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Um parto difícil e dores de crescimento que tardam em cessar. A história do Banco Português de Fomento ainda é curta, mas já conta com uma série de capítulos rocambolescos. O apoio à Pluris, de Mário Ferreira, agora descartado pelo empresário, é apenas o mais recente. E não deverá ser o último.
A difícil constituição e a espinhosa missão
Foi uma promessa eleitoral do PS em 2019. Antes, a ideia já tinha sido defendida em 2009, ainda no Governo de José Sócrates, e depois por Álvaro Santos Pereira, ministro da Economia de Pedro Passos Coelho, em 2012. Não chegou a avançar pela mão dos sociais democratas, porque a proposta não convenceu a Comissão Europeia, por ser demasiado ambiciosa. Acabou por ser criada a Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), em 2015, com o intuito de criar “instrumentos financeiros para colmatar as insuficiências de mercado e facilitar o acesso ao financiamento pelas PME e mid-caps”. Mas o seu âmbito era curto.
No programa eleitoral dos socialistas, em 2019, o almejado banco de fomento ganhou a primeira sigla. O PS prometia “consolidar a atuação da Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), nomeadamente enquanto national promotional bank (NPB), que prosseguirá o esforço de potenciação de recursos financeiros nacionais com apoios comunitários e parcerias com entidades multilaterais, nomeadamente o Banco Europeu de Investimento”.
A 6 de outubro o PS vence as eleições e o segundo Governo de António Costa toma posse a 26 do mesmo mês. No debate sobre o Programa do Governo, no dia 30, Pedro Siza Vieira, então ministro da Economia, reforça a promessa. Nos primeiros 100 dias de Governo, portanto até ao início de fevereiro de 2020, seria constituído um “verdadeiro banco promocional nacional”, que congregaria as várias sociedades financeiras que estavam então na dependência do Ministério da Economia e teria como objetivo financiar as empresas portuguesas, em dívida e capital, a custos mais baixos. “Irá funcionar, igualmente, como um banco verde, apoiando os investimentos necessários ao esforço de descarbonização da economia e ao combate às alterações climáticas”, anunciou ainda o ministro.
Banco do Fomento. Porque demorou tanto tempo e quem esteve contra
O início de fevereiro chegou, mas o Banco de Fomento, ainda sem nome na altura, não. O resto é história. Em março, a pandemia virou o mundo do avesso, e os compromissos assumidos foram colocados em lista de espera, tanto do Governo como das instituições europeias, a quem cabia dar luz verde ao projeto. Mas acabou por ser a crise a dar força à medida, face às dificuldades das empresas durante o pico da pandemia.
Em junho, a Comissão Europeia deu a luz verde necessária para o projeto avançar, não sem deixar um recado. “O BPF implementará medidas para assegurar que a instituição suportada pelo Estado não afasta as instituições financeiras privadas”. O recado tinha um destinatário, já que tanto António Costa como Siza Vieira tinham afirmado que a instituição iria “financiar diretamente ao retalho as empresas”. Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro garantiu que o BPF não seria um concorrente direto da banca comercial, mas poderia “estimular a banca comercial a ser mais competitiva”.
Anotado o recado, foi ainda preciso aguardar dois meses, até agosto, para que o Conselho de Ministros aprovasse a criação do Banco Português de Fomento (BPF), remetendo o início do seu funcionamento para outubro, com um capital social inicial de 255 milhões de euros. “Permite já fazer um conjunto muito significativo de operações de crédito direto. Além disso herdará da sociedade portuguesa de garantia mútua (SGPM) a gestão do fundo de garantia mútua que, nesta altura, já distribui através do sistema bancário, cerca de 12.500 milhões de euros de crédito a micro e PME e que continuará a fazer chegar novas linhas de crédito ao nosso tecido empresarial até ao fim do ano”, adiantou Siza Vieira em agosto de 2020.
O decreto-lei que cria o BPF foi publicado a 7 de setembro de 2020, e estipulava um prazo de 40 dias para a sua entrada em vigor. A 3 de novembro de 2020, a instituição, por fim, nasceu. Resultou da fusão da Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD) e da PME Investimentos na Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua (SPGM). E conta com quatro acionistas: Direção-Geral do Tesouro e Finanças, Turismo de Portugal, IAPMEI e AICEP.
