Eduardo Sá, psicólogo, professor, 55 anos, cinco filhos. Esteve na redação do Observador esta manhã numa entrevista coletiva, transmitida em direto, e onde também houve lugar às perguntas dos leitores. Foi esclarecedor, foi provocador, foi polémico. E falou de muita coisa. Desde a Baleia Azul, passando pelas vacinas, educação e dando dicas e truques sobre a difícil temática: como conseguir lidar com os adolescentes?
Fala muito de pais e filhos. De certeza que há imensos pais e mães pelo país inteiro que costumam lê-lo e ouvi-lo e aposto que eles têm uma pergunta sempre atrás da orelha: “Será que ele consegue ser o pai que diz que nós devemos ser?”
Eu costumo dizer que os bons pais, e sublinhe-se bons, têm três qualidades ou três defeitos consoante a perspetiva que queiram colocar. Têm, invariavelmente, coração grande. Têm a cabeça quente, o que significa que as boas pessoas têm obrigatoriamente mau feitio e falam de mais. E, portanto, numa circunstância dessas, mal seria que eu achasse que deveria ser bacteorologicamente puro. Aliás, eu devo dizer que era engraçadíssimo que, um dia, um jornal como este fizesse uma campanha para transformar o lado esganiçado das mães em património da humanidade, porque eu acho lindíssimo, acho do mais bonito e comovente que existe, quando uma mãe faz aquelas reações acaloradas, fúria de mãe, que culmina sempre com duas pérolas: “Qualquer dia vou-me embora desta casa e vocês vão ver” ou “Não fales assim que sou tua mãe”, que faz com que os filhos fiquem estranhamente tranquilos, porque os filhos balizam-se pelos mesmos indicadores que os pais em relação a eles. Quando um filho sente que uma mãe está estranhamente calada é porque está doente e quando assume aquela postura acalorada que só as mães com um coração muito grandes são capazes de ter, começam: “Pronto, ela está no seu melhor”. Eu penso que os pais por dentro não são diferentes.
Portanto, também se irrita, lá em casa?
Mal seria se não o fizesse.
Tem um bebé de 17 meses… Tem uma diferença muito grande para os outros quatro, não é? Como é que é ter agora um bebé em casa? Vai ser um pai completamente diferente? Pensou muito sobre o assunto?
Não. Eu acho, aliás, que devia ser proibido pensarmos demais quando somos pais. Mas vou ser diferente. Tenho a ideia que num primeiro filho nós somos sempre piores pais. E isto vale para todos, acho eu.
É bastante provável, sim…
Portanto, os nossos primeiros filhos deviam ser sempre considerados crianças em perigoso porque nós, às vezes, lemos demais, às vezes queremos que eles se comportem de acordo com um conjunto de regras que depois têm muito a ver com a nossa história. Nós queremos sempre que um primeiro filho cicatrize muitas experiências da nossa vida. E, portanto, temos um bocadinho a ideia de que, num primeiro filho, acima de tudo, queremos ser melhores do que os pais que nós tivemos, queremos, de preferência não repetir os erros que eles foram repetindo, por mais que nós imaginássemos que eles estavam distraídos e, por ventura, até nem estariam. Queremos que eles peguem os sonhos que nós deixámos mais ou menos pelo caminho. E isto, num primeiro filho, é uma coisa terrível. Qual é a vantagem de um primeiro filho? O álbum do bebé tem as fotografias todas.
Verdade.
E, portanto, à medida que nós vamos sendo pais, vamo-nos reconciliando com o equipamento base com que todos nós lidamos e que muitas vezes desprezamos. Nós temos um sexto sentido absolutamente magnífico. As mães, não é publicidade enganosa, passam a vida a dizer que têm um dedo que adivinha. Só as mães é que descobrem os pacotes de leite debaixo das almofadas do sofá. E, portanto, este lado, que eu acho que é muito bonito, só se vai desenvolvendo à medida que vamos deixando de querer ser bons pais. E eu acho que às vezes, esta exigência de sermos bons pais estraga toda esta capacidade que nós temos para sermos pais, só pais.
Há uma questão preocupante, que temos visto nas últimas semanas, que é a da Baleia Azul. Acha que todas as crianças ou jovens estão sujeitos ao mesmo risco ou só aqueles que são mais problemáticos, à partida é que estão mais expostos?
Tenho medo de algum discurso público sobre os adolescentes, porque tenho medo que, às vezes, seja um bocadinho invejoso. É inacreditável que quando nós falamos dos adolescentes, falamos de riscos, de perigos, e, invariavelmente, esquecemo-nos das mais-valias incalculáveis que eles têm. E, portanto, é muito importante que nós possamos deixar claro para os pais que não há como um adolescente passar a ser um adolescente auto-mutilado, à conta de um jogo. Não vale a pena. Mas isto deve colocar-nos com uma discussão dura em cima da mesa, isto é, continuo a achar que devia ser proibido os pais terem programas espiões dentro dos computadores dos filhos. É batota. Mas acho que os pais são a verdadeira entidade reguladora da vida dos filhos e, portanto, não consigo compreender porque é que os pais se encolhem quando se trata de saber quais são os sites pelos quais os filhos andam a passear, quais são os amigos virtuais que têm, quais são os jogos por onde passam, etc. Não me choca que os pais façam isso na presença dos filhos, fazendo o uso da sua autoridade que é calma, uma autoridade que advém da sabedoria e da bondade dos próprios pais. E, portanto, tenho medo que se tenha falado tudo isto com tanto bruaá, que eu acho inquietante, mas às vezes não consigo perceber outras inquietações que deviam ser igualmente importantes. Há muitos mais adolescentes que entram nas redes sociais e que, de repente, de fotografia em fotografia, estão a tirar a roupa para alguém que está do outro lado. E, quando a determinada altura decidem parar, são advertidos, são ameaçados e as represálias em relação aos seus próprios pais são mais que muitas. Em termos de dimensão, é incomparavelmente superior em relação àquilo que se passa com a Baleia Azul e é uma rede que, de uma forma incompreensível para mim, tem merecido um silêncio que não consigo entender.
