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A varíola dos macacos foi considerada uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional (PHEIC, na sigla em inglês) este sábado, depois de na quinta-feira ter havido reunião do Comité de Emergência e ter sido anunciado algo que parecia seguir em sentido contrário. O problema, como explicou diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) este sábado, foi não ter sido possível chegar a um consenso dentro do comité de aconselhamento — porém, a decisão final caberia sempre ao diretor-geral.
[Os membros do comité] não conseguiram chegar a consenso em relação ao aconselhamento a dar ao diretor-geral da OMS sobre se o surto de varíola dos macacos em vários países deveria ou não ser considerado uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional”, de acordo com as conclusões da reunião conhecidas este sábado.
Apesar de não se ter alcançado o consenso, Tedros Adhanom Ghebreyesus, enquanto responsável máximo da instituição, considerou estarem reunidas condições suficientes para ser declarada uma PHEIC, entre elas o facto de se saber ainda muito pouco sobre os modos de transmissão de uma doença que se espalhou rapidamente por vários países do mundo. O diretor-geral da OMS, no entanto, tranquiliza a população: “Com as ferramentas que temos atualmente, podemos travar a transmissão e conter este surto”.
O que sabemos neste momento sobre a varíola dos macacos e o surto em curso? Que motivos levaram à classificação de emergência de saúde pública e que dados estão ainda em falta? Que riscos corremos e como nos podemos proteger? São algumas das perguntas a que o Observador tentará dar resposta.
Porque foi o surto de varíola dos macacos considerado uma emergência de saúde pública?
O surto de varíola dos macacos, que se tornou expressivo a partir de maio de 2022, foi considerado uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional. Isto, porque, de acordo com Regulamentos Sanitários Internacionais 2005 (IHR, na sigla em ingês), é “um acontecimento extraordinário, que constitui um risco para a saúde pública de outros Estados através da propagação internacional, e que requer potencialmente uma resposta internacional coordenada”. Para Tedros Adhanom Ghebreyesus e alguns membros do comité consultivo, este surto cumpre estes três critérios.
Os três critérios de uma PHEIC
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- uma situação séria, súbita, invulgar ou inesperada;
- que tem implicações para a saúde pública para além da fronteira nacional do Estado afetado;
- e que pode exigir uma ação internacional imediata.
Q&A IHR/OMS
Os regulamentos sanitários são um acordo legal vinculativo, com 196 países signatários (incluindo todos os Estados-membros da OMS), que visa “prevenir, proteger, controlar e dar uma resposta de saúde pública à propagação internacional de doenças de forma proporcional e restrita aos riscos de saúde pública, e que evite interferências desnecessárias com o tráfego e o comércio internacionais”. Ou seja, só fará sentido bloquear as viagens internacionais — como aconteceu com a Covid-19, por exemplo — quando o impacto na saúde pública é maior do que os prejuízos sociais e económicos.
Perante a necessidade de olhar para um surto e perceber como pode evoluir a médio e longo prazo, o diretor-geral da OMS pode convocar uma reunião do Comité de Emergência dos IHR — tal como o fez para o surto de ébola, em 2014, e para a Covid-19, em 2020. Os membros do comité darão então a sua opinião enquanto especialistas sobre se determinado surto deve ou não ser considerado uma PHEIC. Mas, tal como se revelou agora, a escassez de informação científica e clínica pode dificultar o consenso no painel, deixando a decisão totalmente nas mãos do diretor-geral.
“Ao abrigo do Regulamento Sanitário Internacional, tenho de considerar cinco elementos para decidir se um surto constitui uma emergência de saúde pública de interesse internacional”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, enumerando a informação considerada:
- A informação fornecida pelos países — que, neste caso, mostra que este vírus se propagou rapidamente a muitos países que não o tinham tido antes;
- Os três critérios para declarar uma emergência de saúde pública de preocupação internacional, que foram preenchidos;
- O parecer do Comité de Emergência, que não chegou a consenso;
- Os princípios científicos, provas e outras informações relevantes — que são atualmente insuficientes e nos deixam com muitas incógnitas;
- O risco para a saúde humana, a propagação internacional, e o potencial de interferência no tráfego internacional.
