Índice
Índice
“Foste nosso convidado em Teerão e comemos kebab — lembras-te ?? Conversámos sobre Portugal, o teu trabalho e a tua ida para Portugal. Tenho algumas perguntas sobre residência em Portugal ??“.
O código da Guarda Revolucionária iraniana (GRI) para contactar Behdad Esfahbod era este. “Contactavam-me a falar de Portugal, foi o que combinámos”, conta ao Observador o bem sucedido programador de 38 anos. A mensagem em código para começar a passar informação ao exército do Irão tinha Portugal como tópico porque o seu sonho e da antiga parceira era viverem no país, algo que estava a conseguir com um visto Gold. Um sonho que colapsou depois Behdad ter ido visitar a família ao Irão, em janeiro, e ter sido “feito refém” pela Guarda Revolucionária durante “sete dias e seis noites”.
De origem canadiana e iraniana, trabalhou em empresas como a Google e o Facebook, é tido como uma “estrela” na indústria, como o apelidou o The New York Times, e é um dos responsáveis por programas que estão em vários softwares que usamos. Quando foi detido ainda trabalhava no Facebook (saiu em junho).
Depois de duas semanas e meia em Lisboa a passar o último Natal e a passagem de ano, onde tem um apartamento com a agora ex-namorada, foi ao Irão a 7 de janeiro deste ano para visitar a família. A 3 de janeiro os Estados Unidos da América abateram o general iraniano Qasem Soleimani e o clima era de tensão. Apesar do receio, arriscou a viagem. E então tudo mudou.
Da detenção à libertação sob uma condição: ser espião do exército iraniano
Na noite em que Esfahbod chega ao Irão o país ataca bases militares dos EUA no Iraque. “Um amigo nos EUA disse-me que havia rumores que forças dos da GRI estavam a atacar bases dos EUA no Iraque”, conta. Cansado, voltou a dormir. “Acordei e disse: ‘Pelos vistos não houve guerra’. Entretanto, chegava outra resposta: “Disseram-me: atingiram um avião de passageiros [o Boeing 752, a 8 de janeiro: morreram 176 pessoas]”. O alegado acidente abalou o mundo, que desconhecia qual o desfecho nas relações entre Irão e os EUA. Fosse qual fosse o cenário, não deixava de ser “um erro imperdoável”, como disse presidente do Irão, Hassan Rouhani.
“Nesse dia fui à minha antiga universidade [a Universidade Sharif de Tecnologia], praticamente toda a gente conhecia alguém que estava no avião”, conta Behdad. No mesmo dia ainda foi a uma celebração em memória do seu avô e foi uma publicação Instagram que desencadeou os momentos seguintes. “Partilhei uma fotografia e quem me andava a vigiar percebeu que estava em Teerão“, refere.
A chegada de Behdad ao país, vindo de Lisboa e com uma escala em Istambul, não tinha soado alarmes por uma questão burocrática — “Como nos EUA e noutros sítios há vários serviços de inteligência do Irão”, refere. Sendo diferentes, a comunicação não é sempre a melhor. Quando Behdad pôs a fotografia no Instagram, os serviços de inteligência agiram. “Estiveram duas noites à porta de casa da minha irmã para ver se me apanhavam e tinham o meu telefone sob escuta”, uma certeza que surge porque foi detido quando o encontraram num local onde ia ter com o pai. “Só ele é que sabia”, supostamente.
“Levaram-me todos os dispositivos eletrónicos e o passaporte”. Por acaso, a família soube que o programador tinha sido levado por um acaso. “Quando me levaram a casa da minha irmã para recolher os meus aparelhos eletrónicos, por acaso o meu cunhado estava lá. Se ele não estivesse lá a minha família tinha achado que tinha desaparecido ou sido raptado“, diz.
