um ano depois do crime que resultou na morte de Arminda de Jesus, o juiz do Tribunal de Marco de Canaveses ordenou a libertação de Joaquina, agora oficialmente dada como tola: “Visto que o que consta do relatório junto aos autos apenso, defiro a providência do digno agente do Ministério Público declarando a arguida Joaquina de Jesus irresponsável e, por isso, sem efeito de acusação contra aquela arguida, visto ser a seu favor a circunstância dirimente da falta de imputabilidade. E visto que do relatório médico-legal consta que ‘não é de presumir que a arguida constitua um perigo para a ordem e segurança públicas’ e por que não é indigente, e tem família, ordeno que seja posta em liberdade”.
No mesmo interrogatório de 8 de junho de 1933, Joaquina de Jesus disse que ia voltar ao trabalho assim que fosse posta em liberdade. Queria ajudar a sustentar os filhos mas também os de Arminda, garantindo que, enquanto tivesse pão em casa, não faltaria comida a Manuel, de oito anos, e Evangelina, mais nova.
O julgamento e a loucura de todos
A investigação foi curta. Afinal, os culpados tinham há muito admitido o crime, havia dezenas de testemunhas oculares e poucas dúvidas em relação aos motivos do homicídio (Olívia Emília acabou por ser sair em liberdade depois de alguns dias detida). Depois de ilibado Manuel de Queiroz Alexandre Correia (o filho mais velho de António e Joaquina) por falta de provas e libertada a sua mãe, foi marcada a primeira sessão do julgamento, para 22 de maio de 1934. Os principais indícios físicos eram “dois livros em bom estado, de São Cipriano, pertencentes ao arguido Anastácio, bem como se encontram nesta administração, e quatro varapaus, um dos quais partido”, usados para agredir a vítima. As testemunhas eram mais de 40 — 18 de acusação e 24 de defesa.
A curiosidade era grande em torno do julgamento dos quatro assassinos de Arminda — Anastácio Pereira, António, Francisco e Manuel de Queiroz Correia. Ao início da manhã de 22 de maio, muito antes do início da primeira sessão, marcada para as 13h, já a praça em frente ao Tribunal de Marco de Canaveses estava cheia. Dezenas de pessoas, oriundas de todas as zonas do concelho, aguardavam expectantes o desfecho do crime que tinha posto Oliveira no mapa. “Não é vulgar um crime desta natureza: a queima duma mulher viva, como nos trágicos e remotos tempos da Inquisição! Daí todo este interesse em presenciar tal julgamento”, escreveu O Primeiro de Janeiro, uma das publicações que seguiu atentamente o julgamento dos criminosos de Soalhães. A sala era pequena para tanta gente e a maioria ficou “a ver navios”, nas palavras do jornalista do diário portuense. Sem poderem passar do pátio das traseiras, onde ficava instalada a cadeia, tiveram de se contentar em ser informados durante os intervalos das sessões pelos sortudos que conseguiram um lugar no interior.
Quem é que foi julgado?
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Apesar dos vários suspeitos que a polícia chegou a ter detidos na cadeia de Marco de Canaveses, só quatro chegaram a julgamento:
- Anastácio Pereira, um lavrador de 45 anos, cunhado de Arminda de Jesus;
- António de Queiroz Correia, um lavrador de 45 anos, marido da “Joaquinha, a tola”;
- Manuel de Queiroz Correia, um jornaleiro de 48 anos, irmão de António;
- Francisco de Queiroz Correia, um lavrador de 30 anos, irmão mais novo de António e Manuel.
Manuel de Queiroz Alexandre Correia, de 14 anos, filho de António e de Joaquina, foi ilibado e posto em liberdade antes da primeira sessão, a 22 de maio de 1934. Joaquina foi dada como doida.
Feita a chamada, a sessão arrancou com a inquirição dos suspeitos. Depois, seguiram-se as testemunhas. Estas continuaram a ser ouvidas no dia seguinte, 23 de maio, numa sessão onde o cómico se misturava com o trágico. Repetindo o que já tinham dito à polícia, os habitantes de Oliveira deram ainda conta da loucura generalizada que parece ter-se abatido sobre o lugar nos dias seguintes ao crime, arrancando gargalhadas da audiência e piadas espirituosas aos advogados. João Augusto Brito Reis, de 28 anos, contou ao coletivo de juízes que viu Arminda de Jesus ser levada para a rua pelos réus que, ao repararem que o carpinteiro se encontrava no local, lhe disseram que, se não se retirasse, morria. O terror que invadiu João Reis foi tal que, quando regressou a casa, nem conseguiu dar com o buraco da fechadura. “Foi tamanho o medo que estive mais de uma hora para abrir a porta da rua… O caso não era para menos”, afirmou, esclarecendo que temia que o “fossem buscar à cama para fazerem o mesmo que fizeram à Arminda”. E o pior de tudo: quando se deitou, João reparou que a roupa da cama dava pulos. O carpinteiro passou o resto da noite em branco.
