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NUNO FOX/LUSA

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É mesmo possível erradicar o problema dos sem-abrigo?

Marcelo definiu como desígnio nacional erradicar o drama dos sem-abrigo até 2023. E pressionou o Governo a agir. Quem está no terreno acredita que é possível, mas avisa: é preciso fazer muito mais.

A frustração era constante. Por mais que quisesse ajudar as dezenas de pessoas sem-abrigo que encontrava nas ruas de Lisboa, muitas vezes falhava. E não percebia porquê. Não compreendia os motivos que levavam alguém a preferir a rua a aceitar um teto. Foi o que aconteceu quando tentou convencer um sem-abrigo a mudar-se para o albergue. Depois de muita resistência e desconfiança, conseguiu. Mas tudo mudou quando aquele homem que vivia na rua lhe disse que o cão que o acompanhava todos os dias, o único laço de cumplicidade que criara em anos, não o podia seguir desta vez. Simplesmente, recusou uma casa. Não quis ir. De outra vez, um sem-abrigo confessou que até gostava de seguir para o centro de acolhimento temporário, mas recuou pois implicava deixar a companheira que conhecera na rua depois de todos os outros o terem deixado — o centro era só para homens e, por isso, interdito a mulheres.

Para quem trabalha como voluntário no terreno, junto de sem-abrigo, este é muitas vezes o maior desafio: convencer quem precisa a aceitar a ajuda das equipas de apoio. “A maioria das pessoas com quem conversei durante o tempo que fiz voluntariado estava na rua porque ‘queria'”, conta ao Observador, Pedro Prostes, jornalista freelancer que acompanhou sem-abrigo na zona de Lisboa no início do período crítico da crise que assolou o país, entre 2011 e 2012. Acabou por desistir do voluntariado porque não conseguia lidar com os muitos casos de insucesso que lhe passaram pelas mãos. Esta terça-feira, Ferro Rodrigues chegou a confessar durante um colóquio na Assembleia da República, que quando foi ministro Solidariedade da Segurança Social entrou a pensar que era dos problemas mais fáceis de resolver. Não era, como se verá.

Apesar das dificuldades em resolver este problema social — que raramente ganhou verdadeira visibilidade do ponto de vista político –, o Presidente da República colocou na agenda partidária e mediática a necessidade de “erradicar” os sem-abrigo a prazo. Nos últimos meses, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se desdobrado em intervenções nesse sentido, entre várias ações junto de sem-abrigo, encontros com instituições que se dedicam à causa e repetidos apelos ao Governo. Em entrevista à TVI, Marcelo chegou mesmo a dizer que “o Presidente da República, ao mesmo tempo que puxa pelo crescimento e investimento, tem de olhar para os problemas que não podem esperar, porque entretanto estão aí”.

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"Se houver quatro mil pessoas sem abrigo e resolvermos o problema de três mil, significa um passo muito importante", disse Marcelo Rebelo de Sousa, corrigindo a declaração inicial sobre a erradicação do problema. 

É preciso agir rapidamente, diz Marcelo. A pressão do Chefe de Estado para o Governo tomar medidas concretas nem sequer tem sido subtil. No início de abril, o Presidente foi claro: o ano de “2016 foi um compasso de espera” para que o Executivo socialista preparasse a nova estratégia nacional para integração de pessoas sem-abrigo; um ano depois, a aplicação desta estratégia não pode esperar mais. “Já estamos em abril, convém que não se perca o ano de 2017 e que com os contributos destas e muitas outras instituições seja aplicada a estratégia 2017-2013 mas para ser aplicada em 2017 e não para ser aplicada em 2018”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, depois de um encontro com os responsáveis da Comunidade Vida e Paz, por essa ocasião.

Nessa intervenção, o Presidente da República definiu mesmo como objetivo nacional “deixar de haver sem-abrigo em Portugal em 2023”. Esta segunda-feira, Marcelo voltou à carga: a estratégia para os sem-abrigo “não é flor na lapela — é uma realidade que faz parte da minha biografia” (Rebelo de Sousa despertou para o ativismo político com vocação social depois das cheias em Lisboa de 1967, que levaram muitos jovens favorecidos da sua geração a contactar com a miséria dos bairros de lata que o regime tentava esconder). Desta vez, no entanto, não repetiu a data de 2023 como o data-limite para erradicar o problema. E refreou a ambição da estratégia: “Se houver quatro mil pessoas sem abrigo e resolvermos o problema de três mil, significa um passo muito importante”. O Governo deu esta terça-feira os primeiros passos formais nesse sentido.