“Fui questionado todos os dias por várias horas antes do almoço e várias horas depois”. Nos entretantos, estava vedado ou fechado sozinho numa cela sem luz. “O mesmo captor principal estava sempre presente. Os outros não podia ver”, explica. Durante todos os interrogatórios permaneceu numa mesa virada para a parede, “que era onde me sentava”. Os membros da Guarda Revolucionária Iraniana “tinham uma mesa com um computador e uma impressora”. “Tipicamente duas pessoas estavam a ver os meus dados e pediam-me explicações ou informações”, recorda. “No total, devem ter estado cerca de 6 ou 7 pessoas diferentes, mas só falava com o captor principal”. Foi uma constante “tortura psicológica”, alega.
“Inicialmente disseram que queriam tratar do meu caso rápido, mas percebi ao terceiro dia que era tudo uma farsa. Pedi um advogado e riram-se. Disseram basicamente: ‘É um assunto de segurança nacional, não pode ter um advogado“. Os dias foram passando e Behdad, com toda a informação digital exposta, era interrogado. “O tom do interrogatório era calmo e simpático. Só duas vezes é que levaram uma pessoa com tom bruto que sugeriu que me podia acontecer alguma coisa se não cooperasse ou se mentisse”, conta. Num dos episódios, falaram-lhe do “erro humano do avião” e defenderam que também o podiam manter com a justificação de um erro semelhante.
Quando confirmaram que Behdad não trabalhava “com outros movimentos”, comunicaram que seu destino ficaria entregue a um juiz. “Tem de esperar por uma sentença que pode chegar a 10 anos”, atiraram. Era tudo “uma treta”, só queriam que cooperasse. É aqui que aparece a proposta para se tornar espião: “Ou então aceita sair sob caução e continua a informar-nos sobre o que sabe da sua rede de contactos, onde estão e o que fazem”. Behdad assume que nem pestanejou: “Aceitei sem hesitação porque tinha de lhes mostrar que estava feliz com isso e que os ajudava”.
O Observador entrou em contacto com a Embaixada do Irão em Portugal de forma a obter uma reação sobre as alegações de Behdad mas não obteve nenhuma resposta até à publicação deste artigo.
De Teerão para Lisboa e Seattle com um trauma pelo meio e uma pandemia a chegar
Os meses seguintes foram caóticos. Mal pôde, voltou para Lisboa. A par do sucedido, a sua parceira, que é cidadã dos EUA, rumou a Seattle e “começou a falar com advogados”. “Estava traumatizada” e não foi capaz de dar a Behdad o apoio de que precisava. “Ela sabia, foi notificada pela minha família. Deixaram-me ligar-lhe em cativeiro, mas diziam-me o que lhe dizer e o que não dizer”, refere.
O pior para Behdad ainda estava por vir, mesmo depois de se libertar daqueles longos dias e noites: “Disse-lhe que não podia estar sozinho. Ela voltou [a Lisboa] e quando o fez eu estava tão paranóico que, mesmo estando no meu apartamento, não era muito diferente daquilo que passei no confinamento”. Por mais que tentasse, Behdad vivia com receio e não sabia como agir: “Eles tinham o meu endereço em Lisboa, sabiam onde era“.
Passou cerca de um mês em Lisboa a tentar recuperar o acesso às contas de Facebook, Twitter, Google e outras. “Foi tudo desligado pelo meu empregador [Facebook] e outras empresas depois de ter sido claro para eles que tinha sido feito refém, praticamente”, explica. Enquanto esteve detido, os captores descarregaram todos os dados de todas as contas de Behdad. Agora, nem um computador seguro tinha. “Ao voltar para os EUA não posso dizer que não tenho acesso às minhas contas, tinha receio”, desabafa. Além disso, “havia histórias” de canado-iranianos a tentar entrar nos EUA por Vancouver, no Canadá, e que foram detidos e interrogados. “Estava aterrorizado de entrar nos EUA e ser interrogado de novo durante horas, não conseguia passar por isso outra vez”, assume.
