A Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), a maior mobilização de participação cidadã europeia, iniciada em junho do ano passado e que envolve vários eventos e iniciativas, entra esta semana numa segunda fase, depois de ontem se terem votado, em Dublin, na Irlanda, as recomendações finais do painel 1 sobre temas relacionados com economia, justiça social, educação, cultura e transformação digital. Era o único que faltava de quatro painéis.
Já nos dias 11, 12, 17 e 18 de março, acontecem as últimas plenárias entre os entre os 20 embaixadores dos painéis 1 e 4 com os políticos da Comissão, Conselho da União Europeia e Parlamento Europeu, para que as recomendações selecionadas sejam, finalmente, discutidas e conciliadas.
No final de março e início de abril, arrancam as plenárias finais que unem todas as recomendações das assembleias dos 800 cidadãos às cerca de 16 mil ideias que foram recolhidas da plataforma pública digital multilingue. Nesta fase, começa o processo de pressão para integrar as propostas cidadãs na tão almejada renovação do projeto europeu mobilizada pela CoFoE, que termina no final da primavera.
Há grandes expectativas de que esta iniciativa inédita permita dar um passo adiante na reestruturação da União Europeia (UE), ao mesmo tempo que deixa de pé atrás alguns cidadãos. Mas, a par disso, há três certezas: os europeus querem que estas assembleias continuem com maior frequência, que possam ser replicadas a nível nacional e que é uma “traição” se os políticos não fizerem mudanças a partir das propostas.
Da “simulação do parlamento europeu” a “sanção do discurso de ódio”
Ao longo do último semestre, os cidadãos dos 27 estados membros organizaram cinco mil e seiscentos eventos: desde empregabilidade, a desinformação e fake news, passando pela simulação do funcionamento do parlamento europeu com participantes de várias escolas nacionais dos 27 estados membros.
Em Portugal foram organizados cerca de 120 eventos promovidos por autoridades locais, escolas básicas, universidades, parceiros sociais, organizações de juventude e da sociedade civil. Até ao final da primavera, estão previstos pelo menos mais oito eventos registados na plataforma da CoFoE, em Viseu, Évora, Lisboa e Braga.
Foram eleitas 51 recomendações neste painel, que abrangia “Uma economia mais forte, justiça social e emprego / Educação, cultura, juventude e desporto / transformação digital”. Alguns exemplos:
PAINEL 1: economia, justiça social, emprego, educação, cultura, desporto, digital
Já a plataforma digital multilingue, lançada a 19 de abril de 2021, contou até ao dia 20 de fevereiro com cerca de 50 546 participantes registados, reunindo cerca de 16 600 ideias e 21 400 comentários.
Apesar de existir espaço para temas livres — como por exemplo “tornar a Europa num estado federado”, ou “criar bolsas de estudo para formações nas instituições europeias”—, os tópicos de discussão centraram-se sobretudo em nove temas principais.
Por um lado, “alterações climáticas e ambiente”, “saúde”, “educação, cultura, juventude e desporto” e “transformação digital”. Por outro, “uma economia mais forte, justiça social e emprego”, “a UE no mundo”, “migração”, “valores e direitos, Estado de Direito e Segurança”, “democracia europeia”.
Desde que arrancou em junho de 2021, a CoFoE ficou marcada por quatro componentes indissociáveis, evidenciando o processo longo e complexo para enfatizar a democracia participativa e interpelar a democracia representativa.
Como funciona a CoFoE
Milhares de cidadãos europeus (cuja nacionalidade se desconhece, porque não é relevante) que se registaram nessa plataforma deixaram as suas ideias para discussão pública, aproximando-se num modelo partilhado de cidadania europeia. Por exemplo, Eduardo Rafael Moreira dos Santos apela a que se “refloreste a Europa devido ao problema da aridez”. Jeroom Remmers sugere que “se taxe mais a carne e se reduzam impostos para alimentação saudável”. Sérgio Moreira propõe “que se acabe com os estágios não remunerados na UE”. Federica Woelk, por sua vez, defende que os Balcãs Ocidentais devem entrar na UE e Margarida Payola advoga que o catalão “deveria ser uma língua oficial da UE”. Outras propostas promovem “a criação de um cartão europeu de transportes públicos”, conforme sugere José Juan Núñez Timermans. Ou o reforço da participação dos cidadãos: “fundamental para garantir a confiança nos governos e nas instituições da UE, defende Vanessa Cotterell.