Segundo Siza Vieira, o banco nascia com a missão de “permitir que o crédito chegue aonde ele se mostra mais necessário, onde o sistema bancário sozinho não chega lá: investimentos de mais longo prazo, em setores mais arriscados ou mais inovadores, ou para os quais a certeza do reembolso é menos segura”. E nos seguros de crédito, “cobrir aquilo que são os riscos que o mercado segurador normalmente não toma”. Tudo indicava que o mais difícil estava feito. Mas não era bem assim.
A saga da equipa de gestão
As primeiras operações do BPF foram anunciadas para novembro de 2020, mas só em janeiro é que as empresas mais prejudicadas pela crise, dos setores da indústria, turismo e eventos, puderam recorrer a duas linhas de crédito, que juntas totalizavam 1.100 milhões de euros. Nesta altura, o banco ainda não tinha equipa de gestão. Esse haveria de se revelar um processo longo que, passado mais de um ano e meio, ainda não está concluído. Foi Beatriz Freitas, presidente da SPGM, quem, no início, assumiu as rédeas.
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Em fevereiro de 2021, teria início a saga da administração do BPF. Na comissão parlamentar de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, Siza Vieira confirmou a informação que tinha sido avançada pelo jornal Eco, de que o antigo administrador do Novo Banco, Vítor Fernandes, seria o novo ‘chairman’ da instituição. “Queria confirmar que dirigimos um convite ao dr. Vítor Fernandes para ser o ‘chairman’ do Banco de Fomento e que ele o aceitou”, declarou o então ministro da Economia.
A nomeação gerou polémica desde o primeiro momento, e transformou-se num caso político. Vítor Fernandes já tinha estado na Caixa Geral de Depósitos na altura em que foram concedidos créditos problemáticos, entre 2000 e 2008, nomeadamente a Joe Berardo.
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Mas não foram apenas esses anos na Caixa Geral de Depósitos que colocaram Vítor Fernandes a arder na nogueira pública. No âmbito da Operação Cartão Vermelho, que envolve Luís Filipe Vieira, Vítor Fernandes foi alvo de buscas judiciais, a 12 de julho de 2021, suspeito de ter passado informação a Vieira por relações comerciais com o Novo Banco. Dois dias depois, o ministro da Economia foi ao parlamento, onde não descartou a nomeação do gestor para o cargo, apesar de a ter suspendido. “Vamos ver o que se passa, e depois tomaremos decisões”, sublinhou. Siza Vieira afirmou que a nomeação não se concretizaria até o Banco de Portugal concluir a reavaliação da idoneidade de Vítor Fernandes. Foi aí que o ministro disse querer “gestores à prova de bala” e um Banco de Fomento livre de “controvérsias”. Não conseguiu. A nomeação de Vítor Fernandes nunca chegou a acontecer. Mas também nunca houve uma admissão, por parte do Governo, de que o nome caía. Siza Vieira afirmou apenas que era necessário “proteger o Banco de Fomento de qualquer controvérsia relativamente à idoneidade do seu conselho de administração”.
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O processo da escolha do líder do conselho de administração do BPF acabou por se arrastar durante um ano. Só no passado mês de junho é que o Ministério da Economia informou, através um comunicado enviado apenas à Lusa, que Celeste Hagatong foi a escolhida para a presidência do conselho de administração e Ana Rodrigues de Sousa Carvalho para o cargo de presidente executiva (CEO).
Antes, em maio, o jornal Expresso noticiou que o ministro da Economia, António Costa Silva, tinha convidado o banqueiro António Horta Osório para a presidência do banco, mas que este recusou. Um dos travões à contratação para a liderança estava na remuneração do cargo. Isso mesmo foi assumido por Costa Silva no parlamento. “Concordo que o enquadramento financeiro não é o melhor. O que estamos a discutir é libertar esse enquadramento das restrições que tem”, declarou o ministro. Essa barreira acabou mesmo por ser ultrapassada, por decisão do Conselho de Ministros, em junho. “As remunerações dos membros do órgão de administração do BPF são fixadas pela respetiva assembleia geral”, lê-se no decreto-lei que deixou cair as limitações associadas ao estatuto de gestor público. Dias depois, Celeste Hagatong e Ana de Sousa Carvalho, que foram do BPI e estavam na COSEC, foram anunciadas para a liderança.