“Em resumo, temos um surto que se espalhou rapidamente pelo mundo, através de novos modos de transmissão, sobre os quais compreendemos muito pouco, e que satisfaz os critérios do Regulamento Sanitário Internacional”, concluiu o diretor-geral da OMS para justificar a tomada de posição. “Por todas estas razões, decidi que o surto global de varíola dos macacos representa uma emergência de saúde pública de preocupação internacional.”
Quer dizer que o risco a nível mundial aumentou?
Por enquanto, não. O número de casos nos países que reportaram surtos da varíola dos macacos parece estar a aumentar, mas a avaliação de risco feita pela OMS não mudou desde a primeira reunião do Comité de Emergência, a 23 de junho. O risco continua a ser “moderado” em termos globais e em quase todas as regiões da OMS, a exceção é a região europeia (Europa/OMS) onde o risco é considerado “alto”. Há ainda um risco claro de continuidade na disseminação internacional, disse o diretor-geral da OMS, ainda que “o risco de interferência com o comércio internacional se mantenha baixo por agora”.
É da região europeia e das Américas que têm chegado a maior parte das notificações dos casos de varíola dos macacos. Isto pode significar que os países destas regiões têm mais casos, mas também que o registo da informação é mais robusto nestes países do que na África Central ou Ocidental ou que os doentes procuram mais os cuidados médicos nos países com rendimento médio a elevado.
Entre os argumentos contra a definição de PHEIC, no caso do surto de varíola dos macacos, está a contestação de que haja um aumento exponencial dos casos nos países com maiores taxas de infeção. “O maior fardo do surto está, atualmente, em 12 países da Europa e das Américas, sem indicações, com base nos dados atualmente disponíveis, de um aumento exponencial do número de casos em qualquer um desses países, e de sinais precoces de estabilização ou de tendências decrescentes observadas em alguns países”, segundo o relatório da reunião do Comité de Emergência.
Mas a preocupação da OMS não se resume ao número de casos por país (ou em termos mundiais) ou sequer ao número de países que já reportaram casos: é preciso ter em consideração que impacto poderá ter na saúde pública e nos serviços de saúde se o vírus da varíola dos macacos se estabelecer na população humana a nível global à semelhança do que aconteceu com o coronavírus SARS-CoV-2. As vacinas cumpriram a sua função ao erradicar a varíola dos humanos do planeta, mas isso significa que não temos defesas prontas para combater um surto desta família de vírus (que inclui estirpes que infetam vacas, camelos, gambás ou pequenos roedores).
O que é preciso fazer a partir de agora?
Quem defendeu a determinação de PHEIC neste surto, durante a reunião de quinta-feira, aponta como principais benefícios a intensificação de algumas medidas que já estavam a ser tomadas, incluindo um nível de sensibilização e alerta alto e a coordenação da resposta a nível internacional — nomeadamente pelo acesso equitativo aos tratamentos e vacinas. Esta definição pode também aumentar o envolvimento e compromissos políticos no combate ao surto, assim como aumentar as oportunidades de financiamento para investigação ou resposta ao surto.
“A declaração de uma emergência internacional é necessária para aumentar a coordenação entre países e implementar medidas para controlar a circulação deste vírus à escala internacional, bem como para melhorar a deteção ativa de casos. Na situação atual, é uma resposta muito apropriada e necessária”, disse Jacob Lorenzo-Morales, diretor do Instituto Universitário de Doenças Tropicais e Saúde Pública das Canárias, num comentário à declaração da OMS.
Cada país terá, depois, de ajustar a resposta específica consoante o nível de risco ou incidência da doença:
- Os que ainda não reportaram um caso de varíola dos macacos ou que não têm nenhum caso novo há mais de 21 dias;
- Os que só recentemente (em 2022) detetaram a entrada do vírus no país e já estão a detetar transmissão entre humanos;
- Os que têm transmissão do vírus que causa a varíola dos macacos entre animais e pessoas;
- Os que têm capacidade de produção de testes de diagnóstico, vacinas e tratamentos.