Mas, nesse caso, a polícia até já fez um vídeo para avisar os jovens e os pais. O que eu lhe queria perguntar era se está toda a gente sujeita ao mesmo risco?
Não, como é evidente. Não, por favor.
Ou até um jovem que parece mais equilibrado…
Quando vê aqueles filmes de época, em plena segunda guerra, vê o modo como muitas pessoas que estavam sob tortura induziam uma dor aguda de forma a calarem uma dor que, obviamente, a tortura infligia. Portanto, vamos ser claros: a esmagadora maioria dos jovens é incomparavelmente saudável e, comparados com os pais, seguramente mais saudáveis, por uma razão simples: porque os pais têm feito até um bom trabalho. Não vale a pena, no entanto, nós termos a ideia de que todos os adolescentes são saudáveis. Há adolescentes que são de facto muito doentes e que, às vezes, quando entram nesta vertigem, claro que estão à procura de uma dor, mutilam-se para sossegar, como é evidente, e silenciar, quando mais não seja, transitoriamente, uma dor que é muito mais intensa e muito mais regular na vida deles.
E o facto de isto se ter tornado uma onde louca nos meios de comunicação social…
Devia ser proibido.
Acha que isto leva a que haja mais curiosidade ainda e que possa levar a mais casos?
A prova de que talvez a comunicação social não esteja tão sintonizada com os adolescentes são as manchetes sobre manchetes que isto tem dado. A comunicação social, curiosamente, tem uma atitude, uma discrição exemplar em relação aos números de suicídios que vão acontecendo, porque a própria comunicação social tem a noção de que às vezes desencadeia um efeito dominó, que é francamente prejudicial, sobretudo naqueles adultos ou naqueles adolescentes que estão naquele registo quase impulsivo: “Faço ou não faço?”. É evidente que tudo isto fez com que muitos adolescentes, que nem sequer sabiam da existência do Baleia Azul, tenham lá ido ver. Não acho que isto seja razoável ou, pelo menos, é escorregadio. Mas sejamos razoáveis. Tomando em consideração o modo autogestacionário como muitos adolescentes circulam na internet, a percentagem de adolescentes que resvalam para o perigo é absolutamente mínima, tomada em consideração a distração dos pais em relação a isso.
Na nossa manchete de hoje, falamos de uma série da Netflix que está agora a ser muito popular entre os adolescentes que se chama “Por treze razões” e que também aborda esta questão do suicídio. Decidimos falar nisto porque começámos a perceber que muitos dos jovens que nós conhecíamos estavam, de facto, a ver a série. Confesso que vi a série, tenho um filho adolescente e, ao início, achei: “O meu filho devia ver isto”. E, depois, no fim pensei: “Ele pode ver mas não pode ver isto sem filtro”. Não sei se viu.
Sim.
Devemos falar disto em casa com eles? Não devemos? Devem ser eles a perguntar-nos? Como é que fazemos?Devemos falar. Muitas vezes tenho medo dos pais e dos professores porque, às vezes, dão as respostas às perguntas que os filhos ainda não fizeram. Se há uma regra de bom senso nisto tudo, a regra é mais ou menos esta: quem pergunta, tem sempre uma resposta e nós não devemos antecipar as respostas às perguntas que eles ainda não fizeram. Todavia, não acho que haja assunto interditos entre os pais e os filhos, pelo contrário.
Mas há muitas coisas que eles não perguntam.
Não perguntam nas linhas, perguntam na entrelinhas.
Ou porque têm vergonha. Ou porque acham que não são os pais que têm a resposta certa.
Até aí, os pais deviam ter algum cuidado. Imagino que esteja a falar, por exemplo, da sexualidade. Tenho medo de alguns pais quando entram por esse tipo de terrenos, porque às vezes a relação de custo-benefício em relação às legendas que se põem, nem sempre é tão boa como pode parecer. Talvez seja importante que nós nos possamos perguntar porque que é os adolescentes adoram séries de vampiros e muitas vezes precisam de ter alguns heróis que nem sempre são heróis, às vezes são quase anti-heróis, que andam ali pelas bordas da morte. Era muito importante que a certa altura nos perguntássemos: “Mas para que é que isto serve? É completamente mau, ou têm ali alguns recursos que podem ser utilizados em favor deles?”. Acho que devia ser obrigatório, antes até de se falar de sexualidade na escola, falar da morte. Nós não falamos da morte. E nós não falamos da morte aos nossos filhos. Não falamos da morte em relação às pessoas que são muito importantes na vida deles. E, todavia, os pais morrem ou não? E, se morrem, qual é o sentido da vida e como é que nós podemos gerir tudo isto como deve ser? E é ou não é saudável — basta que, porventura, olhem para vossa adolescência, por exemplo. Em determinada altura dos vossos 13 ou 14 anos, quando a escola estava toda constipada, quando a mulher da nossa vida disse: “Olha, afinal eu gosto de outro”, quando de repente o mundo parecia virado do avesso — é ou não é saudável, que a determinada altura, um adolescente diga: “Eu, se calhar, não estou aqui a fazer nada que valha tanto”. E, portanto, eu às vezes fico de coração apertado quando os pais me dizem assim: “Como é que eu hei-de explicar aos meus filhos a morte?”. Os pais têm uma tendência fantástica para explicarem aquilo que eles próprios não percebem, porque à escala dos filhos, a vida é tremendamente simples. Se eu amo loucamente uma pessoa, só porque eu amo, ela está obrigada a estar viva, para mim, até ao momento que ela seja precisa. E, portanto, o que não é compreensível para os nossos filhos é , a determinada altura, eles perceberem que amam loucamente alguém e, todavia, essa pessoas se vai embora sem dizer adeus.