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A concretização da nomeação aguarda ainda a conclusão do processo de fit and proper do Banco de Portugal “e do processo de avaliação bem como da intervenção da Comissão de Auditoria do Banco Português de Fomento para, no respeito escrupuloso pelos procedimentos em vigor, a nomeação ser efetuada em assembleia geral assim que estiverem criadas as condições para tal”, disse o Governo em comunicado.
As contas com um ano de atraso
“Atraso” parece ser a palavra que melhor define o Banco de Fomento desde a sua criação. Nasceu depois da hora marcada e é também fora do timing que tem publicado as suas contas. O ministro da Economia chamou-lhe “dores de parto”. O relatório e contas de 2020 da instituição foi publicado a 7 de junho último, apesar de o conselho de administração se ter comprometido, no parlamento, a publicar as contas até final de junho de 2021.
As contas de 2021 ainda não foram publicadas, e, questionada pelo Observador, fonte oficial da instituição não indicou um prazo para a sua divulgação, assegurando apenas que “deverá ser aprovado e publicado brevemente”. Em fevereiro, o BPF revelou ter apoiado cerca de 13 mil empresas no ano passado (que asseguram 110.500 postos de trabalho), num montante que ascendeu a 2.115 milhões de euros, para as quais foram ainda emitidas garantidas totais de 1.007 milhões. Em 2021 foram lançados 11 novos instrumentos de garantia, colocando em 30 o número de produtos do BPF neste segmento, com uma dotação global de cerca de 3,59 mil milhões de euros.
Foram ainda aplicados 49,9 milhões em coinvestimento em empresas, através de instrumentos de capitalização. Houve financiamentos de 18,7 milhões de euros aprovados em instrumentos de dívida.
O que também derrapou foi a capitalização da instituição. Pedro Siza Vieira, então ministro da Economia, anunciou em julho do ano passado que a instituição teria um aumento de capital de 250 milhões de euros, financiado ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A autorização para esta injeção foi pedida a Bruxelas com o intuito de se proceder à transferência ainda no primeiro trimestre de 2022, mas a luz verde da Comissão Europeia só chegou em abril.
Em lista de espera está ainda a auditoria pedida, em outubro do ano passado, pelo Banco de Portugal (BdP) ao Banco de Fomento. “O processo de auditoria está a seguir o seu curso e o respetivo relatório será apresentado à entidade que o solicitou, o Banco de Portugal, logo que o mesmo se dê por finalizado. Qualquer divulgação dos resultados obtidos será da responsabilidade do BdP”, reconhece fonte oficial do BPF.
O compliance e a falta de recursos humanos
É uma das polémicas mais recentes a envolver o BPF. Segundo avançou o jornal Eco, o diretor de conformidade, ou compliance, pediu a demissão no passado mês de junho. O mesmo jornal refere que a saída se deveu a “pressões internas e escassez de recursos humanos”. A instituição teve no seu site um anúncio ativo para a contratação de um responsável para esta área, que entretanto já não consta na página. Questionado pelo Observador sobre em que fase se encontra este processo, o BPF refere que “o anúncio foi retirado apenas porque o prazo do concurso terminou”. Foram recebidas “diversas candidaturas e o processo de recrutamento para o cargo de diretor de Conformidade está em curso”. A instituição salienta ainda que foram contratados recentemente três colaboradores para a Direção de Conformidade.
À futura contratação eram pedidos pelo menos cinco anos de experiência e requisitos como “excelente capacidade de análise e interpretação da legislação”, “capacidade de liderança, coordenação e de trabalho em equipa” e “forte sentido crítico e de responsabilidade”. Entre as funções que irá desempenhar constam a prevenção de branqueamento de capitais, a coordenação da conformidade regulatória ou a identificação e mapeamento dos riscos de conformidade e dos procedimentos e controlos implementados.
O relatório da comissão de auditoria ao exercício de 2020 do BPF já identificava um problema na questão da “escassez de recursos humanos”, nomeadamente “ao nível das funções de controlo interno”. No relatório e contas, o banco refere que “os processos de controlo interno serão alvo de melhoria, não só ao nível do banco como do Grupo BPF como um todo, reforçando as políticas de crédito, os mecanismos de monitorização e o sistema de três linhas de defesa (negócio, conformidade e auditoria interna), de forma a garantir uma gestão prudente do risco”.