"Quando assumi a pasta, achava que, dentro das questões sociais, os sem-abrigo era a mais fácil de resolver. (...) Não bastava haver dinheiro ou condições"
Ferro Rodrigues, sobre o que pensava quando chegou a ministro da Solidariedade

Os desígnios presidenciais, no entanto, não dependem apenas da aplicação de políticas e medidas, porque as pessoas que vivem na rua têm vontade própria e nem sempre é evidente que seja fácil convencê-las a mudarem de vida. “Os sem-abrigo são, na sua grande maioria, pessoas que perderam a sua identidade. Vivem alheados da realidade. Os que têm alguma força dentro deles ainda tentam. Muitos vão desistindo e deixam-se ficar”, conta ao Observador o antigo voluntário Pedro Prostes. “Quanto mais tempo uma pessoa está na rua, mais difícil é retirá-la de lá”.

O querer estar na rua não é exatamente um ato premeditado, salvaguarda. Daí as “muitas aspas” que faz questão de usar quando fala nesses casos. Resulta de um conjunto de condicionantes na origem (situações de pobreza, famílias desestruturadas com episódios de violência associados, comportamentos aditivos, problemas de saúde mental), mas também é consequência do tipo de vida desenvolvido posteriormente (dificuldades de adaptação a novos hábitos sociais, revolta e desconfiança). O resultado combinado destas razões impele estas pessoas, em muitos casos, a preferirem ficar na rua em vez de aceitarem ajuda.

Marcelo Rebelo de Sousa já desenvolveu várias iniciativas com pessoas sem-abrigo, como foi este caso, durante uma visita ao centro de acolhimento ao sem abrigo no Pavilhão do Casal Vistoso, em Lisboa. Chegou a ir jantar a casa de um casal que deixou as ruas para ter uma vida normal. NUNO FOX/LUSA

Mais do que garantir alimentação a quem efetivamente precisa, é este processo, o da ressocialização o mais difícil de cumprir para quem acompanha casos de sem-abrigo. E atinge sobretudo as pessoas que estão na rua há muito tempo. Além disso, os casos são muito complexos e variam entre si. Muitos não se conseguem habituar às novas regras, obedecer a horários e abandonar o consumo de álcool e drogas. Outros, recusam-se a aceitar os rastreios de saúde, por medo ou desconfiança. Há quem não queira deixar os laços que criou nas ruas, as novas “famílias” que se desenvolveram entre cartões de papelão e cobertores. E há quem viva atormentado pelos fantasmas que lhes assaltaram os sonhos e toldam a mente.

“Dou sempre um exemplo: é relativamente fácil acabar com os bairros de lata. Pega-se num caterpillar, destroem-se as habitações e dão-se novas casas às pessoas. O problema dos sem-abrigo é muito mais complexo: são adultos, com vontade própria e com contextos muito diferentes. Dizer que é possível resolver definitivamente este problema é altamente demagógico e revela um profundo desconhecimento da realidade”, testemunha Pedro Prostes.

“Não bastava haver dinheiro ou condições” para acabar com os sem-abrigo, reconheceu Ferro Rodrigues”

Marcelo pôs o tema na mesa e a obra parece estar a germinar. Pelo menos, já foram lançados os primeiros alicerces. Esta terça-feira, no Parlamento, perante o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, representantes dos vários grupos parlamentares e de diversas instituições de apoio às pessoas sem-abrigo, Cláudia Joaquim, secretária de Estado dos Segurança Social, apresentou as principais linhas orientadoras da nova Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem-Abrigo (2017-2023).

Sem adiantar detalhes concretos sobre o plano futuro, a governante revelou duas medidas que farão parte desta nova estratégia de combate ao problema: no futuro, o objetivo é que todas as pessoas sem-abrigo possam ter alguém que as acompanhe de perto (um “gestor de caso”); e está prevista uma revisão das regras para atribuição do Rendimento Social de Inserção (RSI) nestes casos concretos.

"O objetivo do Governo é cada pessoa nesta situação possa ter um técnico que a acompanhe desde o momento em que está na rua até ao momento em que passa para uma institucionalização."
Cláudia Joaquim, secretária de Estado da Segurança Social

Quanto à primeira medida, o objetivo do Governo é cada pessoa nesta situação possa ter um técnico que a acompanhe “desde o momento em que está na rua até ao momento em que passa para uma institucionalização e depois para um regresso à sociedade”. Uma prática já seguida pelo NPISA (Núcleo de Planeamento e Implementação Sem-Abrigo) de Lisboa e que o Executivo socialista espera estender aos restantes 17 NPISA existentes em todo o país.

A revisão das regras para atribuição do RSI vai no mesmo sentido: por um lado, o objetivo é impedir que, por falta de apoio financeiro, pessoas em dificuldades acabem na rua; por outro lado, o Governo quer garantir que as pessoas que estão institucionalizadas recebem este apoio financeiro ainda antes de saírem dos centros de apoio temporários. “Neste momento é preciso pedir e esperar pelo tempo de decisão e esta possibilidade de previamente fazer o requerimento e ter a prestação atribuída é uma forma de permitir que as pessoas que estão institucionalizadas tenham mais um apoio na sua inserção“, explicou Cláudia Joaquim.

