Há já uns bons anos que este tipo de encontro amoroso, em que X pessoas conhecem outras X em curtas conversas cronometradas, foi exportado dos EUA para o resto do mundo. Há quem diga que a pressão de se ter de causar boa impressão num curto espaço de tempo é entusiasmante. Há quem não lhe ache piada por parecer que não se chega a lado nenhum e que as conexões ficam sempre à superfície. Mas e se se trocar o potencial parceiro ou parceira por alguns dos melhores cozinheiros do mundo?
No passado dia 18 de julho, em Londres, foi revelada a listagem dos melhores restaurantes do mundo para o “The World’s 50 Best Restaurants”, o prestigiado ranking internacional anual. No mesmo dia em que o restaurante dinamarquês Geranium foi galardoado com o primeiro lugar, um pequeno grupo de jornalistas foi desafiado a participar numa espécie de speed dating.
Num hotel de luxo junto ao rio Tamisa, bem cedo pela manhã, cerca de 15 jornalistas de vários cantos do mundo (Eslováquia, Dubai, Argentina ou Portugal, claro) foram distribuídos em grupos de três por uma série de sofás de veludo azul. A distingui-los, um número: “Importa-se de se sentar na zona 3, por favor?”, instruiu uma rapariga da organização. “Os chefs estão quase a chegar. Quando estiverem aqui todos, começamos as rondas de entrevistas em modo speed dating: 12 minutos por grupo, quando tocarmos a sineta acabou-se o tempo”, acrescentou.
O segredo está na herança cultural
O primeiro pretendente foi um dois em um: o casal JP e Ellia Park, chef e responsável de sala, respetivamente, do novaiorquino Atomix. Ligeiramente intimidados — claramente também faziam isto pela primeira vez –, começaram a falar antes de sequer ter sido feita alguma pergunta: “Comecei a trabalhar profissionalmente em cozinha no The Ledbury, aqui em Londres, em 2007, quando estava na faculdade e fui lá fazer um estágio durante quatro ou cinco meses”, conta JP. Quando acabou esse curso, mudou-se para a Austrália para prosseguir a sua carreira. Em pouco tempo, uma dúvida assolou-o: ”Comecei a sentir que, apesar de gostar muito do que estava a fazer, não encontrava nada que me fizesse destacar de qualquer outro cozinheiro em qualquer outra cozinha do mundo.” Não quis ser “só mais um” e encontrou na sua linhagem uma solução. “Se continuasse onde estava provavelmente chegaria a sub-chef ou algo assim, mas tinha mais ambição que isso. Isto fez-me olhar para as minhas raízes coreanas e vê-las como algo que me poderia diferenciar dos outros, isto poderia ser a minha força.” E assim foi.
Mudou-se para a Coreia, por lá aperfeiçoou a sua técnica naquilo que chama “nova cozinha coreana” e, quando sentiu que estava pronto, mudou-se com a mulher para Nova Iorque. “Trabalhámos em vários restaurantes por lá e em 2016 abrimos o Atoboy, o Atomix só apareceu dois anos depois (entrou na lista pela primeira vez em 2018)”, conta. Mais tímida e reticente, a sua mulher, Ellia, ia acenando com a cabeça. Acabaria por ser ela, porém, a explicar que a escolha de Nova Iorque como poiso fixo fez-se pela multiculturalidade e abertura desta cidade. “Nova Iorque tem tanta diversidade cultural e tanta abertura para novas experiências que, quando abrimos o Atoboy e o Atomix, sentimos que o nosso desejo de mostrar a cultura e a comida coreana foi logo muito bem recebido. As pessoas têm uma mente muito aberta”, aponta. Mesmo os clientes coreanos que os visitam na metrópole norte-americana veem-nos com bons olhos. Ellia explica que, inicialmente, quando estavam a tentar fazer esta nova comida coreana no seu país, o tradicionalismo gerava incompreensão: “A maioria dos restaurantes na Coreia eram espaços tradicionais, não havia praticamente fine dining”, conta. Felizmente, “agora há cada vez mais e isso ajuda a mostrar que não há só uma comida coreana, existem várias e todas elas são pertinentes.” Quando começámos a falar sobre o processo criativo deste cozinheiro, a sineta tocou e estava na hora de conhecer outro chef.
O que é isso do “nipónico-africano”?