José Monteiro Alves, irmão da vítima, falou da loucura da mulher, que tinha começado a bater nela própria. “Quando cheguei a casa, ao contar o que se passou à minha mulher, ela endoideceu”, disse José, acrescentando que, ao saber da morte da cunhada, a sua mulher se tinha fechado em casa. Para voltar a entrar na habitação, José teve de entrar pelo telhado. “Por lá anda, doida de todo… Estes homens fizeram a desgraça da minha irmã e a minha própria desgraça!” Para tentar explicar o terror que se abateu sobre os habitantes da freguesia de Soalhães, o advogado de defesa, Álvaro Queiroz, partilhou a sua própria experiência: certo dia, estando em casa do político Leonardo Coimbra, assistiu a uma sessão de espiritismo. Esta fez mexer uma mesa de pés de galo, que começou aos pulos. A cena causou-lhe grande medo, uma reação natural em todos os seres humanos.
A audição das testemunhas acabou ao final da tarde de 23 de maio. No dia seguinte, sexta-feira, os juízes tinham uma “querela importante” em Baião, o que obrigou a que a última sessão fosse marcada para a segunda-feira seguinte, 30 de maio. Nesse dia, a multidão que se juntou em frente ao Tribunal de Marco de Canaveses foi ainda maior. Entre os curiosos, havia advogados, médicos e até sacerdotes, de acordo com a reportagem de O Primeiro de Janeiro. A manhã foi dedicada às alegações finais. Primeiro falou a acusação. António Augusto Lopes da Fonseca, do Ministério Público, procurou mostrar a gravidade do crime cometido por Anastácio Pereira e por António, Francisco e Manuel de Queiroz Correia, frisando que a agressão de Arminda foi “um ato de maldade”, mas “que a fogueira a que depois a lançaram foi um ato bárbaro”. “Quem ousará afirmar que estes homens não tiveram a intenção de matar? Quais são as circunstâncias que eximem estes réus da sua responsabilidade criminal?”, questionou o magistrado. “Todos os seus atos na prática do hediondo crime que perpetraram, denotam que agiram com verdadeira intenção criminosa”.
Procurando desculpar o indesculpável, Álvaro Queiroz, “o talentoso advogado de Baião”, falou da crendice dos réus, da sua ignorância e da “epidemia nevrótica” de que tinham sido alvo. “Portugal tem falta de escolas para os ignorantes. Só com escolas — muitas escolas –, é que se acabará com fanáticos como esses que aí estão sentados e que merecem de todos a maior piedade”, afirmou o advogado, frisando que os criminosos foram “os primeiros a chorar a morta” e “a lamentar o momento de loucura”. Culpando a “superstição” e a “epidemia nevrótica” — de que todos foram “vítimas” e da qual “ninguém” se pode “livrar” — e até a estupidez dos réus, Álvaro Queiroz pediu a absolvição de Anastácio Pereira e dos irmãos Queiroz, defendeu que os suspeitos não eram “culpados”. “Fiquei horrorizado com o crime, mas depois fui dos que me apiedei, dos que me comovi com a desdita desses desgraçados. E foi por piedade que vim avogar a sua causa.” Afinal, até o agente responsável pela investigação lhes tinha chamado “camelos”. E, além do mais, há muito que Arminda os tinha perdoado.
A audiência foi interrompida pelas 17h, sendo retomada por volta das 20h, altura em que foi lida a sentença. Apesar dos apelos de Álvaro Queiroz, fortemente elogiado pelos jornais da época, o tribunal condenou os réus a seis anos de prisão maior celular, seguida de dez anos de degredo ou, em alternativa, 20 anos de degredo em possessão de primeira classe. O degredo, uma forma de expulsão penal, consistia no envio dos condenados para os limites do território português, geralmente para as colónias ultramarinas. Estas estavam divididas em duas classes, consoante a habitabilidade do seu território. Angola, os distritos de Luanda e Moçâmedes (atual Namibe), em Angola, e os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe pertenciam à primeira classe. Bissau e Cacheu, na Guiné-Bissau, Moçambique e o distrito de Benguela, em Angola, pertenciam à segunda. Além desta pena, Anastácio, António, Francisco e Manuel foram ainda condenados a pagar seis mil escudos (no total) de indemnização aos familiares da vítima.