Além disso, a renovação da atribuição do RSI vai deixar de exigir a apresentação anual de requerimento em papel com instrução de uma série de documentos — serão os técnicos da Segurança Social a avaliar cada caso. A secretária de Estado fez questão de salvaguardar que não se tratará de uma renovação automática deste apoio, mas antes uma forma de eliminar a enorme carga burocrática associada ao processo, “em particular para pessoas que tem bastantes dificuldades em conseguir fazer a instrução de um processo desta natureza”.

No fundo, estas medidas fazem parte de uma estratégia global, que se quer nacional, para garantir que “ninguém é desinstitucionalizado sem que tenham sido acionadas todas as medidas necessárias para lhe garantir um lugar adequado para viver”, explicou Cláudia Joaquim, na abertura de um debate que contou com testemunhos das várias instituições de apoio a pessoas sem-abrigo presentes.

Antes, já Eduardo Ferro Rodrigues tinha deixado o seu testemunho, lembrando a sua experiência enquanto ministro da Solidariedade da Segurança Social (e depois do Trabalho e da Solidariedade) entre 1995 e 1997. “Quando assumi a pasta, achava que, dentro das questões sociais, os sem-abrigo era a mais fácil de resolver. Com algum voluntarismo e capacidade financeira era possível resolver rapidamente esse problema. Muita coisa se fez. Mas cheguei à conclusão de que era um problema muitíssimo mais complexo, mais grave, mais individual e menos social. Não bastava haver dinheiro ou condições“, reconheceu Ferro Rodrigues.

Com isto em mente, o Presidente da Assembleia da República não deixou de eleger o combate ao problema das pessoas em situação de sem-abrigo como uma prioridade nacional: “Dentro da realidade das desigualdades, da pobreza e da exclusão temos de olhar para os mais excluídos dos excluídos. Uma sociedade decente é uma sociedade que não deixa ninguém para trás, e que não aceita a exclusão como uma inevitabilidade. Tudo se joga na reintegração. Trata-se de dar a estas pessoas uma segunda oportunidade. Trata-se de não desistir de ninguém. Está nas nossas mãos, está nas mãos daqueles que estão na linha da frente deste combate, a construção de um Portugal mais justo”.

“Não estamos a pedinchar dinheiro”, dizem organizações de apoio

Os vários representantes das instituições de apoio às pessoas sem-abrigo que intervieram no debate desta terça-feira foram unânimes: sem um plano concertado e consistente a nível nacional e um orçamento condigno para o combate ao problema dos sem-abrigo, esta estratégia dificilmente sairá do papel. Ou melhor, ficará sempre dependente da boa-vontade dos voluntários e das instituições que vão cumprindo a sua missão à custa de donativos e mecenato.

Estas preocupações já tinham sido expressas ao Observador por Rogério Figueira, diretor da CASA, instituição que se dedica a esta causa. Mesmo reconhecendo que a estratégia anterior (2009-2015) teve alguns aspetos positivos e relevantes, o responsável acredita que o plano não conseguiu responder a duas questões absolutamente estruturantes: a “falta de apoio” técnico e financeiro do Estado às instituições de apoio a pessoas sem-abrigo e a “inexistência de um plano comum de atuação”.

"Não estamos a pedinchar dinheiro. Mas é preciso dar dimensão nacional à resposta. Não podemos estar dependentes de carolices locais"
Henrique Joaquim, presidente da Comunidade Vida e Paz

Estas fragilidades também são identificadas por Henrique Joaquim, presidente da Comunidade Vida e Paz: “Não estamos a pedinchar dinheiro”, garante. “Mas é preciso dar dimensão nacional à resposta. Não podemos estar dependentes de carolices locais”, defende.

Para o responsável da Comunidade Vida e Paz, é preciso dar passos firmes no sentido de “criar um sistema de informações partilhado” entre os vários intervenientes que permita quantificar, identificar e perceber a origem de cada um dos casos de pessoas que estão em situação de sem-abrigo. É igualmente urgente “criar uma bolsa nacional de habitações sociais” que permita encontrar soluções para todos os que procuram abrigo.

Além disso, urge adotar “uma resposta multidisciplinar” capaz de encontrar uma solução adequada para os diferentes casos identificados, com o envolvimento de técnicos do ministérios da Saúde e da Justiça e, sobretudo, especialistas em saúde mental, uma debilidade que continua por resolver, explica.

Ainda assim, e lembrando que há um caminho muito longo a percorrer, os dois responsáveis acreditam que é possível reduzir significativamente este drama até 2023, como definiu Marcelo. “É completamente possível”, assegura Rogério Figueira. “Sim, é possível. Podemos chegar a 2023 dizendo que não temos ninguém na rua por falta de condições técnicas para as receber. Não é um ato de fé bacoco“, concorda Henrique Joaquim.

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