Gigante e de voz grossa, lá apareceu o segundo “candidato”. Se se tentasse adivinhar a sua nacionalidade só pelo sotaque, seria quase impossível — um toque de very british com qualquer coisa mais pelo meio. Era Peter Tempelhoff, o chef do restaurante Fyn, na Cidade do Cabo, África do Sul. Pelo seu nível de descontração, claramente não fazia ideia que umas horas mais tarde, nessa noite, iria ser anunciado como o melhor restaurante do continente africano, ocupando a 37ª posição da lista do The World’s 50 Best Restaurants.
Infelizmente, o cenário gastronómico de países como a África do Sul está longe de ter o mediatismo que merecem. O que se passa por esses lados, então? “Temos um panorama gastronómico muito fixe, até. Tudo muito concentrado à volta da Cidade do Cabo, é aí que existe o principal mercado turístico e os restaurantes, por causa disso, acabaram por se virar mais para esse universo”, explica. Aos 59 anos, este discípulo de Marco Pierre White é aquilo que se pode descrever informalmente como ‘um porreiraço’. Descontraído e sempre com uma piada na ponta da língua, apresentou o seu projeto com tal à vontade que parecia já ter feito isto do speed dating antes.
“O Fyn abriu em novembro de 2018, com 55 lugares. Estivemos abertos durante um ano, depois chegou a pandemia, fechámos durante um ano e agora voltámos em força”, explica. Apesar da sua formação ter sido totalmente alicerçada na doutrina clássica francesa, as muitas viagens que fez ao Japão acabaram por lhe trocar as voltas. “Sinto que a África do Sul já estava pronta para algo diferente. Muitos restaurantes por lá têm abordagens mais clássicas, muito à base de inspirações francesas, e acho isso aborrecido. Acredito que o Fyn e a sua vertente japonesa sejam refrescantes” — e são, daí o seu resultado impressionante na lista, especialmente tendo em conta que só entraram nela pela primeira vez no ano passado, ocupando o 92º lugar.
Aquilo que apresenta é então uma série de pratos de inspiração japonesa, mas que, segundo o próprio, têm “uma grande devoção à identidade sul-africana”. Resume isso, entre risos, no conceito “nipónico-africano”. Na prática, isto traduz-se em pratos como o chawamushi de ovo de avestruz com caviar africano, oriundo dos lagos de Madagásgar, por exemplo, ou até mesmo o próprio miso que fazem a partir de cereais africanos, não esquecendo o katsobushi feito com recurso a uma espécie de “barracuda que é fumada e seca” por eles. “Dling, dling dling!” — toca a sineta. Antes de Peter se levantar para passar à próxima mesa, ainda teve uns segundos para explicar o seu sotaque peculiar: “O meu sotaque está um pouco lixado e eu explico-te porquê: nasci nos EUA, em Boston. Depois vivi no Canadá, em Vancouver, durante cinco anos, minha mãe é canadiana e o meu pai é sul-africano. Depois ainda estive em Londres sete anos, tudo coisas que não ajudam nada em termos de sotaque”, dispara. Facilmente teríamos ficado a falar mais tempo, não fossem as regras do jogo.
O novo rumo da “chef cabra”
Ana Roš dispensa qualquer tipo de apresentação. Por fazer parte do olimpo que se reuniu nos primeiros episódios da série da Netflix “Chef’s Table”, tornou-se uma super-estrela. Mas a sua fama tem mais que se lhe diga, como deu para perceber em 12 míseros minutos de conversa.
“Vais ficar a ouvir todas as entrevistas?”, pergunta a chef eslovena do restaurante Hiša Franko à rapariga da organização que a acompanhava — cada chef tinha uma pessoa destas, uma espécie de moderador que, no limite, intervinha caso houvesse zero tema de conversa. Perante a resposta afirmativa, Ana remata: “Boa! Então quer dizer que posso ir beber uns copos e tu ficas aqui a responder às perguntas.”
Brincalhona e experiente, começa por falar sobre o seu papel enquanto Embaixadora do Turismo Gastronómico para a Organização Mundial de Turismo, um dos vários braços das Nações Unidas. “O que é que esse posto significa ao certo?”, foi a primeira pergunta. Tendo em conta que lhe foi atribuída essa pasta no final de 2019 e que depois chegou a pandemia, esteve um pouco de mãos e pés atados. Ainda assim destaca um discurso que deu aos representantes das Nações Unidas, numa conferência em Bruges. “Devo dizer que lhes fartei de dar na cabeça [risos]”, exclama. Ana é autodidata na cozinha, a sua formação foi toda feita em diplomacia e relações internacionais, daí que na teoria podia estar mais apetrechada para navegar estes meandros. Ou então não: “Digo sempre que nunca sobreviveria dentro da minha área de formação académica, a diplomacia, porque eu acredito em ações, não em palavras. Podes dizer tudo o que quiseres mas se elas não resultarem em ações, nada acontece.”
