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Este é o 11.º artigo de uma série sobre a história da nomenclatura automóvel ao longo de 137 anos e três continentes. As partes anteriores podem ser lidas aqui:

Ford

Henry Ford (1863-1947) costuma ser celebrado como pioneiro da indústria automóvel, mas esteve longe de ser o inventor do automóvel: quando ele construiu o seu primeiro carro, o Quadricycle, em 1896, já tinham passado dez anos sobre o primeiro carro com motor de combustão interna de Karl Benz e no ano anterior Émile Levassor cumprira 1200 Km, entre Paris e Bordéus, em 48 horas, ao volante de um Panhard & Levassor. Na verdade, nem sequer foi o primeiro a lançar-se neste ramo no lado de lá do Atlântico: no ano de 1899, quando fundou a sua primeira empresa, a Detroit Automobile Company, um total de 60 (sessenta) fabricantes de automóveis iniciaram actividade nos EUA.

Henry Ford

Henry Ford, c. 1930

O que Henry Ford trouxe de decisivo à história do automóvel foi a democratização da sua posse, assente na baixa considerável do seu preço, graças à racionalização do processo de fabrico, e no pagamento de salários justos aos seus operários, por entender que isso lhes permitia tornarem-se proprietários de um carro, privilégio que, até aí, estivera restrito a uma elite endinheirada. Se essa democratização, que gerou um urbanismo, um modo de vida e uma civilização “carrocêntrica”, foi, no cômputo final, positiva, já é outra discussão.

1908 Ford Model T

Ford Model T de 1908

Henry Ford não passou muito tempo na Detroit Automobile Company: saiu em 1901 por desentendimento com um dos principais accionistas (que rebaptizaria a empresa como Cadillac – sobre isso se falará no capítulo sobre a General Motors) e formou, nesse mesmo ano, a Henry Ford Company, que passaria a Ford & Malcolmson e, em 1903, a Ford Motor Company, com a entrada no capital dos irmãos Dodge, como forma de compensar estes pelos atrasos no pagamento dos componentes que estes tinham vindo a fornecer à Ford.

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Ford designou os seus modelos por ordem alfabética, ainda que com muitos hiatos pelo meio: assim, entre 1903 e 1908 surgiram os Model A, B, C, F, K, N, R e S (sendo o R e o S evoluções do N). O Model T, de 1908, costuma ser apontado como o primeiro veículo do mundo a ser produzido em massa, graças ao conceito de linha de montagem, implementado na fábrica Ford de Highland Park, Michigan. Todavia, nem a ideia partiu de Henry Ford – foi William Klann, que se inspirou nas linhas de desmancha de carcaças nos matadouros industriais de Chicago, que a transmitiu a um executivo da Ford – nem foi a Ford o primeiro fabricante automóvel a aplicar o conceito, pois este já tinha sido posto em prática pela Oldsmobile, a partir de 1902, com o modelo Curved Dash. Há, porém, uma distinção a fazer: a Oldsmobile empregou uma linha de montagem estática, enquanto na da Ford cada veículo ia sendo montado à medida que se movia ao longo da linha.

Attaching Gas Tank

Linha de montagem de uma fábrica da Ford, c. 1923

Seja como for, o Ford Model T foi um êxito sem precedentes, que certamente foi impulsionado por Ford ter aumentado o pagamento dos seus operários para o dobro em relação ao que era praticado na indústria automóvel (também lhes reduziu o horário de trabalho semanal de 48 para 40 horas, mas não se pense que era um socialista – era intransigentemente contra a existência de sindicatos).

