A fila começa na porta do edifício, estende-se pelo átrio, ocupa as escadas, o piso inferior. Há jovens sentados no chão, outros de pé alternando o peso de cada perna para aguentar a espera. Não é o período que antecede o concerto de uma estrela pop. Estamos, em vez disso, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, nas duas horas anteriores à conferência com a filósofa política e ativista brasileira Djamila Ribeiro.
A conversa, inserida na programação do Jardim de Verão Gulbenkian, com curadoria da plataforma Lisboa Criola, acabaria por pôr Djamila Ribeiro (Santos, 1980) a abordar os temas fundamentais da sua obra: o feminismo, o feminismo negro, o ativismo político antirracista, mas também o racismo na academia, a invisibilidade do corpo negro no espaço público, o preconceito com a mulher brasileira em Portugal, a importância de um movimento educador.
Em entrevista ao Observador, a autora de Lugar de Fala, Pequeno manual antirracista ou Quem tem medo do Feminismo Negro?, considerada pela BBC uma das 100 mulheres mais influentes do mundo, fala sobre a importância do reconhecimento do racismo estrutural e frisa: “Não tem como discutir classe agora, raça agora e género agora. Os três agem de maneira conjunta”.
Sabendo que esta é a sua primeira visita a Portugal, como é que a história, os movimentos e lutas políticas portuguesas têm chegado até si?
Tenho relação com algumas pessoas, como a Grada Kilomba, que é uma amiga querida, o Dino [D’Santiago], o Kalaf Epalanga. São pessoas com quem fui aprendendo um pouco sobre esse movimento aqui em Portugal. Vinda de um país que foi colonizado por Portugal, a narrativa que a gente tem é muito distante do Brasil. Durante muito tempo, o que a gente aprendeu na escola é que os portugueses tinham descoberto o Brasil e a princesa Isabel acabou com a escravidão. Mas por ter nascido numa família de ativistas, desde muito cedo tive acesso a essa visão mais crítica, de que na verdade já existiam os povos originários, que o Brasil foi o último país das américas a abolir a escravidão, as consequências de o nosso país ter sido colónia de exploração por quase quatro séculos. Então tive uma visão mais crítica ao colonialismo e às consequências do colonialismo, mas ao mesmo tempo muito distante de Portugal no sentido em que a gente não tinha muita conexão. A gente não aprendia tanto a não ser por essa história dos bandeirantes, dos grandes homens de Portugal. Acabava não tendo tanto contacto com os movimentos daqui. A gente precisa mudar isso, criar mais pontes, porque tem tantas coisas em comum, mas acabou ficando muito distante, pelo menos para a minha experiência.
Durante muito tempo perdurou o mito de uma certa excecionalidade do legado colonial português, onde havia colonialismo, mas não havia racismo. Como foi observar isso?
Durante muito tempo no Brasil foi muito difícil, porque o Brasil também negou a existência do racismo. É impossível não ter racismo no colonialismo, o próprio colonialismo é a imposição da cultura do colonizador, o saqueamento das culturas do colonizado. A escravidão significou que essas pessoas construíram as riquezas pelos colonizadores, então como é que não tem racismo? Mas no Brasil durante muito tempo essa foi a história: o Brasil não é racista, no Brasil há uma democracia racial, somos todos mestiços. Isso prejudicou muito e atrasou muito os avanços para a população negra na luta.
Não reconhecer o racismo?
Sim, porque se você não reconhece você acha que não há nada a ser feito. Se o racismo é negado, como é que se enfrenta uma coisa que para muitos não existe? Essa foi a narrativa no Brasil durante muito tempo e essa narrativa só foi superada por conta da luta dos movimentos negros, dos intelectuais negros. Se hoje no Brasil a gente não fala mais disso é por conta dessa luta, mas demorou muito tempo para que o estado brasileiro reconhecesse a existência do racismo e se responsabilizasse por criar políticas de reparação como tivemos nas primeiras administrações do governo de Lula.
No Pequeno Manual Antirracista [Companhia das Letras, 2019], aponta que “é impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre”. Ou seja: defende que é perigoso focar o debate sobre racismo no indivíduo?