Seja qual for o caso, especialmente nos países que já têm transmissão dentro do país entre pessoas, o importante é conseguir travar a transmissão e proteger os grupos mais vulneráveis — seja os grupos em maior risco de ter contacto com a doença (e os seus familiares), seja pessoas com comorbilidades que podem ter manifestações mais severas da doença. Assim, o Comité de Emergência, com o avalo do diretor-geral da OMS, considera que é preciso trabalhar diretamente com as comunidades em risco, aumentar a vigilância de saúde pública, melhorar a prevenção da transmissão a nível hospitalar e nas unidades de saúde e ainda aumentar a investigação científica nas várias ferramentas de resposta ao surto (diagnóstico, tratamento, vacinas).
A vigilância e diagnóstico, além da contenção do surto e tratamento dos doentes, reveste-se de especial importância porque a manifestação da doença pode ser tão leve como uma erupção cutânea, não desencadeando o alerta para a potencial doença, e em muitos países continuam a existir dificuldades no registo e reporte de doenças infecciosas — tal como vimos durante a pandemia de Covid-19.
Quais os receios em relação à definição de PHEIC?
Um dos maiores receios apontados pelo Comité de Emergência é a estigmatização dos principais grupos de risco, que na Europa e Américas têm sido homens que têm sexo com outros homens, que podem sentir-se inibidos ou discriminados ao procurar os serviços de saúde ou que podem ser perseguidos em países onde a homossexualidade é considerada um crime. Quem defendeu a definição de PHEIC, destaca que tomar consciência que o risco de marginalização existe não significa travar a definição de emergência de saúde pública, mas antes arranjar soluções para quando esses problemas são identificados.
As comunidades LGBTI+ e organizações de apoio aos grupos de risco podem ser um elemento fundamental na resposta à contenção do surto, mas não estão igualmente desenvolvidas em todos os países. Além disso, pode tornar-se mais difícil “esconder” que uma pessoa está doente (porque as erupções cutâneas podem ser bastante evidentes) num contexto de PHEIC, destacam as vozes contra a declaração de emergência de saúde pública.
"Stigma and discrimination can be as dangerous as any virus."-@DrTedros #monkeypox pic.twitter.com/NUkuM03Kg2
— World Health Organization (WHO) (@WHO) July 23, 2022
Outro dos receios é que a declaração de PHEIC aumente a perceção pública do risco e provoque uma corrida às vacinas que são, neste momento, um bem escasso que deve ser usado de forma muito prudente, para ter uma resposta eficaz entre quem mais precisa. Além disso, defende este grupo, as medidas implementadas desde maio são eficazes, a sua inclusão nas normas nacionais foi bem aceite e a declaração de PHEIC pode fazer com que os países com piores respostas de vigilância e análises laboratoriais diminuam a aposta nestas áreas.
Jacob Lorenzo-Morales, que não faz parte do Comité de Emergência, disse ao Science Media Center (SMC) Espanha que a decisão peca por tardia. “O aumento de casos já fez estremecer a OMS no final de junho e foi decidido esperar, apesar dos avisos da comunidade científica de que estes surtos de varíola não estavam a mostrar um comportamento semelhante ao de surtos anteriores.” Os elementos que não defenderam a declaração, no entanto, consideram que o nível de confiança nos dados existentes ainda é, apenas, “moderado”.
Quais as semelhanças com a disseminação do HIV?
É preciso esclarecer desde já que não existe qualquer semelhança entre os vírus, mas sim nos surtos e no comportamento do vírus enquanto se dissemina entre humanos. Os vírus (que nem seres vivos são), são constituídos por material genético protegido por uma cápsula que pode ser mais ou menos ornamentada. No caso dos vírus que provocam alguma forma de varíola (ortopoxvirus), os genes estão guardados numa molécula de ADN, que tem uma cadeia dupla, já os retrovírus (como o VIH), tem apenas uma molécula simples ARN.