Henry Ford Senior

Henry Ford entre o Ford Model T n.º 10 milhões e o seu primeiro ensaio na construção automóvel, o Quadricycle

Em meados da década de 1920 o Ford Model T era um carro obsoleto, mas Henry Ford resistia a substituí-lo, agarrando-se à convicção de que o que importava era providenciar um carro o mais simples, robusto, fiável, padronizado e barato possível e que as novidades que as marcas rivais tinham vindo a introduzir – umas “decorativas” (designs mais atraentes), outras práticas (motor de arranque eléctrico, em vez de se dar à manivela) – eram luxos supérfluos. A pressão do seu filho Edsel e dos outros executivos da marca e a quebra das vendas face à concorrência levaram Henry Ford a ceder: em 1927, após terem sido fabricadas 15 milhões de unidades, a produção do Model T cessou e começou a do Model A (no que respeita à nomenclatura, um desajeitado regresso ao início do alfabeto), que incorporava muitas inovações tecnológicas, estéticas e de conforto e se manteria em produção até 1932, vendendo quase cinco milhões de unidades.

[Linha de montagem do Ford Model A, fábrica de Highland Park, Michigan]

Entretanto, em 1919, Henry Ford cedera a presidência ao filho Edsel, embora mantivesse influência na gestão da empresa. Em 1922, a Ford adquiriu a Lincoln, para competir no segmento de luxo, e em 1938, por iniciativa de Edsel Ford, foi criada a Mercury para competir na gama média. No final dos anos 30, a capacidade de trabalho de Henry Ford foi minada por problemas de saúde e o poder decisório foi transferido cada vez mais para Edsel. Quando este morreu, em 1943, Henry Ford tentou reassumir o leme, mas o seu débil estado de saúde mental levou a que, na prática, fosse relegado a um papel secundário. A sua presidência registou constante acumulação de prejuízos e terminou em 1945, dando lugar ao neto, Henry Ford II.

Entre os mais famosos modelos concebidos pela Ford está o desportivo Ford Thunderbird, lançado em 1955 para concorrer com o Chevrolet Corvette e cujo nome provém de uma criatura mitológica comum a muitas tribos de índios norte-americanos, o pássaro-trovão. Este tem diferentes atributos consoante as diferentes tribos, mas é visto em geral como sendo uma ave de enorme porte, associada à chuva (que está sob o seu controlo) e aos trovões (que são causados pelo bater das suas asas).

O Ford Thunderbird passou por 10 gerações entre 1955 e 1997 e foi ressuscitado para uma 11.ª geração em 2002-05. Como acontece nas séries longas da indústria automóvel, a única continuidade objectiva entre os primeiros e os últimos modelos reside no nome.

Ford Thunderbird de 1955

Outro modelo desportivo da Ford que assumiu estatuto lendário e tem tido longa vida é o Mustang, lançado em 1964 e que continua a ser fabricado nos nossos dias: está presentemente na 6.ª geração, lançada em 2015, e em 2020 juntou-se à coudelaria uma versão eléctrica, o Mustang Mach-E. O nome provém da designação dada nos EUA aos cavalos descendentes dos cavalos trazidos para o Novo Mundo pelos espanhóis, que se extraviaram e regressaram ao estado selvagem. “Mustang” deriva do espanhol medieval “mestengo” (ou “mesteño”), usado para designar gado extraviado ou sem proprietário conhecido e que, portanto, revertia para as “mestas”, isto é, associações ou grémios de pastores.

Ford Mustang de 1965

O nome Mustang evoca a liberdade que os marqueteiros se esforçam por associar à posse de um carro desportivo e a mensagem é reforçada pelo logótipo com um mustang a galope. O nome do Ford Bronco, um SUV de grande sucesso, produzido entre 1965 e 1996, provém, como o Mustang, da terminologia equina do Oeste dos EUA: designa um cavalo difícil de domar e que tenta ver-se livre do cavaleiro, saltando e arqueando o dorso (o que é uma característica desejável para os cavalos dos rodeos). O termo provém do espanhol “bronco”, que tem o mesmo significado que a palavra portuguesa homógrafa: alguém rude, grosseiro, intratável. Todavia, foi comercializado nos mercados hispanófonos e lusófonos sem alteração de nome.