Nas questões transversais de inclusão, Emie Veyrat-Cotte propõe um programa de integração para refugiados com “três anos de aulas obrigatórias de línguas (do país em que vão ficar)”, bem como formação profissional para a empregabilidade. E Jonay Gadea defende que “o discurso do ódio deve ser sancionado; a União Europeia tem um desafio à sua frente e que é o de fazer respeitar os direitos humanos e os direitos LGTBI”.
Todas as propostas recebidas na plataforma até dia 20 de fevereiro vão ser, nesta fase, avaliadas para serem incluídas no próximo relatório, cuja apresentação está prevista para o dia 17 de março, de forma a serem incluídas quer nos Plenários finais da Conferência, quer nas reuniões do grupo de trabalho.
No entanto, é ainda possível contribuir com ideias na plataforma (para dar espaço a que o debate permaneça online), que serão incluídas num outro relatório a ser apresentado em maio.
“Um protótipo da nova União Europeia”
Entre 17 de setembro de 2021 e 27 de fevereiro de 2022, os 800 europeus chamados aleatoriamente votaram, ao longo de 12 sessões, em cerca de 180 propostas, divididas pelos painéis 1, 2, 3 e 4. Para serem aprovadas, as proposições tinham de ter acima de 70% de aprovação eleitoral. Abaixo disso, ficaram pelo caminho.
Nessas recomendações, além da proposta em si, os cidadãos foram desafiados a justificar os motivos, para melhor sustentar a argumentação. Há, no entanto, algumas que são transversais a todos os painéis e mesmo às ideias da plataforma pública digital multilingue.
Ficaram 39 propostas que incidem, por exemplo, sobre media, processo de participação democrática e criação de plataformas mais ágeis ao serviço dos cidadãos. Reivindica-se, por exemplo:
PAINEL 2: democracia europeia / valores e direitos, Estado de direito, segurança
Por exemplo, o apelo ao compromisso com práticas sustentáveis, a humanização dos processos, uma maior educação sobre política e o funcionamento das instituições europeias. Ou a reivindicação de mais assembleias de cidadãos, para fomentar a participação, propondo-se mesmo uma “disposição legal ou regulamento legalmente vinculativo e obrigatório”, conforme se lê na recomendação 39 no painel 2.
Acácio Viegas é designer e artista visual, natural de Viana do Castelo, e fez parte do painel 1. Esta experiência, admite, contribuiu para criar um sentido de pertença à Europa. “Percebi que é necessário sentir a União Europeia, sentir a sua diversidade e os seus pontos comuns.”
“38. Recomendamos que a UE crie e execute programas para as escolas que falem acerca daquilo que está a ser feito sobre os mecanismos de participação existentes. Estes programas devem ser incluídos nos currículos escolares que versam sobre cidadania europeia e ética. Também deveriam existir programas para adultos. Deve haver programas de aprendizagem ao longo da vida. Esta recomendação é necessária pela sua importância para o futuro das novas gerações. Os cidadãos querem saber como expressar a sua voz. É importante que conheçam os mecanismos exatos e a forma como estes podem ser utilizados, para que a sua voz seja ouvida pela UE. É importante para a igualdade na inclusão de todos os cidadãos europeus. Enquanto cidadãos europeus, precisamos de saber como utilizar os nossos direitos. Por sermos cidadãos europeus, temos direito a esse conhecimento.”
Exemplo de uma recomendação: painel 2
Para ele, foi como “conhecer uma família, “a velha Europa” que apenas conhecia “por fotografia”. “Em momentos senti o peso das guerras, da corrupção, dos interesses puramente económicos, das políticas austeras e a necessidade que todos tínhamos em construir uma nova Europa, a da paz, a da sustentabilidade e da harmonia. Gostei disso.”
