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No verão de 2018, três investigadores encontraram-se em Lisboa com uma missão: estudar os papéis guardados nos envelopes 11 EN do Espólio 3 da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), o espólio de Fernando Pessoa. Recolhidos entre fragmentos de diversos dramas, os manuscritos e datiloscritos do 11 EN nunca tinham recebido qualquer atenção por parte dos estudiosos de Pessoa (que, de um modo geral, sempre preteriram o teatro pessoano) e parecia estar destinados ao esquecimento. Até que houve um dia em que Carlos Pittella reparou neles.
O investigador brasileiro estava a trabalhar na edição crítica do Fausto quando se apercebeu que, entre os muitos envelopes do drama pessoano, quase todos intocados, havia um com mais de 100 papéis “que nunca ninguém tinha pedido”. “Estava mesmo novinho, não tinha uma única impressão digital marcada.” A sensação era a de que, depois de ter sido inventariado, o 11 EN nunca mais tinha sido tocado. E terá sido por isso que nunca ninguém tinha dado conta do título que aparecia a encimar muitos dos papéis: “Portugal”.
“Portugal” foi, durante muito tempo, o nome que Fernando Pessoa deu à Mensagem, o único livro que publicou em vida. A história de como o primeiro nome foi substituído pelo segundo, por causa de um comentário de Alberto da Cunha Dias, amigo de Fernando Pessoa, é famosa, mas o mesmo não se poderá dizer dos primeiros poemas que constituíram o projeto e que, sem ninguém saber, estavam guardados junto do teatro do poeta.
Foi para descobrir os segredos que o 11 EN tinha para contar que Carlos Pittella e os investigadores colombianos Jerónimo Pizarro e Nicólas Barbosa se reuniram em Lisboa. Esse encontro foi a primeira etapa de um longo processo de descrição, transcrição e análise dos mais de 100 documentos até então inéditos, que culminou na publicação, no final da semana passada, de uma nova edição de Mensagem. Com edição de Pizarro e a chancela da Tinta-da China, trata-se da terceira edição crítica desde que o livro foi publicado em 1934, por Pessoa.
Foi nos últimos dias de junho de 2018, numa tarde de muito sol, que nos encontrámos com os três investigadores numa pequena sala da BNP, onde, entre dezenas e dezenas de papéis grafados com a incompreensível caligrafia de Fernando Pessoa, nos explicaram o lento processo de construção de uma edição crítica e o porquê de ser importante revisitar Mensagem, um livro “ainda está aberto e que ainda não fechámos”.
Uma tarde na Biblioteca Nacional à procura da primeira mensagem
Sentado a uma mesa baixa, em frente ao computador, Carlos Pittella ia medindo papéis. “Mensagem é o livro mais editado de Fernando Pessoa. Mais do que Alberto Caeiro. Fiz as contas e, só na Casa Fernando Pessoa, há mais de 30 edições diferentes só em português”, começou por comentar. Se se incluir as edições estrangeiras, o número é ainda maior. “Se contar em várias línguas, já nem sei”, admitiu o investigador.
Até ao verão de 2018, existia uma única edição crítica de Mensagem, editada em 1993 com o apoio da UNESCO. Coordenada por José Augusto Seabra, procurava aproximar esta obra da poesia esotérica de Pessoa. No final de 2018, e por isso posterior ao trabalho realizado por Pittella, Pizarro e Barbosa na BNP, saiu uma segunda, pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM), com edição de Luiz Fagundes Duarte. Esta versão juntou Mensagem aos poemas publicados em vida. Nenhuma das duas teve em conta a génese dos 44 poemas, que os três investigadores esperavam encontrar entre os papéis do 11 EN.
“Desde que o Onésimo [Teotónio Almeida] escreveu Pessoa, Portugal e o Futuro, o nosso entendimento da Mensagem mudou completamente. A teoria dele tem a ver com a influência de [Georges] Sorel na conceção de um mito projetada para o futuro, não de um mito sobre o passado; de um mito criado para movimentar o futuro, que é uma coisa única”, continuou Pittella, defendendo que “só este entendimento de Mensagem como um mito intencional e não apenas como um poema esotérico já justificaria uma nova edição”.