As semelhanças estão, neste momento, nas populações mais afetadas nos países fora da região onde os casos de varíola dos macacos costumavam acontecer — ou seja, homens que têm sexo com outros homens na Europa e Américas. O principal grupo de risco e as localizações quase se sobrepõe com as que foram inicialmente identificadas para o VIH, nos anos 1980. Mas também os casos relatados em crianças e mulheres grávidas, como aconteceu na primeira fase da pandemia de VIH.
A comunidade LGBTI+ a nível internacional tem apelado a que usem todos os meios à disposição para dar resposta a este surto, antes que tome as dimensões que viemos a conhecer no VIH e que resultou, também, do desconhecimento sobre o vírus na altura e a estigmatização dos grupos de risco.
Quem pode ser infetado com o vírus da varíola dos macacos?
A varíola dos macacos deve o nome ao primeiro animal onde foi detetada a doença e, consequentemente, o vírus, em 1958. A doença só foi detetada em humanos em 1970, numa criança pequena na República Democrática do Congo. Os casos aumentaram desde então, sobretudo nos últimos cinco a 10 anos.
Os casos na África Ocidental eram detetados em vários grupos etários e em comunidades de estrato socioeconómico distinto, mas os surtos que se têm registado este ano são um pouco diferentes. Na África Ocidental e Central, são sobretudo as mulheres e as crianças os grupos mais afetados. Na Europa e Américas — nas chamadas novas localizações — atingiram sobretudo homens, em particular homens que têm sexo com outros homens, e em contexto urbano. O que não impede que o surto se possa alastrar a outras comunidades, como grupos vulneráveis (como pessoas com sistema imunitário debilitado, grávidas e crianças).
Por outro lado, destaca o conselheiro da OMS Andy Seale, os homens que têm sexo com outros homens (incluindo homossexuais e bissexuais) procuram com frequência os cuidados de saúde, como na procura dos medicamentos de prevenção da infeção com VIH, e por isso o diagnóstico nesta comunidade pode estar sobrevalorizado. Quantas vezes procura uma consulta no médico por ter umas bolhas na pele e comichão no local? Como na maioria das pessoas os sintomas são ligeiros, os casos podem passar despercebidos a não ser que causem dor intensa no local ou outros sintomas que obriguem a uma assistência hospitalar.
Andy Seale, que participa em programas sobre VIH, hepatite e doenças sexualmente transmissíveis, também refere que uma vez identificados os primeiros casos de varíola dos macacos em homens que têm sexo com outros homens também se torna mais provável encontrar outros casos dentro deste grupo de risco através do seguimento dos contactos próximos — numa estratégia semelhante à usada com o coronavírus.
O que falta saber (ou conhecer melhor) sobre o surto de varíola dos macacos?
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- dinâmica da transmissão;
- impacto do medo do estigma na procura (ou não) de cuidados de saúde;
- implicações no direito ao acesso a cuidados de saúde;
- desafios na implementação de isolamento, acesso a testes e rastreio de contactos;
- avaliação contínua das intervenções que podem ter tido um impacto na transmissão;
- atividades-chave para comunicações de risco específicas.
IHR/OMS
Em investigação estão ainda os casos entre os profissionais de saúde, uma vez que ainda não se provou que haja transmissão na prestação de cuidados de saúde, também os casos de crianças sem nenhuma ligação aparente a outros casos — como pais que pudessem transmitir aos filhos — e ainda se é possível que as pessoas transmitam o vírus a outros animais, como os animais de companhia.
O surto ainda pode ser travado?
Tedros Adhanom Ghebreyesus e os especialistas do Comité de Emergência acreditam que sim, mas é preciso saber por onde começar e como. O que os números têm mostrado e os modelos matemáticos têm evidenciado é que a transmissibilidade é maior entre homens que têm sexo com outros homens. A título de exemplo, a OMS indicou que o R0 em Portugal é de 1,4 (cada 10 pessoas infetadas podem originar 14 novos casos de infeção), no Reino Unido é de 1,6 e em Espanha é de 1,8.