Durante o mês de fevereiro esteve com uma baixa médica do Facebook. Sem rodeios, avisou as autoridades canadianas do que tinha acontecido: “Disseram-me que as autoridades dos EUA provavelmente já sabiam do meu caso”. Ao mesmo tempo, avisou também o Facebook de tudo o que tinha acontecido. “Em termos de acomodações de trabalho deram-me muito apoio. Podia ficar de baixa médica durante quanto tempo precisasse“, afirma.
Mesmo assim, no final de março decidiu voltar para Seattle. Queria um bocadinho de normalidade. Porém, Behdad mal sabia que o mundo estava a caminhar para um novo normal que o ia forçar a um novo confinamento forçado.
Um novo confinamento, a mensagem de código do exército iraniano e a saída do Facebook porque disse “fuck [fod****]”
Em março, Behdad deixa Lisboa juntamente com a parceira. “Entrámos nos EUA e fui levado de lado na fronteira [em Newark, onde fez escala] e contei-lhes tudo o que aconteceu. Falámos durante três horas, foram muito simpáticos, anotaram tudo”. No final disseram, “bem-vindo a casa” e que outra agência podia contactá-lo. No entanto, isso “nunca aconteceu”.
O novo coronavírus começava a criar receios. Além disso, a relação de Behdad com a parceira com quem tinha o sonho de vir viver para Portugal estava tremida. Passou dois dias em Nova Iorque e foi para Seattle, onde procurava retomar a normalidade de outros tempos, mas eis senão quando começam os confinamentos impostos pela Covid-19 ditam outro cenário. Com a ex-parceira a voar para Lisboa para fazer a quarentena, antes de as fronteiras serem encerradas, Behdad viu-se sozinho nos EUA. “Durante todo o mês de março tentei ter novos equipamentos para o trabalho. Por causa da pandemia, os escritórios do Facebook estavam fechados e demorou um bocado a mandarem-me novos aparelhos e autenticarem-me. Aí, as fronteiras já estavam fechadas”, explica.
Os meses seguintes foram o contrário do que Behdad procurava. Mesmo assim, fechado no apartamento, continuou a trabalhar. Em maio, começavam os protestos do movimento Black Lives Matter na sequência do assassinato de George Floyd. “As ruas à frente do meu apartamento em Seattle pareciam um cenário de guerra“, diz, enquanto a sua saúde mental continuava a deteriorar-se, sempre com o receio de que o exército iraniano o contactasse, algo que aconteceria a 14 de junho. “Contei-lhes [em janeiro] que ia viver para Portugal permanentemente. Combinámos que quando o fizesse punha uma fotografia no Instagram a anunciar e que só me contactariam a falar sobre Portugal”, explica. “Foi esse o acordo”. Um acordo que um Behdad a braços com um trauma amplificado pela pandemia acabaria por não cumprir. Quando recebeu a mensagem de código, permaneceu em silêncio.
“Contactaram-me e recusei-me a responder”. Durante algumas semanas tentaram contactá-lo de novo através de várias plataformas, como o Telegram, WhatsApp, entre outras. “Neste tempo despedi-me e mudei-me para o Canadá, estava a trabalhar sobre como revelar a minha história, sobre o que me tinham feito“. Enquanto todas estas batalhas eram travadas, Behdad, que continuava a ser um programador de sucesso, envolvia-se noutro tipo de guerras.
“[Ao mesmo tempo] comecei a ter uma picardia com a Microsoft e a Adobe sobre o que considero serem as coisas que fazem mal nesta indústria [tecnológica]”. A certo ponto, “várias pessoas da Adobe começaram a reportar os atos para me calarem”, acusa. Isto tratou-se de uma discussão no Twitter, rede social na qual Behdad é bastante ativo. O assunto em questão é um tema tecnológico que daria origem a todo um outro artigo, igualmente extenso, ficando-nos por um pormenor importante: num dos posts exaltados o programador escreveu “fuck”, ou a “F word” [foda-se, em português, termo igualmente forte mas utilizado de forma mais corriqueira em inglês].