Acácio está convicto que “existe um longo caminho a percorrer” que estamos, ainda, “na fase de protótipo de uma União Europeia”. O designer crê que ainda estamos na linha das intenções. Mas não tem dúvidas de que esta experiência foi e é fundamental.
“É muito importante dar voz e poder de ação aos cidadãos. Eles são a razão de existir das sociedades organizadas, e para garantir o benefício comum é necessário que todos sejam incluídos. A exclusão sempre criou desequilíbrio.”
João Pires tem 20 anos, é natural da Guarda, e integrou o painel 4. Está a estudar Economia na Universidade Católica do Porto e acredita que o facto de os cidadãos poderem expressar-se, mesmo que não haja consenso, proporciona “uma maior abertura para outras ideias”. Ele considera que, “ao longo dos anos, houve uma necessidade de os povos se reunirem e negociarem e sem essa relação não haverá grande progressão”.
É por isso, também, que Filipe Conceição Silva, 62 anos, a viver em Colares, Sintra, integrante do painel 3, defende que gostaria de viver nos Estados Unidos da Europa: “um continente laico, com uma constituição comum e estados federados”.
“Os países são muito diferentes na implementação das regras europeias e uso dos fundos europeus”
Rodrigo Cóias Silva, webdesigner lisboeta de 24 anos, escolhido para o painel 3, gostaria que as assembleias tivessem continuidade. “Para deixar os cidadãos falar e argumentar sobre os problemas que sentem, diariamente. E deixar que estes encontrem possíveis soluções, na esperança de poderem tornar o seu país e a sua Europa um lugar melhor.”
Para ele, as medidas mais urgentes a serem implementadas são, “sem dúvida, o combate às alterações climáticas, o dever de uma promoção aos cidadãos sobre a deslocação verde e como devemos agir para preservar o nosso planeta”.
Tem 51 recomendações e os principais subtemas votados incidem sobre:
PAINEL 3: Saúde, alterações climáticas e ambiente
Também Georgina Fernandes se revê nessa urgência. A madeirense de 37 anos foi a relatora do grupo dela, integrando, igualmente, o painel 3. Estudou design de equipamento e “a ecologia era um ponto muito importante nos projetos”.
“São muitas as mudanças que eu queria ver implementadas, nomeadamente evitar a importação de produtos oriundos de produções massivas, dando importância a produtos mais sustentáveis, amigos do ambiente, biodegradáveis”, responde por e-mail.
Além disso, para a designer a viver no Funchal, é muito importante “fomentar a economia circular, incentivar a comprar produtos locais, ajudar pequenas empresas locais”, porque, assim, “teríamos mais variedade de produtos e serviços controlados”.
Chama-se “Next Generation: You! | A Autonomia Estratégica da UE” e arranca a 10 de março, organizado pelas universidades de Lisboa, Minho, Aveiro, Coimbra, Évora e Beira Interior, que se associaram para reunir um conjunto de contributos dos jovens universitários portugueses que traduzam a sua visão e expectativas sobre a evolução da União Europeia. Os melhores contributos serão apresentados à Conferência sobre o Futuro da Europa e em futuras iniciativas promovidas pelas instituições europeias. Entre março e maio de 2022 serão realizadas seis conferências, uma por universidade participante. A primeira será dedicada à Autonomia Estratégica da União Europeia, envolvendo a discussão de temas relacionados com a geopolítica da energia, os desafios ao multilateralismo, o smart power da UE, as estratégias de conectividade ou a política de vizinhança.
Next Generation: You! | A Autonomia Estratégica da UE
Ela sublinha que as mudanças são estruturais na transição para uma sociedade mais sustentável, mas que para isso é urgente harmonizar as práticas dentro da UE. “Com esta experiência apercebi-me que os países são muito diferentes na implementação das regras europeias e uso dos fundos europeus”, confessa com preocupação.