Saber que o surto tem afetado sobretudo homens que têm sexo com outros homens, especialmente os que tivera múltiplos contactos, ajuda a planear a contenção do vírus trabalhando diretamente com as comunidades e as associações que as representam de forma a conseguir a resposta mais adequada para este grupo. O diretor-geral da OMS defende que se deve “conceber e fornecer informação e serviços eficazes, e adotar medidas que protejam a saúde, os direitos humanos e a dignidade das comunidades afetadas”.
With the tools we have right now, we can stop #monkeypox transmission and bring this outbreak under control. It’s essential that all countries work closely with affected communities to adopt measures that protect their health, human rights and dignity.pic.twitter.com/DqyvRtB8w2
— Tedros Adhanom Ghebreyesus (@DrTedros) July 23, 2022
O diretor-geral da OMS apela ainda a que as organizações da sociedade civil, em particular as que estão habituadas a trabalhar com pessoas com VIH, ajudem a combater os problemas de marginalização dos grupos de risco. “O estigma e a discriminação podem ser tão perigosos como qualquer vírus.”
Entre as medidas de apoio aos doentes que têm de ficar em isolamento estão o mesmo tipo de iniciativas de solidariedade que se criaram durante a pandemia de Covid-19: com apoio nas compras de alimentos ou medicamentos às pessoas que não podem sair de casa, ter alguém com quem conversar ou mesmo as linhas de apoio psicológico.
Se tivermos vacinas podemos erradicar o vírus?
A varíola humana foi a primeira doença erradicada graças ao uso generalizado de uma vacina contra o vírus que a provocava. Uma vez erradicada a doença, deixaram de ser administradas vacinas de prevenção para este vírus, daí que as pessoas com 40 anos ou menos sejam as que têm maior risco de infeção — podem nunca ter sido vacinadas ou ter tido contacto com o vírus da varíola (humana ou outro).
A varíola dos macacos, no entanto, não é possível erradicar, porque tal como o nome indica teve origem nos macacos e haverá um reservatório de vírus nos primatas não humanos que nunca permitiria que acabássemos com o vírus no mundo sem vacinar todos os macacos — o que, claramente, é impossível.
Portanto, ou conseguimos controlar a transmissão do vírus ou arriscamo-nos a acrescentar mais uma doença infeciosa à lista de doenças que se disseminam a nível mundial. Dito de outra forma: “A menos que o mundo desenvolva e execute um plano internacional para conter o surto atual, será mais uma doença infecciosa emergente que lamentaremos não termos contido”, como escreveram Michael T. Osterholm, diretor do Centro para a Investigação e Política de Doenças Infecciosas na Universidade do Minnesota (Minneapolis), e Bruce Gellin, chefe da estratégia de saúde pública global da Fundação The Rockefeller (Washington), na Science.
As poucas vacinas existentes — em Portugal, como na Europa e outros países — podem ser usadas nas pessoas que tenham tido um contacto próximo com o doente há quatro dias e que ainda se mantenham sem sintomas (profilaxia pós-exposição), de acordo com a norma da Direção-Geral da Saúde. Portugal recebeu inicialmente 2.700 doses de vacina contra a varíola, vindas dos Estados Unidos. No futuro, quando houver maior disponibilidade, poderá ser ponderada a vacinação de pessoas em risco antes de terem sido contaminadas — tal com o Reino Unido já está a fazer. Esta segunda-feira, a Comissão Europeia aprovou o uso da vacina Imvanex, da farmacêutica Bavarian Nordic (a mesma fabricante das vacinas que vieram dos EUA).
Como se previne a transmissão do vírus?
O princípio é o mesmo usado noutros surtos, como o ébola ou o coronavírus: detetar novos casos, fazer o seguimento dos contactos de risco e isolar. No caso dos contactos de risco da varíola dos macacos, podem ainda usar-se vacinas para evitar o aparecimento da doença. E, claro, evitar o contacto com a pessoa infetada e com as superfícies e tecidos onde ela tocou, incluindo a casa de banho, toalhas de rosto, copos e talheres, equipamentos eletrónicos, entre outros.