Mas não só. Na perspetiva do investigador do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, a mudança de nome para Mensagem, porque Cunha Dias terá feito notar a Pessoa que o nome da pátria estava a ser “prostituído por sapatos, como por hotéis”, significa que, entre o espólio de Pessoa, “tem de haver papéis com o título ‘Portugal’, porque Mensagem foi uma alteração de última hora”. Papéis que nunca ninguém tinha tentado encontrar antes de 2018. Isso não significa, no entanto, que não havia algum conhecimento acerca do que tinha sido a obra antes da sua publicação, em 1934.
“Por causa de outros projetos, já conhecíamos muitas listas com o título ‘Portugal’, às vezes ‘Mar Português’, outras ‘Encoberto’”, adiantou o Pittella, lembrando que a segunda parte a obra, “Mar Português”, foi divulgada quase na sua totalidade (ficou apenas a faltar o poema “Os Colombos”) na edição de outubro de 1922 da revista Contemporânea. O conjunto, composto provavelmente entre 1918 e 1922, sofreu poucas alterações depois disso. Por esta altura, Pessoa já teria uma ideia de como iria estruturar o livro que viria a ser Mensagem.
No lento processo de descrição e transcrição dos documentos do envelope 11 EN, Carlos Pittella ficou responsável pelo primeiro. “Estou a descrever os documentos. Estou a medir cada papel, a descrever o tipo de tinta, de papel, a marca de água, porque muitos destes papéis não têm data”, explicou ao Observador. “A maioria dos do Fausto [que editei] também não têm e alguns papéis são os mesmos. Então, já sei mais ou menos a data. E o Jerónimo sabe mais ou menos a data [de alguns papéis] por causa do Livro do Desassossego [que editou]. Primeiro estamos a tentar agrupar estes papéis — os tipos — e depois vamos tentar, na nossa cabeça, organizar tudo isto. ‘Este é o papel de guardanapo pardo, este é o papel liso…’ Porque aí sabemos mais ou menos quando é que eles foram escritos.”
Alguns papéis são mais fáceis de datar do que outros. “Este papel aqui é muito raro no Pessoa, porque é um papel de quadrícula, quase apagado. Era de um caderno”, disse o investigador, referindo-se a uma folha que diz “The end of canto five”. “Quando aparece este papel, quase que já sabemos a data. Aparece um papel quase igual a este no Fausto, por isso é que sei. Na verdade, datei o Fausto por causa disto, por causa destes papéis, que são daquela altura, de 1910, talvez. Uma edição afeta a outra.”
“A descrição é muito pormenorizada. Temos a cota [do documento], as medições, [a indicação de] quando é um fragmento e não um papel inteiro, e a coluna de datação, que será a última, depois de termos toda a informação”, comentou Nicólas Barbosa, enquanto Carlos Pittella declarava em voz alta os dados que ia introduzindo no computador: “[Documento] vincado quase ao meio, na horizontal. Manuscrito a tinta preta. Não sei se [a mancha] é ferrugem ou café, não dá para perceber”. “Datação fazemos de todas as maneiras”, admitiu de régua na mão. O processo é lento e não necessariamente o mais agradável, “mas tem de ser feito”.
Ler pela primeira vez um manuscrito de Pessoa pode ser uma “bênção e uma maldição”. “É uma alegria — nunca ninguém leu isto — e é desesperador, de arrancar os cabelos”, admitiu o investigador do Centro de Estudos de Teatro. A caligrafia do poeta é o principal problema. “Já aconteceu ficar uma semana, um mês, a ler um papel. Aconteceu a mais do que uma pessoa e vai acontecer aqui. Já vi que vai acontecer. Embora a letra de antes não fosse tão má quanto [ficou] depois. A letra de 1920 às vezes é pior do que essa ai”, disse, apontado para uma das folhas de papel amarelado. “Tinha alguma paciência e bebia menos”, brincou, retomando as medições.
Nicólas Barbosa, a quem coube a tarefa de transcrever os textos juntamente com Jerónimo Pizarro, explicou ao Observador que é importante tentar ler tudo, incluindo o que foi riscado. “Muitas vezes o que foi riscado aparece depois na estrofe seguinte ou numa ordem diferente num verso seguinte. O que foi riscado também é importante por isso. Muitas vezes foi por questões de rima ou de métrica que ele mudou a ordem e riscou, não necessariamente porque já não a palavra ou a frase já não eram necessárias, mas porque não era o lugar apropriado [para elas] nesse verso.”