Nós passamos a vida a dizer que o céu é um sítio magnífico, deve ser melhor que o Algarve, com muito mais tecnologia. Ou então o céu é publicidade enganosa. E os filhos não percebem porque é que os avós, quando chegam ao céu, nem sequer um mail mandam a dizer: “Olha, isto é fixe, muito melhor do que o Algarve em junho e julho. Em vez de irem de férias para outro sítio qualquer, venham cá”. E, portanto, criamos aqui zonas interditas como se os nossos filhos andassem distraídos. Não andam. Eu acho que a única pessoa distraída no mundo deve ser quem formalizou aquela figura de défices de atenção. Os nossos filhos são as pessoas mais atentas do mundo. Tiram-nos as medidas até ao fundo da nossa alma e, portanto, quando discutem alguns assuntos, nem que seja através de anti-heróis, se for o caso, nem que seja para se reconhecerem e encontrarem-se com quem se suicida ou com que se mutila. Eles estão, no fundo, sempre a fazer contas de cabeça, sempre neste registo: “Mas eu estou a olhar a vida nos olhos ou não? A minha vida tem a minha cara ou não?”.
Acho que andamos todos suavemente a espatifar os recursos saudáveis dos adolescentes, dando a entender que a escola é mais importante do que tudo o resto. Namorar é muito mais importante que a escola. E, enquanto os pais não tiverem um discurso claro sobre a vida, não é legítimo que depois fiquem preocupados com alguns sinais, quando de facto, com benevolência, todavia, mas às vezes com alguma precipitação, estão se calhar a desprezar os recursos dos filhos adolescentes. Os nossos filhos são cada vez menos adolescentes durante a adolescência. Nós estamos a estragar isto, e a fatura é paga por nós. E a adolescência aos 30 não tem graça nenhuma. Já se acumulou muito passivo, e estamos num registo em que eles têm de ser jovens tecnocratas de mochila. Não percebo quem é que inventou que é proibido errar. Errar. Enganarem-se. Terem más notas. Acho que devia ser proibido entrar na universidade quem nunca teve uma negativa na vida, porque errar é aprender. E nós criamos todo um universo tão bacteriologicamente puro que, de vez em quando, há oito adolescente que se auto-mutilam gravemente ou que por ventura se tentam suicidar, entra uma vertigem no ar, do género ‘por trás de cada adolescente saudável está um adolescente que se pode mutilar ou suicidar’. Mas os pais não sabem o que valem como pais? Acham que há um património mais insubstituível do que isso? Um adolescente saudável perde-se só por más companhias? Esqueça.
Então perdem-se porquê?
Porque os pais às vezes se vão distraindo demais. Os pais saudáveis têm de ter o mais possível de colo para dar. O mais possível de colo não é dizerem que sim a tudo e a mais alguma coisa, que fique claro. Eu não sei quem é que inventou que o colo estraga. Deve ter sido alguém que nunca teve colo. Os pais saudáveis têm de ter o quanto baste de autoridade. Mas a autoridade é um exercício de sabedoria, de bondade e de sentido de justiça, que faz com que um pai e uma mãe digam: “Não, porque que eu, convictamente, acho que não.”. Quem é que inventou que nós temos de explicar os nãos aos nossos filhos como se fosse um decreto? “Porque que é que tu tens de comer a sopa?” Alinea a)… É como se os pais estivessem a dizer que não e, no fim, estivessem a perguntar aos filhos: “Estive bem?”. E depois, têm de promover a autonomia dos filhos. Se os pais pegarem nestes três condimentos, não estragam os filhos. Nós educamos com bons exemplos, não é com bons conselhos. A autoridade resulta das experiências de todos os dias e, portanto, o que é que os filhos precisam mais? Tenho medo que muitas famílias sejam uma democracia do proletariado, que os filhos, a determinada altura, estejam a mandar nos pais. Mas que sentido tem? Se os filhos podem mandar nos pais, deviam poder votar aos 12. Porque não?
Um dos leitores pergunta qual é para si o melhor esquema de guarda para pais separados.
Como deve imaginar eu não tenho nada contra o amor para sempre. E acho que as pessoas só se divorciam ou só se separaram porque acreditam que podem ser felizes. E não vale a pena nós termos a ideia — porque é muito demagógico — que hoje os pais se divorciam com uma facilidade estonteante, como se os pais fossem um bando de pessoas irresponsáveis… Não há nada de mais esmagador para um pai ou para uma mãe dizer a um filho: “Olha, eu vou precisar de te magoar muito, porque acredito que posso ser feliz e, com isso, tu também”. Tenho a noção que os pais são invariavelmente boas pessoas e querem ser bons pais mas, de facto, pais felizes têm muito mais probabilidades de ser bons pais. E, portanto, às vezes a separação é uma verdadeira entidade reguladora na relação dos pais com os filhos. Há muitos pais que, se calhar, nunca foram tão pais como deviam e que, de repente, quando se dá uma separação, a criança passa a ter um pai que nunca teve, e o pai passa a perceber que mudar um fralda não é uma coisa tão catastrófica como isso.