É muito prejudicial porque a gente não avança, porque a pessoa diz que não é racista, encerra a conversa e não compreende quais foram os mecanismos históricos que criaram as desigualdades. Isso faz com que a pessoa branca não tenha uma reflexão crítica até sobre o lugar da branquitude. Muitas vezes ela vai acreditar que os privilégios dela são naturais ou providencialmente fixados, que ela está ali porque ela mereceu ou porque é muito mais inteligente que os outros. Não entende que o lugar de privilégio dela foi construído à base da opressão de outros grupos, que vivemos em relações raciais. Esse é um grande problema: não debater a estrutura. Quais foram os atos que estruturaram o racismo no Brasil? Bom, quase quatro séculos de escravidão, o último país das Américas a abolir a escravidão, no pós-abolição não se criou nenhum tipo de política para integrar a população negra ao passo que incentiva a ida de emigrantes europeus para o Brasil, os italianos, alemães… O Brasil é o país que tem a maior comunidade italiana fora da Itália — para branquear a população mesmo que houve esse incentivo. Se a pessoa branca não compreende isso, ou aqui em Portugal não compreende quais foram as consequências do colonialismo para Angola, Guiné Bissau, Brasil, como esses países foram afetados pela colonização, ela vai acreditar que não tem nada a ver com isso. Isso é um grande problema: quando as pessoas brancas acreditam que não têm de se posicionar na luta antirracista, quando acham que não é um problema delas. Quando é um problema da sociedade. Ou, citando Grada Kilomba, o racismo é uma programática branca. No século XIX havia o racismo científico, que era essa ideia de que negros eram inferiores intelectualmente aos brancos. Eram teorias criadas por homens brancos justamente para legitimar a dominação da Europa nas Américas. Então, se as pessoas não conhecem a História e dizem “ah, eu não sou racista”, ponto, elas acham que não têm nada a ver com isso, mesmo beneficiando dessa estrutura.
A ideia de “lugar de fala” popularizou-se no Brasil também graças ao seu livro Lugar de Fala, lançado em 2017. Em Portugal ainda é uma expressão que causa alguma estranheza. Acredita que é importante esclarecer este termo? Como?
É preciso ouvir os intelectuais daqui, que estão resistindo aqui. Acho isso muito importante: que eles possam ser publicados, que possam ser escutados. E o “lugar de fala” no Brasil se popularizou, mas com a popularização também tem um lado ruim que é o esvaziamento. Há pessoas que acreditam que o lugar de fala erroneamente é um interdito, “não fale isso porque não é o seu lugar de fala”, ou que o lugar de fala é um debate individual. Quando, na verdade, um lugar de fala não é o que se fala, mas de onde se fala. Eu quero entender quais são as consequências de partir de determinados lugares sociais. Quais são as experiências que as mulheres negras compartilham por partirem desse lugar social? Bom, no Brasil é uma alta taxa de feminicídio, assassinato de mulheres, violência, desigualdade, pobreza. Ao mesmo tempo, também quero refutar essa ideia de um sujeito universal que se pensa universal e que todo o mundo é o outro. O homem branco se pensa universal, mas ele também parte de um lugar. Quais são as consequências de partir desse lugar do privilégio? Na grande maioria são os donos dos meios de produção, das riquezas, estão presentes quase que absolutamente nas academias, nas faculdades, na forma como a gente vai estudar. Então, pensar o lugar de fala é pensar no desvelamento dos processos históricos que criam esses lugares.
É uma questão mais profunda do que dizer que um homem branco cisgénero não pode escrever sobre uma história que não a do lugar social que ocupa?
Muito mais profunda. Porque não é o que se fala, mas de onde. Não é impeditivo. Por exemplo, mulheres negras partem desse lugar de desigualdade, a maioria está no trabalho doméstico porque no pós-abolição [da escravatura] não houve nenhum tipo de reparação. Então elas tiveram que ir para o trabalho doméstico. Isso faz com que partam de um lugar de desigualdade e isso faz com que não consigam acessar determinados espaços. É por isso que eu fui a única aluna [negra] da minha sala na faculdade. Não é porque as pessoas brancas que estavam lá eram mais inteligentes do que eu, mas é porque elas partiram de um lugar social em que elas tiveram oportunidades de estar e o meu grupo social não. Acabo sendo uma exceção e é isso que eu quero investigar, e não o que se fala e tudo o mais, como muita gente muitas vezes entende. Posso muito bem teorizar sobre outras realidades que não são as minhas, claro, entendendo o meu lugar, entendendo que vou ter uma outra reflexão, vou partir de um outro olhar sobre aquele lugar. Mas não é um impeditivo, a gente tem é de entender quais são esses lugares.