1966 Ford Falcon - Galaxie 500XL - Ford Lineup

Ford Bronco de 1966

O nome do Ford Pinto, um carro lançado em 1970 para fazer frente aos modelos europeus e japoneses de pequenas dimensões que então ganhavam popularidade nos EUA, remete mais uma vez para o Oeste Selvagem e para cavalos: a palavra inglesa “pinto” provém do termo espanhol para “sarapintado” ou “salpicado” e designa os cavalos de pelagem manchada de branco, conhecidos em português por “pintados”. Os “pintos” gozaram de popularidade na Europa do século XVII, mas a voga passou depressa e muitos deles foram “despachados” para o Novo Mundo, cujo mercado era menos exigente quanto ao aspecto das cavalgaduras; muitos destes “pintos” acabaram por extraviar-se e regressar ao estado selvagem, constituindo uma fracção significativa dos mustangs e, logo, dos cavalos das tribos de índios norte-americanos.

Comanche e “pinto”, por Frederic Remington (1861-1909)

Em português, “pinto” não é um nome atraente para um automóvel e nos EUA acabou por também ganhar uma aura negativa, devido a vários acidentes seguidos de incêndio que resultaram em processos judiciais mediáticos na segunda metade da década de 70,. Os julgamentos lançaram suspeitas de práticas pouco éticas pela parte da Ford, que teria sacrificado a segurança dos ocupantes do carro a cálculos mesquinhos – independentemente da justeza destas acusações, o último Pinto foi fabricado em 1980 e é improvável que o nome seja ressuscitado.

Ford Pinto de 1971-72

Também o nome do Ford Kuga, um SUV lançado em 2008, pretende sugerir outro animal emblemático da fauna norte-americana, o puma ou leão-da-montanha (“cougar” em inglês), mas os falantes de esloveno e servo-croata ouvirão nele significado bem diverso: “peste negra”.

A Ford Motor Co. chegou a deter várias marcas europeias e asiáticas, mas alienou a participação na Aston Martin em 2007, na Jaguar e Land Rover em 2008 e na Volvo em 2010 e extinguiu a Mercury em 2011, pelo que hoje se resume à Ford e Lincoln.

Em 2021, a Ford Motor Co. ficou em 3.º lugar no mercado americano, com uma quota de mercado de 12.6%, atrás da Toyota e da General Motors.

Lincoln

Foi criada em 1917 por Henry M. Leland (1843-1932), que fundara em 1902 a Cadillac (a partir de uma empresa fundada por Henry Ford) e a vendera à General Motors sete anos depois. Leland mantivera-se como executivo da Cadillac, mas desavenças com a direcção da General Motors levaram-no a criar a sua própria marca, baptizada com o nome do 16.º presidente dos EUA, Abraham Lincoln (1809-1865), por quem Leland tinha grande admiração e em quem votara nas eleições presidenciais de 1864, quando tinha 21 anos. O objectivo de Leland era competir com a Cadillac no segmento de luxo, mas o seu primeiro modelo, o L-series, lançado em 1920, não teve as vendas esperadas e a empresa entrou em insolvência em 1922, acabando por ser comprada pela Ford, que a converteu na sua divisão de carros de luxo, sob a direcção de Edsel Ford.

Lincoln L-series de 1923

O modelo mais famoso da Lincoln foi o Continental, cuja primeira versão surgiu em 1939 e que resultou do desejo de Edsel Ford de criar um carro com elementos de design mais elegantes e “europeus” – o nome Continental supostamente remete para essa aura europeia (como se a América não fosse também um continente…). As limusines Lincoln foram escolhidas como carros oficiais de muitos presidentes dos EUA (Roosevelt, Truman, Kennedy, Nixon, Ford, Carter, Reagan) e foi a bordo de um Lincoln Continental que John Kennedy foi assassinado em 1963. A marca mantém-se activa.