“O [que consome mais tempo] é sem dúvida a transcrição”, defendeu Carlos Pittella. Com dia e meio de trabalho, o grupo tinha então 15 das mais de 100 folhas transcritas. “Se a transcrição for mal feita, atrapalha, não se consegue fazer outras coisas”, admitiu. “Nestes papéis, não há só Mensagem, ‘Portugal’ e o ‘Encoberto’, tem muitas outras coisas. Tem cartas… Tudo ajuda a datar.” E por vezes encontram-se coisas surpreendentes: “Encontrámos uma coisa linda no outro dia, que era uma coisa riscada, que dizia ‘uma das influências em inglês’. Um papelzinho. Pode ser uma influência nova, uma coisa que não tem nada a ver com Mensagem. Quando se joga uma pedrinha, espalha por todo o lado. E é isso que dá trabalho, eu acho, tentar investigar isso, mas é isso que acaba por ser o mais interessante. Está tudo conectado”.
“Portugal”: uma primeira versão de Mensagem?
Carlos Pittella, Jerónimo Pizarro e Nicólas Barbosa não voltaram a estar juntos na BNP. A fase seguinte do trabalho decorreu sobretudo à distância, embora Pizarro e Barbosa ainda se tenham encontrado pessoalmente no ano seguinte para dar continuidade à transcrição dos documentos que, em 2019, contou com a ajuda do português Rui Sousa, investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. À medida que o tempo foi passando, o projeto foi mudando — a ideia de apresentar os primeiros poemas de “Portugal”, acabou por cair por terra, dando lugar a uma edição muito mais focada no livro que Pessoa publicou em 1934.
A razão principal é que “Portugal” e Mensagem são projetos diferentes, cuja ligação necessita de ser melhor estudada. Foi por isso que essa parte da investigação acabou por ser publicada antes do lançamento do livro, num outro formado, num artigo publicado na edição de junho passado da Pessoa Plural — A Journal of Fernando Pessoa Studies.
Intitulado “Portugal, o primeiro aviso da Mensagem”, o artigo, assinado por Pittella, Jerónimo, Barbosa e Sousa, reproduz os 106 documentos inéditos que o grupo descobriu no envelope 11 EN do Espólio 3 da BNP. Entre estes é possível encontrar a génese de alguns dos poemas da Mensagem, como “D. Tareja” ou “D. Filipa de Lencastre”, datáveis do final do verão de 1910, mas sobretudo outros materiais, alguns deles de grande beleza lírica e outros um tanto chocantes, que integravam um primeiro projeto de “Portugal”, mas que não foram incluídos na Mensagem.
Jerónimo Pizarro acredita que foi melhor assim. “Pelo menos a minha perspetiva era a de que a parte do início de ‘Portugal’ e a parte que imitava Camões ficavam melhor na Pessoa Plural”, começou por explicar durante uma entrevista por telefone com o Observador, a propósito do lançamento da nova edição crítica, na semana passada. “Sei que o Carlos teria gostado de juntar ‘Portugal’ e Mensagem, mas preferi separar as duas coisas e dar muito espaço e muitas páginas a ‘Portugal’ na revista e [colocar apenas a] Mensagem no livro.”
Além de um texto introdutório, o artigo reproduz, descreve e transcreve os 106 manuscritos inéditos dos envelopes 11 EN. “Sinto que é um trabalho independente”, disse ainda o investigador. “Ainda temos de trabalhar ‘Portugal’ mais criticamente, pelo menos enquanto projeto de 1910, 1911, 1912, 1913, e Mensagem, como projeto que levou 24 anos. São duas coisas que temos de aproximar mais, como o Carlos tinha imaginado. [Temos de aproximar mais] os projetos todos e as diferentes fases pelas quais passou o livro”, considerou.
“‘Portugal’ não é Mensagem. É um intento imitativo dos Lusíadas, em que muitas das ideias ou algumas das ideias foram retocadas mais tarde no que conhecemos como Mensagem“, disse Pizarro. “Não queria de forma alguma que ‘Portugal’ fosse pensado como uma das formas da Mensagem. Sinto que são projetos independentes, com muitas linhas de comunicação e com algumas passagens em que dá para perceber a semente e as ideias iniciais de alguns dos poemas, nomeadamente ‘Gládio’ [o mais antigo dos poemas, que viria a dar origem a ‘D. Fernando, Infante de Portugal’], já estão aí. E há aspetos proféticos e uma ideia de chamamento e de Mensagem — mesmo não havendo a palavra — que já estão em ‘Portugal’. Mas ‘Portugal’ é um projeto muito político no início, porque é escrito no final da monarquia.”