A estratégia parece simples, mas a realidade mostra que não o é. A estigmatização pode fazer com que menos infetados procurem os cuidados de saúde; em alguns locais, o acesso ao diagnóstico é limitado; o seguimento dos contactos pode ser dificultado por serem, muitas vezes, múltiplos e anónimos; e o período de isolamento de 21 dias não é bem acolhido depois de dois anos de pandemia em que o isolamento, com e sem doença, por longos períodos, foi muito frequente. Mais, um doente pode continuar a transmitir o vírus até que todas as pústulas estejam completamente saradas.
Mesmo o diagnóstico numa consulta pode ser difícil: as lesões são muito características, mas os profissionais de saúde têm de conseguir reconhecê-las — o que será menos provável nos países que nunca se tinham deparado com estes casos antes. “Do ponto de vista dermatológico, é uma patologia relativamente fácil de reconhecer, porque as lesões são muito características e a doença segue um padrão muito semelhante na maioria dos casos. Mas para poder diagnosticar uma patologia dermatológica, é necessário conhecê-la de antemão. É por isso que é tão importante que os profissionais de saúde estejam cientes desta doença”, defendeu Pablo Fernández, dermatologitsa no Hospital Ramón y Cajal, ao SMC Espanha.
Ainda assim, a declaração da OMS chegou no momento em que tinha de chegar, defendeu Javier Membrillo, porta-voz da Sociedade Espanhola de Doenças Infecciosas e Microbiologia Clínica, ouvido pelo SMC Espanha. “Chega numa altura em que é evidente que as medidas nacionais de controlo não são suficientes, que a informação à população não interrompe as práticas de risco, que se estabelecem cadeias de transmissão não só ligadas a práticas sexuais, como também contágio intrafamiliar, mesmo de crianças, e numa altura em que vemos que o acesso a vacinas e tratamentos antivirais não é universal.”
Se o seguimento dos contactos de risco não for eficaz ou se tornar impraticável pode ser implementada outra medida, nomeadamente a vacinação de indivíduos com elevado risco de serem infetados antes de terem o primeiro contacto com o vírus (profilaxia de pré-exposição). O problema é que os dados sobre a eficácia das vacinas ainda são escassos e isso impede uma tomada de decisão bem fundamentada. Mais, esta vacina enfrentaria as mesmas dificuldades de acesso e disponibilização que outras vacinas.
Quais os sintomas e formas de transmissão?
A manifestação da doença no presente surto a nível mundial é, geralmente, limitada no tempo, mas, também neste caso, diferente do que acontecia nos países onde normalmente se registavam casos da doença. As erupções cutâneas parecem estar agora mais concentradas junto aos órgãos genitais, ao ânus ou próximas da boca, sem se espalharem para outras partes do corpo. Depois das erupções cutâneas, mais ou menos intensas ou extensas, pode haver um aumento do tamanho dos gânglios linfáticos (no pescoço, axilas ou virilhas), febre, mal-estar e dor no local das lesões.
A maior parte das pessoas não precisa de tratamentos inovadores para resolver o problema, bastando apenas prestar cuidados na zona da lesão. Mas alguns casos mais raros podem implicar dores fortes, até com necessidade de internamento, ou infeções secundárias por fragilidade do sistema imunitário. Já foram mesmo registados alguns casos graves, internamentos em unidades de cuidados intensivos e mortes (cinco até ao momento, todas em África).
O primeiro contacto com o vírus é feito, normalmente, no contacto direto, pele com pele. “Foi assim que sempre foi descrito”, disse Rosamund Lewis, médica na OMS, no programa Science in 5. “Podem estar a acontecer coisas novas neste surto. Não sabemos tudo. Ainda há muito para aprender.” Beijar e tocar em materiais contaminados, como os lençóis de uma cama ou as superfícies numa unidade de saúde, estão a ser apontados como potenciais formas de transmissão.