Aparentemente, um dos temas que a chef mencionou nesse tal discurso foi a crónica insustentabilidade de qualquer restaurante de fine dining. “A forma como trabalhamos é totalmente insustentável. Se eu quisesse que a minha equipa trabalhasse uma quantidade de horas justas, tivesse um número justo de folgas sem comprometer a essência do fine dining e a qualidade, eu teria de cobrar 1000 euros por pessoa — não posso fazer isso, ninguém pagaria essa quantidade de dinheiro. Isto faz com que muitos cozinheiros queiram deixar esta área.”, explica. E há solução para isto? Talvez.
Sem revelar muitos pormenores, Ana conta que ainda este ano vai aplicar no seu restaurante uma grande mudança que a está a deixar expectante. “Não quero revelar muito mas terá a ver com a sustentabilidade que envolve as pessoas e as horas de trabalho que lhes são pedidas. Posso falhar e aí mostro a bandeira branca, mas quero mesmo mudar e tentar fazer isso. Tudo sem qualquer investidor ou sócio, tudo assente nos meus ombros”, declara, orgulhosa. Nota-se pela sua postura firme que é uma mulher de armas, corajosa, de tal forma que não tem pudores em autocriticar-se: “Deixei de ser uma chef “cabra” que é a única que sabe tudo. Passei a ouvir muito mais a minha equipa e a comida mudou imenso para melhor por causa disso. Claro que sou eu que tenho sempre a palavra final em tudo, mas aprendi a delegar mais”, diz.
As coisas podem não ser aquilo a que sabem
Santiago Lastra, o chef do recente Kol, em Londres, é gigante mas transmite sempre uma meninice que o torna ainda mais carismático. De todos foi o que melhor se vestiu para o tempo infernal que se fazia sentir lá fora, longe do ar condicionado e das garrafas de água bem fresca: calções, t-shirt lisa e chinelos de enfiar o dedo. Nunca pára de sorrir.
“Já alguma vez sonharam com comida?”, perguntou. “A primeira vez que isso me aconteceu sonhei que estava a comer uma maçã. O sabor e a sensação de a mastigar e saborear era tão forte que me deixou fascinado: estava a comer e a não comer uma coisa, tudo ao mesmo tempo”, explica. Pode parecer um raciocínio descabido mas Santi, como lhe chamam os amigos, rapidamente elaborou ao descrever o seu estilo de cozinha: “Mudei-me para aqui [Londres] porque queria mostrar a enorme versatilidade da cultura mexicana, mesmo num sítio que não fosse nada parecido com o México. Quis ir para um sítio com condições meteorológicas diferentes, para que pudesse ser mais criativo”, conta. Fazer com que algo que não é uma manga soubesse a uma manga é o tipo de coisas que Santiago queria fazer — daí a referência ao sonho gastronómico.
Fazer comida mexicana só usando produtos britânicos é então a linha orientadora de Santiago. Ainda no exemplo da tal manga, é dessa forma que a “tem” no seu restaurante: “Começa o desafio: o que é amarelo? A abóbora butternut — pegamos nela. Agora, como é que a posso fazer saber a doce? Cozinho-a mas ao fazê-lo fica com um sabor mais intenso de abóbora. Ok, então não a cozinhamos muito. Mas depois se ficar crua também não tem grande interesse. Por isso fazemos cubos de dois centímetros de abóbora crua e cozinhada, misturamos tudo com uma kombucha de butternut também e flor de sabugueiro”. O chef jura que esta mistura dá origem a algo com “travo similar a manga”, uma espécie de creme que transforma em sorvete e ao qual ainda junta mezcal e um óleo picante. “Isto tudo junto traz-me memórias de comer manga nas ruas do México”, conta.
É neste mundo inocente e criativo que Lastra parece ter sempre vivido. Diz que nunca quis ter um restaurante até ter trabalhado com René Redzepi, o chef-ícone do dinamarquês Noma. “Estarei para sempre grato”, conta. Foi René que lhe mostrou como um restaurante pode ser “um universo muito grande que vai além da comida”, “uma comunidade, um ecossistema” composto por clientes, cozinheiros, ceramistas, produtores e muitos outros intervenientes e que todos juntos criam momentos de prazer, por um lado, e veículos de cultura, por outro. “Senti que se alcançasse nem que fosse apenas um pouco disto a minha vida teria mais sentido”, conta. E assim foi.