Uma das descobertas que a análise dos manuscritos do envelope 11 EN permitiu foi a do universo de crítica política de “Portugal”. Tal como Guerra Junqueira, Pessoa, que foi muito influenciado por este, acreditava que a monarquia anterior à Primeira República era uma “quase uma ausência de pátria, e as figuras dessa forma de governo — tais como depois as do republicano, que também, e muito depressa, o desiludiram — anti-heróis de um país que ainda não se cumpria enquanto tal”, explicaram Barbosa, Pizarro, Pittella e Sousa no artigo da Pessoa Plural.
Esta vertente de crítica é também evidente no abandono do projeto após 5 de outubro de 1910, dia da proclamação da República. “Anos mais tarde, já no início de uma certa poesia ortónima decadentista”, Pessoa regressou a “Portugal”, mas a um “Portugal” que continuava a não ser Mensagem. “Foi talvez a primeira intuição do que mais tarde foi Mensagem. Há muitos ‘Portugais’ antes de haver Mensagem”, disse Pizarro, acrescentando que entre a primeira fase e a publicação do livro em 1934, há, “pelo menos, três ou quatro fases importantes.”
A datação dos documentos da BNP (final do verão de 1910) coloca a Mensagem, cujas últimas alterações foram feitas por Pessoa entre finais de 1934 e inícios de 1935, já depois da sua publicação, entre os projetos a que o poeta dedicou mais tempo, juntamente com o poema dramático Fausto (1907-1933) e o Livro do Desassossego (1913-1934). Mas se “Portugal” não é Mensagem e se os poemas do envelope 11 EN não fizeram parte da versão final desta obra, será que faz sentido colocar o único livro publicado por Pessoa entre estes projetos? Jerónimo Pizarro acredita que sim.
“É o problema que existe sempre com Pessoa, não apenas com a Mensagem. Fausto não é Fausto, são muitos Faustos. Quando publiquei o Livro do Desassossego, percebi que, no início, ia ser um breviário do decadentismo, com dez ou 14 textos. Pessoa coloca a palavra ‘fim’ umas três ou quatro vezes no Desassossego, porque houve três ou quatro momentos em que imaginou que ia fechar o livro ou que podia ficar por ali. O Livro do Desassossego podia ter sido só um breviário publicado na Águia; depois podia ter sido uma espécie de diário do Vicente Guedes; depois podia ter sido um livro chamado Rua dos Douradores que talvez tivesse sido de Bernardo Soares; e depois acabou por ser o livro que nós imaginamos. São muitos livros, ainda não temos o livro.”
Com Mensagem aconteceu o mesmo. “Foi uma primeira ideia de ‘Portugal’, uma segunda, uma terceira, uma quarta e depois ainda foi Mensagem”, afirmou Pizarro. “O que temos em muitos casos é as diferentes fases de diferentes imaginações de conjuntos, não necessariamente de livros. Não há uma grande continuidade, há partes em que há muitas descontinuidades. Se tivesse sido publicada antes de 1934, Mensagem teria sido um livro completamente diferente. O que consideramos ser Mensagem, pelo menos a partir do livro de 1934, foi uma ideia que começou a afinar-se e a definir-se em 1928. O que temos antes, são partes que finalmente entraram no livro em 1934, mas que eram outros livros, outros projetos e que podiam ter ficado como projetos independentes.”
Uma edição diferente das outras
Mesmo não incluindo os poemas do primeiro “Portugal”, esta nova edição tem várias diferenças relativamente às que a antecederam. “Gosto muito das duas edições críticas, mas nos dois casos senti que tinham material que era muito especializado ou que era um bocadinho desviaste, que não tinha necessariamente que fazer parte do livro”, disse Jerónimo Pizarro. “A edição de 1993 é uma tentativa quase com agenda e um bocadinho forçada e direcionada por algumas pessoas para ter uma leitura esotérica de Mensagem, e isso não esta completamente justificado, e tenta juntar uma serie de poemas esotéricos. Foi interessantíssimo conhecer os poemas esotéricos, mas ainda hoje não temos uma boa leitura do conjunto da poesia esotérica do Pessoa, e em parte porque foi publicado de forma dispersa, em muitos livros, tentando juntá-la com outra poesia. Acho que, com a edição de 1993, ficamos muito obrigados a ler a Mensagem como poesia esotérica.”