A 1941 Lincoln Continental

Lincoln Continental de 1941. O compartimento para pneu sobressalente destacando-se na mala traseira era uma característica frequente nos carros europeus da época

Mercury

Foi criada como divisão da Ford Motor Company em 1938, com o fito de produzir carros de gama média, entre os da marca Ford e da marca Lincoln. O seu primeiro modelo, o 99A, surgiu no ano seguinte, mas a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, em 1941, fez com que toda a indústria suspendesse a criação de novos automóveis de passageiros e se concentrasse no esforço de guerra.

Mercury Model 99A, de 1939

A partir de 1952, com o Monterey, a marca deu preferência a nomes começados por M: Montclair (1955), Meteor (1961), Marauder (1963), Marquis (1967), Montego (1968), Monarch (1975), Mystique (1995), Mountaineer (1997), Mariner (2004), Milan (2006). Esta voga conviveu com um pendor “cósmico”, com o Comet (1960) e o Meteor (1961) – a corrida ao espaço e a ficção científica estavam na moda na viragem dos anos 50/60 – e com uma série “felina”, com o Cougar (1967), o Bobcat (1974) e o Lynx (1981). Não é preciso ter aversão à aristocracia para achar que a designação Grand Marquis (modelo produzido entre 1975 e 2011) é assaz pretensiosa (e mais própria da gama Lincoln do que da Mercury). A marca Mercury foi extinta no início de 2011.

Edsel

Em 1956, a Ford decidiu reestruturar a actividade e criar duas novas sub-marcas, a Continental, no segmento de luxo, visando competir com a Cadillac e tendo por base o êxito do Lincoln Continental, e a Edsel, visando cobrir o segmento entre a Mercury e a Lincoln e baptizada em homenagem ao filho de Henry Ford (falecido em 1943), decisão que resultou de um longo e retorcido processo e que enfrentou alguma resistência da parte da família Ford (nem todos acharam bem que Edsel desse nome a um carro ou a uma marca de carro).

Three Family Ford Executives in Convertible

A dinastia Ford: Três filhos de Edsel Ford – da esquerda para a direita: William Clay Ford e Benson Ford, vice-presidentes da empresa, e Henry Ford II, presidente – apresentam o Edsel Citation Convertible

O lançamento da Edsel foi (supostamente) precedido por aturados estudos de mercado e assentou (supostamente) num planeamento meticuloso em termos de estilo e processo industrial, e foi apoiada por uma maciça campanha publicitária, que fez por promover o Edsel como “um novo tipo de carro”. A aparência do carro rompia, efectivamente, com as convenções, mas a ruptura não foi bem aceite pelos consumidores e a morfologia dos Edsels logo se tornou tema de anedotas, sobretudo a sua insólita grelha dianteira (dizia-se que um Edsel é “um Oldsmobile a chupar um limão”). Se não houve o cuidado de auscultar as reacções dos potenciais clientes, o planeamento do fabrico também foi atabalhoado, do que resultou um deficiente controlo de qualidade e, logo, a proliferação de carros com deficiências.

Estes e outros problemas fizeram com que, contrariando as elevadas expectativas nela depositadas, a Edsel se tornasse no maior fiasco da história da Ford (que perdeu com isto 300 milhões de dólares). Robert McNamara, que entrara para a Ford como gestor em 1946 e em 1960 se tornou no primeiro presidente da empresa a não provir da linhagem Ford, era adverso à proliferação de sub-marcas e começou por agrupar a Mercury, a Edsel, a Lincoln e a Continental numa divisão; em 1960 extinguiu a Edsel e a Continental (que nunca lograra autonomizar a sua imagem da Lincoln nem obter boas vendas), antes de rumar a uma nova vida como Secretário de Estado de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson.

Edsel Hardtop and Convertible

Dois Edsels de 1958, um hardtop de duas portas e um descapotável