Se me perguntar qual é que eu acho que devia ser a regra de bom senso nas separações, evidentemente, uma guarda conjunta. Agora, sejamos razoáveis, uma guarda conjunta ou, se preferir, um espírito de uma guarda conjunta, não pressupõe que nós tenhamos de dividir milimetricamente todos os tempos do pai e da mãe. Por mim muitos advogados deviam ser mais sensatos e muitos tribunais deviam fechar para balanço para perceberem que os cidadãos portugueses não querem que os tribunais sejam uma espécie de tutores de pais. Querem pessoas que façam mediação familiar no sentido nobre do termo. Portanto acho que nas melhores circunstâncias a guarda conjunta devia ser o formato mais razoável, tendo esta consciência: ter um pai e um mãe a fazerem de pais não significa que o pai e mãe façam almoços e jantares todas as semanas e se comportem como se nada se tivesse passado, porque todos os divórcios, por mais amigáveis que sejam (a designação não é minha, é dos tribunais), acabam por ser sempre um bocadinho litigiosos e, portanto, aos olhos das crianças, fica muito confuso: “Olha, a mãe e o pai já não são namorados mas, todavia, são os melhores amigos”. Isso não acontece, nem na vida dos adolescentes por mais que eles à vezes queiram que seja assim. E, portanto, esse devia ser o formato tendencialmente mais equilibrado. Agora, também lhe digo que, se eu pudesse mandar um bocadinho nos tribunais, sugeria que qualquer acordo de guarda ou de responsabilidade parental devia ter obrigatoriamente um período provisório de seis meses, por uma razão simples: não há nenhum acordo de guarda ou de responsabilidade que seja blindado. A vida dá tantas voltas e, à vezes, os advogados que querem os acordos mais blindados, com mais cláusulas, são aqueles que criam sem querer (às vezes, por querer, mas nem me passa isso pela cabeça), as condições indispensáveis para que haja mais incumprimento.
Temos um leitor que não quer ser identificado e que pergunta se tem algum conselho básico sobre como lidar, como pai, com uma filha de uma mãe e de uma família materna alienantes.
Vamos separar a guarda e a responsabilidade da alienação parental. São coisas completamente diferentes. Tenho muito medo que haja muitas pessoas que falem de uma forma um bocadinho leviana da alienação e tenho muito medo que haja muitos responsáveis, muitos mesmo, muitos mais do que aqueles que eu desejaria, que digam que ela não existe. Só quem não anda pelos tribunais é que percebe que existe e que às vezes há mães e pais batoteiros que instrumentalizam os filhos, que os viram contra o pai ou contra a mãe e, no dia em que os tribunais forem mais rigorosos, isto não vai acontecer, porque nunca se chega à alienação parental por acaso. Há pais que hoje assinam o acordo de responsabilidades parentais e, a partir daí, passam a não cumprir, mas com uma leveza estonteante e com conivência passiva dos tribunais. Um acordo que livremente eles assinaram e que não é um acordo que tem só a ver com aquilo que a mãe e o pai entendem, tem a ver com os supremos interesses dos seus filhos, e não cumprem! Quais são as consequências? Quase nenhumas.
Multas ridículas…
Insignificantes.
devia ser dos maus tratos]
E lentas, porque têm de se queixar ao tribunal que a mãe ou pai não entregaram a criança. Isto pode durar anos.
Vivem no Porto e o outro pai decide deslocalizar a criança para Ponta Delgada. Quais são as consequências? Nenhumas. E de repente começa-se com um discurso demagógico, do género: “Bom, sempre que vai para o pai, ele vem alterado”. Não devia vir? Ou seja, a mãe e o pai odeiam-se, partilham o mesmo filho que supostamente amam perdidamente. Isto é a quadratura de um círculo, na cabeça de uma criança. O que é que as pessoas estão à espera? Que as crianças quando andam de um lado para o outro estejam num registo quase desportivo, do género: “Não se está a passar nada”. Mas em que mundo é que as pessoas andam? E, finalmente, é absolutamente escandaloso, é repugnante aquilo que se passa, porque acho muito importante que os abusos sexuais sejam denunciados e sejam punidos gravemente, coisa que muitos tribunais não fazem. Eu entendo que, quando há um abuso sexual de um pai ou de uma mãe em relação a um filho, atestado em sede de justiça, não consigo perceber porque é que isso não chega para inibir. Não é a guarda, é a responsabilidade parental. Quantas decisões dos tribunais até hoje foram dadas perante situações e efetivamente atestadas? Quantas? E, de repente, parece haver uma epidemia atípica de pais a abusar de filhos porque às vezes há, de facto mães batoteiras, também há pais batoteiros, que fique claro. E que, de repente, percebem, que é o argumento mais imbatível: “A minha filha veio com um ligeiro corrimento depois de estar com o pai”. É um slogan que começa a ser epidémico neste país e que faz com que, de repente, parece que por trás de cada pai que quer ser pai, há um potencial abusador. E, portanto, quais são as consequências para esta batotice toda? Nenhumas. E isto devia ser dos maus tratos mais gravemente punidos, porque instrumentalizar um filho contra um pai ou contra uma mãe é não medir as consequências, é fazer-lhe tão mal e comprometer de forma tão irreparável a vida dele que acho que os tribunais deviam fechar para balanço para perguntar a si: “O que é que nós temos feito em relação a estes pais efetivamente mal tratados?” Nada. E qual é a autoridade moral de depois as pessoas chegarem à frente e dizerem assim: “Há ou não há alienação parental?”. Não têm autoridade. Há muitos pais que só querem ser pais. Acho muito bem que não haja discriminações por identidade sexual, mas aquilo que se passa em muitos tribunais, hoje menos, mas ainda assim acontece, é que um homem, só porque é um homem, é discriminado por identidade sexual em relação aos cuidados e à guarda de um filho. Porquê? Porque é que um tribunal entende limitar a responsabilidade parental de um pai só porque é homem? Quantas organizações que defendem legitimamente, com todo o respeito da minha parte, aliás, os direitos das mulheres se chegam à frente para dizer assim: “Nós não queremos ser discriminadas. Não admitimos que por razões absolutamente tíbias, haja homens que sejam discriminados”. E algumas têm algumas juristas. Não entendo.