Não há o risco de o argumento do lugar de fala poder ser usado para uma demissão na luta pela igualdade?
É, como desculpa. ‘Ah, não é o meu lugar de fala, não vou fazer nada’. É muito fácil, porque a pessoa se beneficia. Então o lugar de fala, num segundo momento, é uma postura ética. Uma vez que eu entendi o desvelamento dos processos históricos que criam as desigualdades, eu entendo que certos grupos estão nestes lugares porque eles são oprimidos e não porque eles não querem. O que é que do meu lugar social posso fazer para impactar positivamente outros lugares? Se eu sou educador ou educadora, professor ou professora, vou revisar a minha bibliografia. Porque é que na minha bibliografia eu só tenho homens brancos? Porque é que não trago pessoas negras? Elaboram o mundo, porque é que elas não estão presentes? Se eu sou empregador ou empregadora, tenho uma empresa, estou contratando pessoas. Quando a pessoa branca entende o seu lugar social de uma forma crítica, isso vai orientar a ação dela, na prática. Ela vai saber o que ela pode fazer para impactar positivamente outros lugares.
Há uns dias, em Coimbra, numa entrevista à RTP, dizia: “Para discutir a questão da colonização a gente precisa de discutir por essa perspetiva da responsabilidade, não é numa perspetiva da culpa, porque acho que a culpa não leva a gente à ação, só à inércia”.
Essa é uma discussão que eu trago no Pequeno Manual Antirracista. Muitas vezes as pessoas brancas falam: “me sinto muito culpada pelo racismo”. Mas aí você é culpada, chora e nada é feito. Então eu falo: vamos trabalhar pela responsabilização. A gente reconhece e quando reconhece age para mudar. Porque a culpa também é mais uma maneira de as coisas permanecerem como elas estão. A gente reconhece e se mobiliza para transformar aquela realidade. É necessária essa ação e não ficar só jogando palavras ao vento.
Recuperemos as palavras de Angela Davis, que defendia que nenhum tipo de segregação podia ser resolvido sem que se resolvesse a base: a pobreza. Defende que o racismo, o feminismo e a luta de classes estão inevitavelmente ligados?
No Brasil, durante muito tempo, houve uma parte da esquerda que se negou ao debate racial e de género. Dizia que a questão era só de classe. E os intelectuais negros, as feministas negras, foram muito importantes no sentido de refutar essa ideia. Como se a classe estivesse isolada do resto. Nós dizemos: como a gente vai discutir classe no Brasil sem discutir raça? Quando durante quase quatro séculos a base da economia no Brasil foi a escravidão, que a população negra no Brasil é pobre porque é negra, porque a escravidão causa o empobrecimento histórico dessa população. Você trabalha quase quatro séculos de graça, sem receber nada, e quando acaba a escravidão ouve “vocês estão livres, sigam o caminho de vocês”. E aí é quando começa o processo de favelização. Foram morar nas favelas porque não tinham onde morar, as mulheres negras foram ser trabalhadoras domésticas. Então, na nossa conceção, a gente precisa discutir classe, raça e género de maneira indissociável. Porque a mulher negra ela é a base da pirâmide social no Brasil, ela é a mais pobre porque ela entrecruza a opressão de classe, raça e género. Da mesma forma, se eu vou falar de classe trabalhadora, não é um conceito abstrato. Quando eu falo da mulher trabalhadora essa mulher engravida, então essa mulher vai viver a classe de uma maneira diferente de um homem trabalhador. Muitas vezes ela vai sofrer violência doméstica, vai ser estuprada, vai ser abandonada com os filhos. Tudo isso contribui para um processo de feminização da pobreza. É o que é o que acontece no Brasil. Muitas mulheres mães solos, a grande maioria, sustentam a suas famílias de homens que abandonam as suas famílias. Essa mulher é uma trabalhadora que vai viver a classe pelo género. E assim por diante. A nossa crítica é: nós discutimos classe, sempre discutimos, mas jamais podemos discutir separados da raça e do género. Como uma mulher negra que vim da classe trabalhadora, como é que vou discutir a minha relação na minha família, de que era de uma família de classe trabalhadora, sem discutir a experiência do racismo e do sexismo? Não tem como separar. Todas elas fazem com que eu parta desse lugar social. Não tem como discutir classe agora, raça agora e género agora. Os três agem de maneira conjunta. Nós, como feministas negras, estamos dizendo que temos de trabalhar de modo indissociável porque lutar contra uma opressão e limitar outra é limitar a mesma estrutura. A pobreza está ligada intrinsecamente ao facto de sermos negros e negras, de sermos mulheres no Brasil. A maior parte das pessoas pobres no Brasil são mulheres negras. Como é que eu discuto classe no Brasil sem discutir isso? Como é que eu vou discutir economia no Brasil sem discutir isso? Como é que eu vou discutir reforma tributária no Brasil sem discutir que a mulher negra é o grupo que mais sente proporcionalmente o peso dos impostos? É essa visão que a gente precisa mudar. Às vezes a gente sofre muita resistência até por parte da esquerda que insiste numa visão de classe num país em que 54% da população é negra e em que é impossível discutir classe sem discutir raça e género.