Por outro lado, a edição da INCM, é, na opinião de Pizarro, “muito, muito especializada”, ao argumentar que a Mensagem “faz parte de uma dinâmica de publicação em vida dos poemas de Fernando Pessoa”. “Não tenho certezas”, considerou o professor da Universidad de los Andes. “Sinto que ficamos um bocadinho com uma dispersão. Ficamos com uma visão da poesia de Pessoa, mas não necessariamente com uma visão mais alargada de Mensagem. Não concordo inteiramente com o Luiz [Fagundez Duarte], com a ideia de termos necessariamente de pensar o cruzamento da poesia publicada em vida e de Mensagem um intento imitativo dos Lusíadas, em que muitas das ideias ou algumas das ideias foram retocadas mais tarde no que conhecemos como Mensagem.”
Por acreditar que a publicação dos 44 poemas de Mensagem em conjunto com outros desvia a atenção da obra em si, Pizarro procurou, desde o início, não ter, na nova edição, “outros poemas e outros textos” que não estivessem “diretamente relacionados, mas focar a força crítica, a pesquisa, apenas em Mensagem e completar o trabalho do dossiê genético”. “Para mim, o mais importante era ter a Mensagem como centro do trabalho e tentar não ficar a pensar em muitos outros conjuntos. Daí ter separado ‘Portugal’ e ter deixado para a revista e não ter feito um trabalho muito mais alargado e intenso, como o que foi feito no Fausto, com os planos de publicação e os projetos”, explicou, acrescentando que tentou sintetizar as informações relativas à génese do livro no texto de apresentação.
“Tentei sintetizar, e muito, a história dos projetos e apenas no prefácio. Tentei condensar muito para que a leitura fosse Mensagem, para poder repensar o próprio livro e para dar os elementos que eram menos conhecidos há dois, três anos, como o que conhecemos e ficou da ata do júri [do prémio de poesia do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN)] para não esquecer o contexto político que, para mim, é importantíssimo para ler Mensagem.”
A seguir a Mensagem, a edição crítica inclui alguns poemas relacionados com a obra, como duas versões de “Gládio”, datadas de 1915 e 1917, e textos em prosa que contribuem para uma melhor compreensão do livro, nomeadamente algumas notas de leitura sobre Bandarra e rascunhos sobre Padre António Vieira ou D. Sebastião. Em “algumas anotações dá para perceber que o sebastianismo não esteve sempre aí. Começou a entrar mais fortemente a partir de 1928 a partir de certas pesquisas feitas por Pessoa”, frisou Pizarro, apontando que é importante pensar em Mensagem como um projeto entre projetos, “que teve diferentes fases, que foi sempre completado, que nem sempre foi Mensagem, que inicialmente, e durante muitos anos, foi ‘Portugal’ e que esse ‘Portugal’ foi diferentes ‘Portugais’ com o tempo”.
Uma outra parte da edição é dedicada a um “reconhecimento do trabalho que tinha sido feito de leitura — gigantesca, enorme — por António Cirurgião”, cuja análise de Mensagem, O “Olhar Esfíngico” da Mensagem de Pessoa, foi adaptada para caber neste livro, e à “recuperação crítica de trabalhos importantes”. O livro inclui ensaios de Onésimo Teotónio Almada (um resumo da proposta desenvolvida em Mensagem: Uma tentativa de reinterpretação e mais tarde nos ensaios de Pessoa, Portugal e o Futuro), Helder Macedo (cujo trabalho sobre Mensagem e Oliveira Martins e Guerra Junqueiro se encontrava esquecido), e José Barreto (que abreviou o artigo publicado no n.º 14 da Pessoa Plural sobre a Mensagem e o prémio do SPN de 1934).