Falou aqui nas regras de bom senso que devem guiar a ação educativa dos pais, essa entidade reguladora da educação, como lhe chamou. Pedia-lhe que voltássemos só um pouco atrás quando estávamos a falar das redes sociais para tentar ver o outro lado da questão. Quando os pais querem intervir, deve haver limites a essa intervenção, a essa regulação, quando estamos a falar de redes sociais?
Vou-lhe responder como os adolescentes. Defina limites.
Os pais guardarem a password de entrada, controlar horários de utilização. Há regras?
Sem dúvida nenhuma. Guardar a password não entendo que seja razoável, mas entendo que é razoável que um pai ou uma mãe tenham toda a legitimidade do mundo para dizer assim: “Há aqui qualquer coisa no ar que me está a deixar muito pouco confortável e, portanto, se me dás licença, vamos abrir alguns sites e outras zonas do teu computador, porque a mãe ou o pai entendem que têm obrigação de ficar descansados em relação a muitos desses aspetos”. Não vejo qual é o pecado de os pais terem uma opinião sobre a vida dos filhos, mesmo quando eles têm 30 ou 40 anos.
A pergunta é no sentido de perceber se esse controlo, essa regulação da utilização, deve ser feita à revelia dos filhos.
Não. Porque é que não pode ser feita nas presença dos filhos? É uma questão de lealdade, de respeito mútuo. Não acho que um pai deva ir à socapa ver o telefone ou computador de um filho, por mais que eu entenda que muitas mães o façam. O nariz das mães é imparável. Sejamos razoáveis, não sejamos fundamentalistas. Mas acho que há um lado simbólico de nós dizermos a um filho: “Vamos precisar de conversar acerca do que se está a passar”. O lado simbólico é absolutamente precioso, porque é no fundo o adolescente que até pode ter 1,90 cm e 90kg de peso e achar que é crescido (e de certa forma até é), mas é como se ele se sentisse que, independentemente de tudo aquilo que ele sabe fazer, que os pais por ventura até nem sabem, os pais em circunstância alguma desistem de fazer aquilo que só os pais podem fazer. Às vezes, os pais desistem quase por receio e eu continuo a entender que nós nunca devemos ser cerimoniosos com as pessoas que amamos.
Mas às vezes é muito difícil falar com adolescentes. Há bocado estava a dizer-me que há perguntas proibidas: “Correu bem escola?”, “O que é que almoçaste?”
Isso são as mães. As mães, como sabe, quando vão buscar um filho à escola, fazem sempre as três perguntas que fazem com que um filho fique enxofrado: “Como é que correu a escola?”, “Tens trabalhos de casa?” e “O que é que foi o almoço?”. Isto devia ser proibido.
Mas é importante saber se acriança se alimentou…
Claro que é importante, mas os filhos põem sempre aquela postura, do género, isto é gestão corrente, vamos guardar-nos só para aquilo que for extraordinário. As mães têm um sexto sentido que eu acho comovente. Prefiro que a mãe ou os pais se guiem pelo sexto sentido. O truque é nós falarmos pelos nossos filhos, ou seja, os filhos têm — e bem — a convicção de que os pais sabem mais deles do que os próprios filhos. Se os pais fizerem uso disso, prefiro que os pais façam aquele registo do género: “Posso estar enganada mas eu sinto que…”. E ponham legendas. Quais são as probabilidades de se enganar? Muito menos do que aquelas que se imagina. Os filhos jogam à italiana. Dão sempre uma tampa aos pais naquele registo do género: “Agora mostra que sabes mandar”. É simples.
E acha que qualquer mãe é um Messi?
As mães são muito melhores que o Messi. Ninguém quer as mães e os pais a fazer habilidades, querem-nos só a pôr o nariz a funcionar.
Digo no sentido de conseguirem partir a tal defesa…
Os filhos adolescentes têm um truque. Os filhos adolescentes pedem colo ao encontrão. É um truque que vale para os filhos, como para os pais dos filhos: sempre que alguém muito importante para nós está a sofrer, quando nós nós chegamos ao pé dessa pessoa devíamos ser proibidos de perguntar: “O que é que se está a passar?”. Porque as pessoas que nós amamos têm a ideia de que nós somos tão finos a adivinhá-las, que vamos direitinhos às legendas e, portanto, em vez de perguntar isso, sente-se no sofá, intime-o a sentar-se consigo, dê-lhe dez minutos de corpo de mãe, sem palavras. E ao fim de dez minutos diga assim: “Pronto, agora vai à tua vida”. Depois vai ver se ele não fala.
Queria fazer uma pergunta sobre o meu filho de quase oito meses. Quando preciso que ele fique um bocadinho sossegado, um Ipad e um babyshark é ótimo, mas não quero que ele se vicie.
Que dia é hoje, 10? Já está. (risos) Bom, na verdade ainda vai a tempo…
É errado fazer isso?
Nós somos equipamento base. Somos animais fantasticamente audiovisuais, portanto não se trata de uma cruzada contra o audiovisual, mas veja a ironia dos tempos que nós vivemos. Passamos a vida a dizer que somos uma sociedade de informação e, na verdade, temos no nosso bolso a enciclopédia mais magnífica do mundo ao nosso dispor. É uma coisa verdadeiramente comovente. Depois, quando entramos num restaurante ao fim de semana, o que é que você tem? O pai a consultar as últimas notícias, a mãe, porventura, no Facebook, um dos filhos a navegar nas redes sociais e outros a fazer jogos online. Estamos a criar um mundo estranho. Um jornal como o Observador devia ter alguma obrigação social a este nível. Acharia delicioso que o Observador fizesse, com o seu logótipo, qualquer coisa do género: “O jornal Observador recomenda que neste restaurante se desligue o telefone na hora do almoço”. Recomendar não é proibir. A determinada altura, acho muito importante que um filho de oito meses se zangue, se enfureça, que ache que a vida é uma chatice quando, de repente, a mãe ou o pai não têm todos os apelos do mundo. Acho fundamental que ele aprenda a viver com alguma frustração. Acho magnífico que a mãe e o pai à vezes percam a cabeça e digam: “Mas não há paciência para este filho”. Sossegá-lo como se estivéssemos a dar uma segunda chupeta para que ele estivesse quietinho e calado, devia ser proibido, Pessoas quietinhas, sossegadinhas e caladinhas, meu deus, devia ser proibido, e eu acho que nós devíamos pôr isto à entrada das escolas, porque acho que as escolas imaginam que as crianças saudáveis devem estar sossegadinhas, quietinhas e caladinhas. Isto é um atentado à humanidade.