Aterrou em Londres sem conhecer ninguém, começou a “chatear” pessoas através do Instagram, “a marcar cafés com desconhecidos”, a assistir a convenções de investidores… Tudo para conseguir chegar mais perto do seu objetivo. “Ouvi muitas vezes pessoas a dizerem-me que estavam há quatro, cinco anos a tentar abrir o seu restaurante e não conseguiam. Tentei ser positivo e convencer-me que mesmo quando as coisas não corriam pelo melhor, aprenderia sempre qualquer coisa”, explica. No início de 2019 acabou por encontrar um investidor e assim começou a ser construído o Kol – que em espanhol significa couve. Durante a pandemia Santiago dedicou-se por inteiro ao estudo da cozinha mexicana e dos produtos britânicos, provou muita coisa, falou com inúmeras pessoas até que a 20 de outubro de 2020 abriu portas pela primeira vez. Desde então foram só prémios atrás de prémios, como o GQ Chef of The Year, uma estrela Michelin, o prémio de Best New Restaurant in Europe para a prestigiada La Liste, entre muitos, muitos mais! O céu, para Santiago, é claramente o limite.
Da democratização do delicioso ao fun dining
Mitsuharu Tsumura foi o último cozinheiro a apresentar-se. O nome remete para o mundo nipónico mas Mitsuharu é natural de Lima, no Peru — não fosse este país o berço da chamada cozinha nikkei, um estilo que deriva de uma enorme vaga de imigração japonesa que chegou a este recanto da América Latina no final dos anos 70. “Tendo em conta o tanto que falei nas outras mesas, acho que vais ter de me mandar calar para conseguires fazer as perguntas”, avisa logo mal se sentou. Enérgico e cheio de vontade de partilhar conhecimento, Micha, como é conhecido, veio falar do seu Maido, espaço que já foi classificado como o melhor da América Latina várias vezes. Pelo menos era isso que (erradamente) se perspetivava.
“Muitas vezes pessoas que não tinham possibilidade de nos visitar no Maido perguntavam ‘quando é que vais cozinhar para nós?’”, conta. Foi isso, segundo o próprio, que o motivou a expandir-se. Como nem toda a gente conseguia ter margem financeira para ir ao seu restaurante, percebeu que tinha de saber conectar-se também “com os clientes que gostam do que fazes mas não têm possibilidade de provar a tua comida”.
“A comida mais consumida no Peru é frango assado. As pessoas pensam logo no ceviche mas isso é só no verão. Lima é como se fosse a Londres da América do Sul, nem sempre sabe bem comer este prato fresco de peixe”, explica. Ora foi com base nisto que decidiu abrir uma cadeia de restaurantes de frango a que chamou “Tori”. Micha explica que nesta cadeia – que assume poder expandir-se além fronteiras – come-se “uma refeição completa, de qualidade, por menos de 10 euros”. Alcançar isto, afirma, foi um marco na sua vida. “Democratizar o delicioso”, como o próprio refere, é das coisas que mais se orgulha. Já tem cinco espaços destes.
Não será isto uma forma de indiretamente financiar o seu restaurante de fine dining? A tática é famosa nestes meandros, mas Micha recusa-a. “É por compromisso social e porque me deixa muito feliz fazer isto. O primeiro motivo para se querer ser cozinheiro é ter vontade de fazer as pessoas felizes. Quando elas estão felizes, nós estamos felizes também”, conta. Quando a vida o levou a trabalhar nos EUA, como gestor de comidas e bebidas em vários hotéis, percebeu a importância de cada espaço ser autossustentável por si mesmo, não dependendo de apoios externos. É isso que jura acontecer com os seus espaços: “Todos os restaurantes devem ser sempre economicamente viáveis, não dependerem de mais nada para além de si próprios. Tens de adaptar o teu negócio para garantir isso”, clama. No seu caso, diz que o faz adoptando a informalidade, não gastando dinheiro “em toalhas brancas imaculadas” ou em “talheres e pratos demasiado caros”. “Poupas dinheiro em alguns detalhes dispendiosos mas não comprometes o divertimento das pessoas. É tudo uma questão de adaptação.” A esta solução chama “fun dining”. Dará resultado? Aparentemente sim, basta ver o quanto cresceu: além do Maido tem cinco casas de frangos, mais um espaço quase a inaugurar no Panamá e ainda outro, já aberto, em Santiago do Chile. Mais dicas de gestão sustentável ficaram por ouvir – a fatídica sineta tocou pela última vez.
Se de facto estivesse em questão um modelo de speed dating a sério, no final destes curtos encontros haveria um outro, mais prolongado: uma refeição num restaurante, provavelmente.