Leituras que pretendem ajudar “a focar” numa obra em torno da qual começava a existir uma certa “sensação de esgotamento” e que parecia já não ser “o livro mais apelativo de Pessoa”. “Já está há muito tempo no Plano Nacional de Leitura, [já há muito tempo] que é obrigatório, e começava a ser uma referência da escola. Acho que já estava um bocadinho fossilizado, parado no tempo, como se já tivéssemos dito tudo o que era necessário e já conhecêssemos aquilo que devia ser pensado. Acho que ainda há muitos elementos para podermos continuar e retomar a tradição de escrever sobre a Mensagem. Acho que foi isso que queria”, disse o investigador.
Com as descobertas dos últimos anos e com as ligeiras alterações no cânone textual sugeridas pelo investigador, “em princípio, nesta edição, já não falta quase nada”. Mas isso não significa que já se saiba tudo o que há para saber sobre a história Mensagem, antes pelo contrário: “Não conhecemos os manuscritos de alguns dos poemas, portanto ainda faltam datas, que intuitivamente imaginei”.
Um desses poemas é “Ulisses”, um dos favoritos de Jerónimo Pizarro. “Uma das coisas que ainda custa é não ter manuscritos de ‘Ulisses’”, admitiu. “É um dos poemas que mais cito, que costumo ler, que coloco em antologias. É um dos que mais gostaria de ter mais informação. Não tenho a informação toda para poder pensar ‘Ulisses’, e isso é uma grande lacuna para mim. Continuo a ter que imaginar a data [do poema]. Não tenho informação certa para isso e apenas posso conjeturar.” Na nova edição da Mensagem, Pizarro sugeriu 1932 como o ano em que muitos poemas, incluindo “Ulisses”, já teriam sido escritos, mas no esquema final deixou o poema “sem data”.
Existem várias explicações possíveis. No caso da Mensagem, uma das hipóteses é a de que algum do material terá sido enviado para a tipografia. “Acredito que alguma coisa possa ter ido para a tipografia, que outras possam talvez ainda aparecer. Não com a família, não encontrei nada com a família, mas talvez em alguma coleção particular, com algum critico, de alguma forma através do Gaspar Simões, não sei. Para já, o material que temos é o que existe apresentado, mas, e lutei muito com isso, teria adorado ter encontrado o primeiro rascunho do ‘Ulisses’. Nem que fossem duas linhas. Acho que vou continuar a percorrer o espólio de Pessoa e [ver em] versos de papéis e em partes mais apagadas para tentar perceber se poderá ou não existir algum tipo de indício do início dos poemas que ainda não temos.”
Um livro “que ainda está aberto e que ainda não fechámos”
E que outras coisas ainda faltam saber sobre o único livro que Pessoa publicou? A sua ligação com o esoterismo, por exemplo, que a primeira edição crítica procurou tanto aceitar. “Ainda quero revistar a questão do esoterismo na Mensagem, nomeadamente aspetos da presença do rosacrucismo, da iniciação, do ocultismo”, admitiu Pizarro. “E há certos aspetos que podermos não encontrar relentes para uma releitura esotérica da Mensagem, [mas que poderão surgir] revistando ou dando a conhecer escritos esotéricos que ainda não foram publicados, que foram publicados há muito tempo ou que foram publicados incompletos. Há essa parte que ainda está aberta e está toda a parte da procura de outros testemunhos.”
Quando se faz uma nova edição de alguma obra, “faz-se com o sonho de se ter encontrado todos os materiais pertinentes”. “Claro que pode passar tempo e simplesmente confirmarmos que não há uma versão manuscrita de ‘Ulisses’ ou de outros poemas dos quais só temos a versão impressa; ou pode passar o tempo e termos a grata surpresa de encontrar materiais que não foram localizados nesta altura.” Em relação à atribuição do prémio do SNP à Mensagem, também poderão ainda vir a aparecer novos testemunhos. “Se encontrarmos mais material de 1934, 1935, referente a prémios literários, podermos ainda saber melhor os motivos do prémio que foi dado à Mensagem e confirmar certas conjeturas do José Barreto”, expostas no ensaio incluído nesta nova edição.
Mais de 80 anos após a sua publica, Mensagem permanece, assim, um livro “que ainda está aberto e que ainda não fechámos”. Esta edição apresenta-se como uma nova e mais recente tentativa de chegar “mais perto de uma Mensagem total”, da Mensagem que imaginou Fernando Pessoa.