Muitas vezes questiono-me se exatamente essa história de eles hoje em dia estarem quietinhos, sossegadinhos, não lhes retirou um bocadinho aquilo que nós tivemos, ou que eu tive em criança, que era ir a pé para a escola a um quilómetro, correr, saltar na rua, brincar. Se não lhes tirou um bocadinho a vontade de gastar energias lá fora e se depois o facto de eles estarem presos em casa os transforma, de vez em quando, em obcecados por algumas questões que os leva a brincar em jogos de risco como estes do baleia azul.
Às vezes fico um bocado sem jeito quando as escolas de uma forma muito orgulhosa dizem: “As nossas crianças utilizam todas um Ipad”. Voltámos à vista na ponta dos dedos. Durante muitos anos, as crianças que chegavam equipadas com a vista na ponta dos dedos e a perguntar porquê, as escolas muito rapidamente encarregavam-se de pôr isso na prateleira, como se fosse perigoso. Acho que é bom que possamos perceber que nós aprendemos com o corpo, não contra o corpo. Acho mesmo uma falta de bom gosto que haja uma espécie de epidemia atípica de crianças hiperativas e com défice de atenção em Portugal e ninguém pare cinco minutos para perguntar: “Porquê?”. Esta epidemia começou quando começámos também a banalizar o tempo de escola. Há muitos meninos até ao 9ºano, num país que discute os horários da função pública encolhidos para 35 horas, que passam na escola 55 horas por semana! Quem é que se chega à frente para dizer que escola de mais faz mal? Ninguém. Nós temos pacotes de aulas expositivas sobre pacotes de aulas expositivas de 90 minutos. Qual é a relação de custo-benefício que isso tem para aprendizagem das crianças?
E quem é que aguenta 90 minutos sentado a ouvir?
Neste momento, há muitas escolas que têm como pérola as crianças terem recreios de cinco minutos. São supersónicos. Antes eram dez. Faça as contas: dava três minutos para ir à casa de banho, três minutos para comer o pão, três minutos para brincar, o minuto restante era para os trocos, que já de si era uma coisa faraónica. Brincar em três minutos é uma coisa faraónica. Neste momento estamos nos recreios de cinco minutos. Neste momento, há crianças que fazem os trabalhos de casa depois das oito da noite. Qual é a relação de custo-benefício para a aprendizagem? Nenhuma. Nós entramos nesta onda toda. São as crianças mais sedentárias que a comunidade europeia está a produzir e, portanto, criou-se esta ideia de que elas têm de ser bacteriologicamente puras e não se diz com a clareza que se devia dizer que as crianças saudáveis andam à bulha. Precisam de ser agressivas com maneiras, com lealdade. Precisam de limpar o pó ao colega de oito ou de nove anos, para que depois quando tiverem 30 ou 40 e são deputados não façam aquelas más figuras que os deputados às vezes fazem. Há ex-primeiros-ministros que dão palmadões na mesa, coisa que nós não admitiríamos aos nossos filhos em casa, e falam em cima dos outros e apupam de uma forma gratuita mal educada, porque estas pessoas nunca andaram à bulha e nunca aprenderam a ser agressivas com lealdade e com maneiras.
Fomos nós pais que perdemos um bocadinho o instinto e que não podemos vê-los a subir a uma árvore a a fazer um arranhão que vamos logo a correr? Consultamos especialistas, ouvimos e lemos quinhestas opiniões diferentes para educar os nossos filhos…
Tenho medo dos pais que pedem muitas opiniões — eu não tenho nada contra o contraditório — e que navegam por muitos sites, porque a determinada altura parecem estar a pôr em segundo plano toda a sua sabedoria de pais. A sabedoria de pais não é um equipamento base. O sexto sentido não é um equipamento base nas mulheres e um equipamento de opção nos homens. A sabedoria traduz-se nesta intuição dos pais, que eu acho que eles às vezes não escutam. Quantos pais é que eu ouço dizerem-me: “Eu acho que o meu filho de 14 anos não devia sair até às duas da manhã, mas os colegas todos saem.” Mas então se acha que ele não deve, porque é que sai? Às vezes damos tanta importância a um mundo tão tecnocrático e tão burocrático que, de repente, esquecemos que o mundo continua a ser feito de pessoas que são semelhantes àquilo que eram. Se pudesse mandar um bocadinho, quase reabilitava a obrigação de as crianças comerem o queque a meio do recreio sem lavarem as mãos.
Que se sujem, que caiam da bicicleta…
Crianças saudáveis têm obrigatoriamente de se sujar.
Subir às árvores…
E partir pernas de vez em quando. Por uma razão simples. Nós estamos a produzir crianças tão bacteriologiamente puras que, de repente, nunca houve tantas situações imunoalergológicas como existem. Estamos a dar a ideia de que a escola é o mais importante da vida delas. Não é. A escola da vida é muito mais importante e nós estamos a tirar-lhes escola de vida e estamos a tirar o brincar, que é o sítio onde se põem a levedar todas as aprendizagens.
Não lhes podemos dizer isso…
Temos obrigação de dizer isso.