A sentença foi bem acolhida pela acusação, mas a defesa decidiu recorrer. No recurso apresentado no Tribunal de Marco de Canaveses, o advogado, fazendo eco do que já tinha dito nas alegações finais, apelou à absolvição dos réus, defendendo que o crime bárbaro que tinham cometido se devia à sua “grande estupidez”. De acordo com Álvaro Queiroz, “todos agiram num momento de inconsciência, a que foram levados por sugestão religiosa, pela superstição e sobretudo pela influência sobre a psicologia das multidões”. “Por felicidade dos seus autores e para honra da nossa terra, apesar do atraso em que se mantém esta sociedade em que vivemos, eles não são os facínoras odiosos que à primeira vista parecem ser, mas tão somente uns desgraçados e vítimas fatais do seu meio, que foram arrastados à pratica de tamanho delito pela sua grande estupidez e pela anormalidade das suas faculdades mentais”, referiu o advogado de Baião, considerando que “eles estavam completamente doidos”, como mostrava “o facto de acreditarem que a Joaquina era santa e, por isso, lhe obedecerem como autómatos”.
Álvaro Queiroz, que já tinha apelado à realização de um exame “às faculdades mentais” dos condenados, voltou a fazê-lo no recurso, considerando que nunca ficou provado em tribunal que “os réus quisessem matar ou mesmo voluntariamente agredir a sua vítima”. O pedido foi eventualmente aceite pelo Tribunal de Marco de Canaveses e, ao longo de 1935, foram realizados vários exames a Anastácio Pereira, António, Francisco e Manuel de Queiroz Correia, no mesmo hospital onde, dois anos antes, Joaquina de Jesus tinha sido avaliada. O relatório final, apresentado a 28 de dezembro de 1935, referia que “um ato de tal natureza” não podia ter sido praticado “por indivíduos na plena posse do seu psiquismo superior”. “Anastácio Pereira, António, Manuel e Francisco Queiroz Correia, conquanto possuam um nível mental baixo, não se podem abranger, contudo, a dentro das fronteiras da alienação mental. O crime de que são acusados foi, no entanto, praticado em circunstâncias patológicas, constituindo uma reação primitiva, isto é, uma reação em que não interveio o conjunto da personalidade dos arguidos”, explicaram os médicos do Instituto de Medicina Legal do Porto.
Por outras palavras: apesar de não terem nenhuma doença mental, os quatro homens não estavam em si quando mataram Arminda, não lhes cabendo, por isso, “responsabilidade criminal”. Mas o exame de pouco valeu: apesar dos apelos do advogado, o tribunal decidiu manter a pena. Só passados 12 anos, em finais de 1946, é que Anastácio Pereira, António, Manuel e Francisco Queiroz Correia voltaram a ver Soalhães.
A Terra de Mata e Queima
Nos dias que correm, a pacata freguesia de Soalhães parece alheia ao assassinato que, há precisamente 85 anos, a tornou conhecida. À primeira vista, não há nada a indicar que foi ali que se cometeu um dos crimes mais terríveis da região. Basta, porém, perguntar pelo incidente para se concluir o contrário — a história continua bem viva na memória coletiva de quem ali vive e todos sabem que, há muito tempo, uma mulher morreu queimada no lugar de Oliveira. Na junta de freguesia — instalada mesmo ao lado da Igreja de São Martinho, que faz parte da Rota do Românico e que está neste momento a ser restaurada — está à venda um pequeno livro sobre o assassinato de Arminda. Chama-se O Crime da Queimada-Viva de Soalhães, foi escrito por A. Pereira Coutinho e Guilherme Pinto e publicado pela Câmara Municipal de Marco de Canaveses em 1987. Há sempre um exemplar exposto numa vitrina junto à secretaria, não vá alguém aparecer interessado no caso (o que, de vez em quando, acontece).
O crime que virou peça e a peça que virou filme
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Em 1959, Bernardo Santareno, um dos mais importantes dramaturgos portugueses do século XX, inspirou-se no “Crime de Soalhães” para escrever a peça O Crime da Aldeia Velha, onde uma jovem — a mais bonita da aldeia –, alegadamente possuída pelo diabo, é queimada viva para expulsar os demónios que existiam dentro dela. A peça deu posteriormente origem a um filme homónimo, realizado por Manuel Guimarães, em 1964. A longa-metragem é em parte responsável pela persistência da história na memória dos portugueses (há até quem chama “crime da aldeia velha” ao “Crime de Soalhães”, confundido a ficção com a vida real).