As lesões na pele começam por ser achatadas, depois enchem-se de líquido, rebentam, secam, a crosta cai e nasce pele nova no local da lesão. Só depois da última pústula secar, cair e formar pele nova é que uma pessoa deixa de poder transmitir o vírus — o que pode demorar várias semanas.
No início do surto, as viagens internacionais podem ter tido um impacto na amplificação do surto, sobretudo devido às redes de homens que mantém sexo com outros homens e asseguram as ligações entre cidades e países.
Como evolui o surto atual?
Desde o início de maio, que têm sido reportados casos de varíola dos macacos (monkeypox, em inglês) em países onde a doença não é endémica e entre pessoas que não tinham viajado para esses países. Pelo contrário, o historial de viagem dos doentes era para outros países não endémicos, na Europa ou América do Norte, e não para países da África Ocidental ou Central. Não só foi inédito o surgimento de casos em locais não endémicos, como o surgimento de surtos em vários pontos geograficamente distantes.
Mais, a sequenciação genética do vírus (leitura dos genes) mostrou que a estirpe era diferente daquela que se conhecia na África Ocidental ou Central, mas ainda se desconhece que implicações têm as diferenças genéticas observadas — não se sabe se influenciam a transmissibilidade, virulência, capacidade de escapar ao sistema imunitário, resistência aos medicamentos antivirais ou eficácia das medidas de contenção.
Uma investigação do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge sugere que o surto terá uma única origem e que o vírus tem um número “anormalmente elevado” de mutações — mais de 50. O investigador João Paulo Gomes adiantou que “um número muito significativo” das mutações teve como alvo proteínas do vírus que estão associadas à interação com as proteínas humanas, em particular com o sistema imunitário, o que “sugere claramente um processo de adaptação” aos humanos.
Monkeypox terá tido origem única e vírus tem mais de 50 mutações
A evolução do surto fez com que, há cerca de um mês, a 23 de junho, o diretor-geral da OMS convocasse uma reunião do Comité de Emergência. Na altura, como agora, houve visões diferentes expressas na reunião, mas o comité decidiu por consenso que o surto não representava uma PHEIC. Desde o início do ano, tinham sido registados 3.040 casos de varíola dos macacos em 47 países, lembrou Tedros Adhanom Ghebreyesus. Atualmente, existem mais de 16 mil casos reportados (mais de cinco vezes mais no espaço de um mês), em 75 países ou territórios, e cinco óbitos (três na Nigéria e dois na República Centro Africana).
“À luz do surto em desenvolvimento, voltei a reunir o comité na quinta-feira desta semana para rever os últimos dados e me aconselhar em conformidade”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), este sábado. “Nessa altura, o comité foi incapaz de chegar a um consenso sobre se o surto representava uma emergência de saúde pública de interesse internacional”, com nove elementos a considerarem que não deveria existir esta declaração e seis a considerarem que sim, segundo o STAT News. Na reunião estiveram ainda presentes os 10 conselheiros do comité.
Portugal com 588 casos confirmados de infeção pelo vírus Monkeypox e primeiros contactos vacinados
Como está a situação em Portugal?
Portugal registou os primeiros casos de varíola dos macacos a 3 de maio, com cinco casos confirmados por análise laboratorial. E tornou-se, no primeiro mês, o segundo país com mais casos, logo depois de Espanha. Até à última quarta-feira, tinham sido registados 588 casos, a maioria deles na região de Lisboa e Vale do Tejo.
A 8 de julho foi registado o primeiro caso numa mulher em Portugal — nessa altura havia, pelo menos, oito em Espanha. Entre as crianças, ainda não existe nenhum caso conhecido de varíola dos macacos em território nacional, mas já foram registados casos em Espanha (o primeiro a 1 de julho), Reino Unido, França, Países Baixos e Estados Unidos (os primeiros dois casos em crianças anunciados na sexta-feira).
Portugal está entre os 10 países com mais casos de varíola dos macacos, juntamente com Espanha, Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos, França, Países Baixos, Canadá, Brasil e Itália. Estes 10 países reúnem 88% de todos os casos conhecidos até ao momento a nível mundial.