O seu pai era estivador, sindicalista, foi fundador do Partido Comunista em Santos, ativista do movimento negro. Disse que crescer nesse ambiente, em que o ativismo era assunto de casa, a ajudou a ter uma visão crítica da história que lhe era apresentada. Quando é que o feminismo surge na sua vida?
Foi muito importante encontrar o meu caminho nesse sentido. No final da adolescência, trabalhei numa organização feminista negra em Santos, a cidade onde nasci. Chamava-se Casa de Cultura da Mulher Negra e ali foi quando tive contacto com uma série de literatura e produções intelectuais constituídas por mulheres negras. Tinha uma biblioteca na instituição, coisas que me foram negadas na escola, que nunca tinha tido acesso. Foi ali que eu li Toni Morrison pela primeira vez e me apaixonei. Li uma série de autoras. Elas tinham um trabalho para apoiar mulheres vítimas de violência doméstica. Ali entendi que não tinha como ser do movimento negro sem discutir género. Porque existem mulheres negras. A visão muitas vezes do movimento negro é muito masculina. Somos todos negros, mas há mulheres. Da mesma forma, no feminismo, somos todas mulheres, mas entre elas há negras, indígenas. Como é que a gente discute isso sem deixar nenhuma para trás? Só mesmo pensando dessa maneira interseccional. Então esse espaço foi fundamental para a minha formação política.
Hoje é uma autora bestseller, mas no princípio teve de se autopublicar. Como foi esse caminho, além do ativismo, de querer produzir conhecimento?
Porque sofri muito na faculdade. Estudei filosofia, tenho um mestrado em filosofia política e estudar filosofia no Brasil significou estudar o pensamento de homens brancos europeus. Ponto. Estudei filosofia alemã, grega, francesa, e só contada pela perspetiva dos homens.
Não estudava Simone de Beauvoir?
Não. Estudei Simone de Beauvoir no mestrado, mas quando questionei um professor que dava aula sobre [o filósofo Jean-Paul] Sartre, a resposta dele foi: “Beauvoir quem? A mulher da Sartre?”. Não me ensinaram sobre Simone de Beauvoir, tive que ir atrás e procurar pesquisadoras fora do Brasil. Tive de sair do Brasil, participar em conferências, a gente criou um grupo de estudo na universidade em que organizava eventos. Foi tudo muito sofrido na faculdade. Ouvia de professores: “mas isso não é filosofia”, “filosofia africana não existe”, “quem é que é Beauvoir?”. Era tudo colocado como menor. Esse processo na faculdade, em que tive de nadar contra a maré… E depois a minha dissertação de mestrado, que tem maioritariamente as referências bibliográficas de filósofas… Foi muito duro, um processo de sofrimento psicológico muito grande. Quando defendi a minha dissertação consegui a melhor bolsa, mas falei: “bom eu preciso de fazer alguma coisa”. Porque conseguir ter acesso a uma série de autoras era difícil. Amigas minhas que moravam fora me mandavam.
Em 2017 criei a coleção Feminismos Plurais. Lugar de Fala foi o primeiro [livro]. A gente já publicou 13 títulos dessa coleção, autores negros e negras. Depois lancei o selo Sueli Carneiro, que faz homenagem a uma feminista negra brasileira, publicámos mais títulos sob esse selo e hoje já publicámos 25 títulos. Para mim era importante mostrar essa nossa potência, mas também contribuir para que esses autores fossem disseminados, tanto os meus contemporâneos, mas as referências bibliográficas também. Coloco como regra que se cite os autores do passado. A gente conseguiu forças e o mercado editorial começou a enxergar. Hoje no Brasil a cara dos catálogos das grandes editoras mudou muito. Virei autora da Companhia das Letras, que é uma grande editora, mas continuo com o meu projeto independente porque acho que é importante a gente continuar visibilizando essas produções intelectuais.