Mas há um manancial de literatura que orienta os pais para isto e para aquilo. Estou à espera do livro “Ensine o seu filho a respirar em dez dias”. Porque é “ensine a dormir”, “ensine a pensar”, “ensine a comer”, “não dê o brócolo antes de dar a cenoura”…
Nem sempre os órgãos de comunicação entrevistam as pessoas certas (risos). Percebo perfeitamente a inquietação dos pais, mas quem são os pais que não querem que os filhos cresçam sem sofrimento? Todos nós queremos. A dor faz parte do crescimento e se os nossos filhos não experimentem a dor, nunca vão inocular e, portanto, nunca vão aprender a ter tolerância à dor e, portanto, eu costumo, tentando desdramatizar, dizer assim: “Quais são os pais saudáveis? Um pouco como os antibióticos. Aqueles que fazem uma asneira de oito em oito horas.” E, depois, digo sempre: “Se ainda não chegou lá, não perca a esperança, está sempre a tempo”.
Mas o que é que faz com que pais que cresceram na década de 80 e que estavam habituados a subir a árvores, a cair, a sujarem-se, não deixem agora as suas crianças cair, subir ao baloiço, andar a brincar no meio da terra? Porque é que nos tornámos tão obsessivos com as bactérias, com este medo que a crianças se magoem? O que é que mudou?
Os pais têm de tal forma a ideia de que querem ser melhores pais do que os seus próprios pais, que a determinada altura ficam muito inebriados nesse narcisismo. Os nossos pais podem ter feito muitos erros, e fizeram. Voltamos à história das oito em oito horas. Claro que no primeiro filho, como dizíamos no início, não o deixamos fazer aquelas asneiras todas, e depois, à medida que nós crescemos, eles reabilitam-se para o ritmo saudável. Mas a determinada altura, os pais querem muito mais criar quase sucessores, do que propriamente filhos. Querem uma versão tão melhorada dos próprios pais, querem que os filhos sejam tudo aquilo que os pais não foram, que até determinada altura é legítimo e bondoso. Depois, não fica muito claro que vida é que os filhos estão a viver, se é a vida deles, se é a vida que a mãe e o pai traçaram para eles. O exemplo mais banal é a vida infernal das crianças que são boas alunas. Se uma criança tem o “azar” de ser boa aluna e se tem o “azar” de tirar boas notas a tudo, se não vai para medicina, para gestão e, agora, para engenharia aeroespacial, que é o que está a dar… é um inferno em cima dela, porque de repente não se pode ir atrás de uma paixão. Os pais têm de perceber que o mundo melhora, não quando fazemos clonagem de pessoas, mas quando criamos pessoas absolutamente singulares. E as pessoas singulares são aquelas que cruzam a história da mãe, do pai, de repente todos os acidentes que tiveram no percurso…
Os pais estão a ser demasiado exigentes? Esta quase obsessão para que os filhos vão ao futebol, à natação, à música, às artes visuais… Estamos a querer que os nossos filhos sejam os suprassumos em tudo? É saudável para as crianças terem todos os finais de tarde ocupados?
Quando os pais fazem aqueles horários semanais, está lá o horário da escola e das atividades, mas é obrigatório que as crianças tenham de brincar duas horas por dia. Duas horas de tempo livre, que façam dessas horas o que bem entendam. Duas horas não é demais, é a vitamina do crescimento, ajuda a crescer como mais nada. No resto do tempo, que os pais preencham isso com aquilo que entendam que é útil. Há demasiadas crianças a ter explicações neste país. Porquê? Porque as escolas não funcionam, é? Porque a determinada altura devíamos perguntar porquê. Portanto, uma atividade física e desportiva é tão importante como a escola. O ensino artístico também. Um dia, num país mais amigo das crianças, nós não vamos só dar importância a isso. Não devia dizer isto, se calhar, mas paciência… Quando se trata de fazer provas de aferição, ou nos 15 dias antes, como aconteceu em muitas escolas, de repente fizeram uma formação física à pressa, quando no resto de tempo não a têm. Vamos dar uma paridade às disciplinas, porque Educação Física é tão importante como inglês e matemática. Porque há de ser uma atividade de segunda? Acho que a escola não precisa de tantas horas para que as crianças aprendam, as crianças não precisam de tantas horas para terem níveis de aprendizagem ao nível daquilo que se passa noutros países. Têm de brincar todos os dias. Brincar não pode ser uma atividade de fim de semana ou de férias. Em que mundo é que nós andamos? Preencher no que é razoável tudo o resto. Tudo o que é demais, faz mal às crianças.
Uma das leitoras expõe o seguinte: “O meu filho tem 6 anos, é saudável e curioso, no entanto não gosta das brincadeiras típicas de rapazes e é demasiado exigente consigo mesmo. Quanto lhe ralhamos porque se porta mal, ou quando não consegue fazer um exercício do trabalho de casa, diz que se odeia”…
É ótimo que os pais percebam que o exercício da demagogia não é um território exclusivo dos políticos. As crianças quando decidem ser demagógicas dão 10 a 0 ao melhor dos políticos. Não há nada que faça melhor aquele efeito de meter o pai no bolso do que um filho virar-se para ele depois de se zangarem e dizer “eu odeio-me” eu não presto”, porque de repente, o pai, em vez de “rosnar” com fúria de pai ou de mãe, põe-se tipo gelatina da Royal a dizer “Oh meu deus o que estou a fazer?”. As crianças gostam todas de ganhar, mas quem é que não gosta? Todos nós adoramos ganhar. Elas só vão aprender a perder a partir do momento em que nós as obriguemos a aprender a perder. Portanto, é saudável que uma criança chegue da escola e se ponha num registo mais ou menos aristocrático, do género “ou é como quero ou não é”. Tanto é que os nossos filhos, nos primeiros tempos de escola, chegam a casa e dizem “eu não tenho amigos”. É uma coisa que faz com que a mãe ligue todos os sensores e pense “o que está a acontecer?”. As crianças saudáveis fazem aquilo que eu acho delicioso: “Eu não sou bom a jogar à bola, logo vou brincar com as meninas” ou então “Vou brincar com os mais velhos, ou com mais novos. Os mais velhos tomam conta de mim e eu tomo conta dos mais novos, e a coisa fica ela por ela, não dou conta das minhas fragilidades”.