“No Facebook, o meu manager apoiava-me”. Porém, à terceira tentativa de pressão, os recursos humanos questionaram o “tom” por ter utilizado a palavra “fuck” no Twitter”. “Eu tenho liberdade de expressão no Twitter, é o meu Twitter pessoal“, defende-se, enquanto o Facebook se preparava para avaliar o caso. “Tinham de ir pensar se tinha ou não liberdade de expressão no meu Twitter pessoal ou se por ser empregado do Facebook a minha conta também representa a empresa”.
Foi a “gota de água” para Behdad sair do Facebook. “Inicialmente, aceitei que tinham de pensar, mas depois lembrei-me que a mesma empresa afirma que não pode moderar ou fazer fact checks ao Donald Trump na sua plataforma”. Isto, continua, “mesmo que as mensagens de Trump incitem à violência diretamente e tenha um impacto nas pessoas”. “Tinham de pensar se eu podia usar a F word no Twitter?”, questiona. “Essa hipocrisia chateou-me bastante e despedi-me [do Facebook] no mesmo dia, a 24 de junho“, diz. Desde aí, não foi contactado pelo Facebook, apesar de garantir que continua a receber apoio do antigo manager. O Observador tentou contactar o Facebook sobre esta parte das alegações, mas a empresa não quis prestar declarações.
“Se lerem alguma coisa minha, por favor seja isto”
Cada vez mais mais isolado, Behdad decidiu voltar para o Canadá. Desde 2014 que é também cidadão daquele país, para onde se mudou em 2003 para fazer o mestrado, e onde tem família que o está a ajudar neste momento. “O Canadá é seguro e bom”. Foi aí que tomou a decisão de partilhar através do Medium toda a história do que passou em janeiro. “Se lerem alguma coisa minha, por favor seja isto”, publicou a 17 de agosto.
A decisão de partilhar a história surgiu porque, a 14 de agosto, recebeu uma mensagem da irmã que vive no Irão. O conteúdo era uma imagem de uma notificação a dizer que Behdad tinha de voltar ao país para mais interrogatórios. Não aguentou mais a pressão e decidiu abrir o jogo. Tirando o caso de uma ativista iraniana que o acusa de não ter protegido bem a sua informação digital “porque, afinal, é programador”, e de uns amigos que o acusaram de que devia ter falado mais cedo, todos se têm mostrado solidários, incluindo a família, no Irão, que “não tem sido assediada”, mas cujo destino também é visto com apreensão pelo programador. “Tenho falado pouco com a minha irmã, mas não sei o que é que o futuro lhes reserva [a ela e ao pai]“.
A história tem sido publicada em jornais por todo o mundo, como mostram as peças no The New York Times, The Guardian ou esta, já no solo português onde desejava instalar-se. “Neste momento só peço para me ouvirem, só espalhar a história é o que peço. É o que as pessoas têm feito. É assim que lutamos contra os abusos”, afirma Behdad, que apesar de ter amigos envolvidos em movimentos que criticaram em 2009 o regime iraniano, nunca se viu “como um ativista”, uma posição que ganha agora outros contornos: “Os abusos podem continuar desde que outros não saibam e outros não os calem. Dar a conhecer os abusos dos abusadores é primeira maneira de lutar contra isso e é isso que estou a fazer. O apoio que tenho tido é ótimo. Só quero que as pessoas saibam a minha história”.
O trabalho remoto ainda não era uma realidade tão omnipresente em 2019, quando o plano de Behdad era ir para Lisboa e “convencer” o Facebook a trabalhar a partir da capital portuguesa, algo que estava a funcionar. “Nós, a minha ex-parceira e eu, queríamos explorar o estilo de vida europeu, que tem bom clima e pessoas mais descontraídas e amigáveis”, descreve. Será que Behdad volta a Portugal? Pelo menos os sonhos ainda não precisam de grande programação: “Espero que sim. No meio disto tudo, a relação que perdi, esse sonho de irmos para Portugal e construirmos uma nova vida romântica, nunca se materializou. Essa é a parte que ainda não consegui ultrapassar. Não sei o que vai acontecer”.