No ano passado consegui finalmente ter uma sede, o Espaço Feminismos Plurais, com biblioteca, sala de pesquisa, tudo gratuito. Temos atendimento jurídico e psicológico para mulheres. Quem cedeu a casa foi um empresário, Maurício Rocha. É isso que falo quando falo no papel dos aliados, de entender o seu lugar: “Eu tenho o imóvel e vou ceder para vocês fazerem”. A gente atende gratuitamente uma série de pessoas, vítimas de violência doméstica, além de continuar fomentando esse trabalho intelectual. Pode passar lá o dia lendo livro, organizamos lançamentos, emprestamos a sede para outros coletivos. Todo o trabalho precisa ser nessa coletividade, mostrando a nossa potência, porque cansa só essa representação da mulher negra de costa baixada, na pobreza. Gostam muito no Brasil de romantizar esse lugar. Eu que venho de um lugar dos movimentos de base, para mim é importante mostrar outras possibilidades de ser mulher, sobretudo para as meninas, para as jovens, de uma maneira positiva. E internacionalizemos. Da coleção eu é que negoceio as traduções, já traduzimos seis autores para o francês, três para o italiano, para mostrar esse outro Brasil que as pessoas não conhecem. As pessoas na Europa têm uma visão muito estereotipada do Brasil, sobretudo da mulher brasileira. Uma visão de objetificação. Com esses intelectuais, essas traduções, os meus próprios livros que são traduzidos para vários idiomas, a gente quer resignificar essa travessia transatlântica. A gente quer vir nesse lugar da potência, mostrando a nossa intelectualidade.
Em Coimbra esteve a debater a “cidadania da língua”. O que é isso?
Eu também não sabia. Recentemente aqui em Portugal quem fala a língua pode residir em Portugal por um ano [a lei aplica-se a imigrantes da CPLP]. Então seria uma cidadania que vem pela língua. Por isso é que esse ciclo se chama Cidadania da Língua. Achei muito interessante, mas, tal como disse lá em Coimbra, a gente também quer chegar aqui e permanecer. Não adianta só garantir o acesso, é importante que o Governo também dê condições para que as pessoas fiquem. E a gente também não quer encontrar hostilidade. Vi muitos brasileiros que estudavam na universidade falarem isso: o quanto o nosso português é errado. Falta essa compreensão de entender as diferenças como algo positivo.
Nos últimos anos multiplicaram-se relatos de mulheres brasileiras a denunciar assédio e preconceito sentido em Portugal. Criou-se até o movimento “Brasileiras não se calam!”…
Por isso é que a gente precisa tanto das pessoas aliadas, que entendem que essa questão é uma questão humana e que independentemente de onde a gente vem, a gente tem direito a uma vida digna. É muito importante que as mulheres do movimento feminista aqui em Portugal consigam dialogar com as mulheres brasileiras, é importante criar essas pontes, fortalecer essas pessoas, mudar mentalidades, rever os currículos que tantas vezes não aceitam contribuições que vêm do sul do mundo.
Refere-se à academia?
Exatamente. Alunas de doutoramento me contam o que ouvem: “mas quem é essa autora? Ah, brasileira ou indiana não, tem de ser europeia”. A mulher brasileira sofre muito, há uma visão muito estereotipada [do que ela é]. Eu mesma quando venho na Europa e falo que sou brasileira os homens acham que estou disponível, que podem me tocar. É muito irritante ter que lidar com isso o tempo todo.
É necessário ouvir as mulheres brasileiras e contribuir para esse trabalho de consciencialização de que não é uma luta só delas. É uma luta também de todas as mulheres, porque acredito que as mulheres portuguesas também tenham as suas questões aqui em Portugal, que é um país patriarcal. Talvez sofram de maneiras diferentes, mas podemos encontrar pontos de encontro. Enquanto uma sofre, a outra também não está totalmente livre. Como dizia a Audre Lorde: eu não sou livre enquanto uma outra mulher estiver acorrentada, mesmo que as correntes sejam diferentes da minha. Por mais que você seja portuguesa, você também vai sofrer violência sexista de uma outra maneira.