Georgina defende que a história da UE ainda não está unificada. Revela que esta experiência a fez sentir mais de perto o que é ser cidadã europeia, mas que falta ainda cumprir o sentido de uma verdadeira pertença. Numa próxima experiência semelhante, sugere, gostaria que os grupos fossem ainda “mais diversificados”.
“Será um desrespeito se os políticos não fizerem nada com as nossas recomendações”
Carlos Luiz Queirós tem 62 anos, mora em Santa Maria da Feira, e fez parte do painel 2. O gestor de empresas está convencido que “o futuro da Europa será uma Europa mais forte, mais solidária, mais equilibrada económica e socialmente entre os países que a compõem, ou não fosse esse o propósito desta”.
Para ele, “o problema da imigração será traduzido em oportunidades, socialmente tenderá a ser mais justa, irá estar mais atenta à geopolítica mundial e sua posição na mesma e irá intensificar sua ação no ambiente e sustentabilidade do planeta”.
Além disso, “até pensava que estávamos bem em termos de defesa nacional europeia, mas não é verdade e o que se passa neste momento no continente é a prova inequívoca”, nota. Por isso, defende que “devemos adotar estratégias por forma a garantir o nosso espaço, a democracia e preparados para ajudar outros”. Carlos sustenta que a UE tem de dar “passos seguros” e desacelerar o crescimento, nomeadamente repensar a sua estratégia. Por isso, estas recomendações terão “importância interessante e alta se todo o trabalho efetuado por todos nós for levado a sério”.
Na mesma linha, Filipe Silva, do painel 3, louva o facto de os “mentores e ideólogos desta iniciativa terem conseguido ultrapassar uma montanha de burocracia dentro dos corredores do poder da UE e remar contra uma inércia proveniente de dezenas — talvez centenas — de eurodeputados que não queriam que esta iniciativa se realizass”.
Daqui saíram quarenta propostas e debruçam-se, sobretudo, sobre a reivindicação de uma Europa mais independente dos países externos, em matéria de energia, por exemplo. Pede-se também uma maior vigilância sobre os produtos importados, para que cumpram os valores europeus e princípios éticos (contra o trabalho infantil, nomeadamente), ao mesmo tempo que apela ao “reforço da implementação” e “controlo rigoroso” dos direitos humanos a países membros que não estão a cumprir, como a Hungria e a Polónia. Nesta assembleia, também fica clara a vontade de criar um “sistema de migração laboral” (divulgação de vagas, reconhecimento unificado de diplomas, ofertas de qualificação profissional e de integração cultural e linguísticas), uniformização das “políticas de acolhimento”, “a criação, sem demora, de centros de asilo dedicados a menores não acompanhados”, a par da revisão de toda a legislação sobre asilo e migração na Europa para torná-la mais humanizada.
PAINEL 4: Migração e política externa
Para ele, a democracia ativa e participativa que se experienciou nesta CoFoE “é perfeitamente replicável nas sociedades e particularmente na nossa”. Aliás, ele gostaria de “replicar o método por cá”.
“Estar no plenário faz-nos sentir realmente parte de um sistema maior”, diz Acácio Viegas. “Temos muito a aprender uns com os outros, e é na partilha de diferentes perspetivas que surge a inovação e o entendimento para uma união mais sustentável”.
Logo, João Pires acredita que se os políticos ignorarem as recomendações será um grande desrespeito pelos cidadãos. “Se isto não der em alguma coisa os políticos estariam a ser um bocado estúpidos, porque juntaram aqui pessoas de 27 países e ouviram várias medidas. Se não tiverem isso em conta, não faria muito sentido porque eles, supostamente, são a nossa voz.”
Mas, para o jovem da Guarda, essa quebra de confiança é impensável e está convicto que a Europa vai sofrer reformas positivas muito em breve.
Este artigo faz parte de uma série sobre a Conferência Sobre o Futuro da Europa e é uma parceria entre o Observador e o Parlamento Europeu.
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