O Crime da Aldeia Velha, há muito esgotado, teve recentemente uma nova edição pela E-Primatur. O livro saiu em abril de 2017.
Oliveira fica a cerca de 20 minutos da junta. Não há nenhuma placa a indicar o lugar — há apenas uma tabuleta a assinalar a Rua de Oliveira — e, para lá chegar, é preciso percorrer uma estrada aos ziguezagues que atravessa a serra e provavelmente pedir indicações a meio do caminho. Quando o fizemos, uma mulher que seguia a pé junto à estrada, disse-nos logo que conhecia bem a história, apesar de já não ser do seu tempo. “Dizem que foi por causa do Livro de S. Cipriano!”, afirmou, sorridente. “Antigamente, quando íamos a Marco de Canaveses e comprávamos um bilhete de autocarro de volta para aqui, diziam-nos logo: ‘Isso é terra de gente doida! É a Terra de Mata e Queima!’.” Foi por esse nome que, depois da morte de Arminda, a freguesia passou a ser conhecida.
Foi não muito longe dali que fomos encontrar Emília, entretida com uma queimada num dos seus terrenos de cultivo. A mãe, Alzira da Glória Pereira, é a última habitante de Oliveira que ainda se lembra da fogueira que queimou Arminda. Dos seus 90 anos de vida, 60 foram passados junto ao lugar onde mataram a mulher de 32 anos. Depois de casada, Alzira foi viver para a casa que tinha pertencido aos sogros, onde nasceu e cresceu o marido, Manuel Correia, que tinha oito anos quando aconteceu o crime. Emília lembra-se de o pai contar, quando ainda era vivo, que os pais o tinham fechado em casa com os irmãos na noite do auto de fé, dizendo-lhes que estava a acontecer “uma coisa muito má”. Até ao final da vida, Manuel Correia nunca se esqueceu dos gritos de Arminda enquanto a atiravam para a fogueira. O incidente também ficou gravado na memória de Alzira.
Sentada à lareira da casa da filha, onde agora vive, a cerca de cinco minutos de Oliveira, Alzira da Glória Pereira recordou Arminda. “Vendia ovos. Era muito amiga da minha mãe e de nós todos porque éramos vizinhos”, disse, garantindo que a mulher era “muito boa” e que todos gostavam dela. Apesar do que aconteceu em Oliveira, Alzira nunca teve medo de morar no lugar. “Vivi 60 anos na casa ao lado”, contou. A filha Emília também lá morou até se casar, altura em que se mudou para o outro lado da encosta, onde agora vive também Alzira, desde há três anos. Foi ela que nos levou ao sítio onde mataram Arminda. “Como está isto”, disse, olhando em redor. O local está praticamente abandonado e já pouca gente lá mora. A maioria das casas está caída e o lagar, que Emília utilizou tantas vezes, parece não ser usado há anos. As heras, que entraram pelas falhas nas paredes, já tomaram conta do lugar. “Está tudo abandonado”, lamentou Emília, admitindo que não passava ali há algum tempo. No sítio onde queimaram Arminda, entre duas casas de pedra, a erva está alta.
Não muito longe dali, no café de Oliveira, o único que existe no lugar, os habitantes que se costumam reunir à volta de uma das mesas para jogar às cartas admitiram que pouco ou nada sabem do que aconteceu há 85 anos. “Isso era do tempo da minha falecida mãe!”, atirou um dos clientes, que acabou a discutir com os restantes sobre quem é que está vivo e quem é que não está. Depois de muita discussão e várias jogadas, chegou-se à conclusão que os dois filhos de Arminda, Manuel e Evangelina, há muito que morreram. Depois de casado, Manuel foi viver para Ermesinde, onde ainda vive a mulher. Sempre recusou dar entrevistas. O marido de Evangelina também sobreviveu à mulher, e vive num lugar próximo de Oliveira. O filho — Manuel como o irmão da mãe — também vive nas redondezas.
Terminado o jogo de sueca, os clientes do café de Oliveira avançaram para o carro, estacionado mesmo à porta. Era fevereiro e o vento gelado cortava o ar. Parado junto à estrada, um homem que disse ser sobrinho do filho de Arminda, olhava a serra em frente. Foi a alguns metros mais abaixo que, há 85 anos, mataram a mãe de Manuel, tinha ele apenas oito anos. Durante os anos todos que conviveu com o tio, nunca lhe ouviu falar da mãe ou sobre o que aconteceu naquela noite de 25 de fevereiro de 1933. Apesar do silêncio da família, a memória do que aconteceu a Arminda perdura. E Soalhães dificilmente o irá esquecer — parece estar destinada a ser, para sempre, a Terra de Mata e Queima.