Questionado sobre em que fase de resolução se encontram estes problemas, o BPF afirma que “tem vindo, e continuará, a reforçar os seus recursos humanos, dotando-se de valias técnicas e de know-how que lhe permitirão ser bem sucedido no cumprimento da sua missão”.
Atualmente, “o BPF tem 128 colaboradores, sendo este número variável e dependente da atividade de cada direção. Está em curso o processo de seleção e recrutamento de recursos para reforço das áreas de Controlo Interno (Direção de Risco e Direção de Auditoria Interna), Recursos Humanos, Centro de Operações e Direção de Tecnologias de Informação”.
A complexa atribuição de fundos do PRR
Ainda agora começou a distribuir os fundos que tem para gerir, e já está envolto em mais uma polémica. A 30 de junho, o Banco de Fomento aprovou o investimento direto de 76,7 milhões de euros a 12 empresas, através do Fundo de Capitalização e Resiliência (FdCR). São ajudas ao abrigo do quadro temporário de auxílios de Estado Covid-19. Das 12 empresas contempladas, a que iria receber a maior fatia dos apoios era a Pluris, de Mário Ferreira, que além do negócio do turismo, conhecido pela Douro Azul, tem participações noutros setores, sendo um deles o dos media, já que é a principal acionista da TVI.
À Pluris, o Banco de Fomento decidiu atribuir mais de metade dos 76,7 milhões a jogo nesse âmbito: 40 milhões de euros. Um valor que representa ainda 10% dos 400 milhões disponíveis em todo o Programa de Recapitalização Estratégica do Fundo de Capitalização e Resiliência (FdCR). O programa foi criado para “ajudar a reforçar o capital e a solvência de empresas viáveis”. O Banco de Fomento garantiu que o dinheiro seria canalizado apenas para o negócio do turismo e que, face ao valor atribuído, o escrutínio seria mais exigente.
Um dia depois de ser conhecida a atribuição dos fundos, a Douro Azul, de Mário Ferreira, foi alvo de buscas por suspeitas de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais no negócio de compra e venda do navio Atlântida, e o empresário constituído arguido a seu pedido.
Já esta segunda-feira, e depois de muita tinta ter corrido sobre o caso, Mário Ferreira desistiu do apoio. Num comunicado extenso, o empresário anunciou a renúncia ao empréstimo de 40 milhões de euros, “em nome da verdade dos factos e na salvaguarda do seu bom nome e do seu acionista principal”. Face à desistência, a Pluris terá de realizar um aumento de capital de 80 milhões de euros, que incluirá a venda de ativos.
Questionado pelo Observador sobre o destino do valor que sobra do fundo de capitalização, que era de 323 milhões de euros e passa agora a ser de 363 milhões, o Banco de Fomento contraria o empresário, que tinha chamado à atenção para o “risco” de esse dinheiro ser devolvido a Bruxelas, “sem que qualquer empresa portuguesa dele beneficie”. A instituição sublinha que esse valor passa da designada janela B para a janela A, que tem como prazo de candidatura o dia 31 de dezembro, “podendo ser prorrogado mediante decisão da entidade gestora, de acordo com o disposto na política de investimento do FdCR”. Fonte oficial do BPF refere que a instituição “está já a analisar várias candidaturas que serão anunciadas à medida que forem sendo aprovadas”.
Se o valor não for utilizado na totalidade, o Fundo de Capitalização e Resiliência, nos termos do PRR, “pode investir diretamente em empresas até ao final de 2023 ou através de intermediários financeiros até 2025”.
Quanto a Mário Ferreira, esta é uma polémica que terá novos capítulos. Em julho, a comissão de Economia aprovou a audição, no parlamento, do Banco de Fomento, do secretário de Estado do planeamento, Eduardo Pinheiro, e do ministro da Economia, António Costa Silva, após requerimentos do PAN e do Bloco de Esquerda.
Costa Silva chegou a ser confrontado, em plenário, sobre a possível intervenção do Governo nas decisões do BPF, o que rejeitou. “Não há nenhuma intervenção do Governo. O Banco de Fomento é autónomo e nós zelamos por isso”, garantiu aos deputados. O tema também deu origem a uma picardia entre o primeiro-ministro, António Costa, e a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, no debate do estado da Nação. “A minha intervenção foi zero”, respondeu o primeiro-ministro à bloquista.
Resta saber se, com a decisão de Mário Ferreira, as audições no parlamento agendadas para setembro irão, ou não, manter-se.