Tudo isto é saudável, desde que os pais não se ponham a valorizar aquilo que não é tão valorizável assim. Quando um filho chega a casa na sua versão calimero, o mundo uniu-se para me tramar, a mãe e o pai devem partir a dor ao meio e com o tal sensor perceber até que ponto ele está a ser um bocadinho batoteiro ou não. É muito importante percebermos que a melhor forma de ajudarmos os nossos filhos a ganhar é obrigá-los a aprender a perder. Às vezes, quando estamos a brincar em casa com eles, acho delicioso aquele movimento de eles virarem literalmente o tabuleiro, do género “oh que maçada, agora é que estava perder é que isto ficou fora do sítio”. Os pais são as pessoas mais inacreditavelmente bondosas do mundo, mas em algumas circunstâncias têm de ter músculo. O desporto é uma alegoria fantástica da vida. Eles vão ter de aprender a mostrar os pitons, a meter o ombro, a comer a relva quando for preciso, ir atrás de uma paixão. Era muito bom que os pais percebessem que a raiva é um ansiolítico e um antidepressivo do melhor que há. Quando nós perdemos, cerramos os dentes e dizemos assim: “Macacos me mordam se eu não vou lá para ganhar a seguir”. Isto é dos melhores fatores de crescimento das crianças, ao qual nós nem sempre abrimos a porta, porque temos medo que os nossos filhos sempre que estão um bocadinho tristes — mesmo quando são demagógicos –, isso os possa traumatizar. Não traumatiza. Eu não sei quem é que inventou esta ideia de que as crianças saudáveis não podem estar tristes, mas nós devíamos ser claros: nós nunca aprendemos a ser felizes se não aprendermos a viver com a tristeza. A tristeza é mesmo o melhor antidepressivo do mundo.
Eu acabo por achar preocupante — e por experiência pessoal — alguns ataques de pânico e sentimentos de desespero quando um adolescente não consegue atingir os objectivos que são muito elevados. Não consegue desvalorizar a importância desses objectivos e achar que num dia vai ter 20 e noutro dia vai ter 18,5. Tem um ataque de pânico porque não tem sempre 19,5. Como é que se faz este baixar de expectativas?
Pondo bom senso nos pais e nas escolas. Veja o que as mães dizem — sempre as mães portanto. Com a clareza com que só elas sabem colocar estas coisas, costumam pôr as coisas assim: “Eu não quero que o meu filho não seja o melhor”. É mentira, qualquer mãe ou qualquer pai secretamente baba-se quando o filho é o melhor. E depois dizem assim: “Mas seja o que for que ele escolha,” — como se ele pudesse ir a jogo em qualquer área, o que também não é bem verdade. “Eu quero que ele seja bom naquilo que faz”. Como? Mas os pais são sempre bons naquilo que fazem? E portanto, quem é que é bom aos 18 anos, aos 13, aos 14, aos 15 ou aos 23? Ninguém. Mas que mundo é que nós estamos a criar? Portanto, nós passamos a vida a criar uma publicidade enganosa que não é verdade. Pomos pó de arroz nas notas, fazemos trinta por uma linha para chegarmos àquilo que as mães, uma vez mais, me dizem com o olhar mais ternurento do mundo: “Eu estou a ficar preocupada, porque a educadora do meu filho disse que ele era sobredotado” e depois riem-se. E eu fico de coração partido e digo assim: “Olhe, não fique zangada comigo, mas todas as crianças, se não forem devidamente estragadas pelos pais, são sobredotadas”.
O seu filho não é especial…
Não não, é especial, mas não precisa de ser sobredotado para ser especial. Depois, as mães dão uma luta imensa e dizem assim: “Pronto” — como quem diz, “vá eu até lhe dou essa” — “mas ele tem uma personalidade muito forte”. E eu aí fico: “Digo, não digo, digo”. E digo: “Olhe, mas sabe que aquilo que nós chamamos uma personalidade muito forte é uma definição muito urbana de crianças teimosas”. Claro que todos os pais querem muito que os filhos tenham sucesso, eu entendo isso, mas o que não é razoável é que os pais criem a ideia de que as pessoas que têm sucesso na vida são aquelas que têm sucesso muito depressa. Porque às vezes o sucesso, à escala dos pais, é razoavelmente claro: é ganhar muito dinheiro no mais curto espaço de tempo. Isto não é verdade. Quem são aquelas pessoas que se distinguem no jornalismo, na psicologia, em tudo na vida? São aquelas que tiveram que errar, que se engasgaram até que descobriram, num percurso profissional, a síntese de todas as características pessoais, que depois põem a render pela vida fora.
Houve dois leitores que referiram que tinham crianças com cinco anos que levavam trabalhos para casa…
Devia ser proibido. Conheço muitos jardins de infância em que as crianças têm trabalhos de casa. Pior, há trabalhos de casa também para pais, que eu acho delicioso. Aliás, é pior ainda: há colégios onde há aulas suplementares para mães, para as ensinar a estudar com filhos. Eu acho que as pessoas a certa altura têm de parar.
Aulas para ensinar os pais a estudar com os filhos…?
Para pais não, só para mães. Agora, há uma questão que está nas entrelinhas do que estava a dizer e que acho que é muito importante. Cada vez conheço mais pais que põem as crianças no ensino obrigatório unicamente aos sete anos e com um argumento simples: porque a partir daí deixam de poder brincar. Veja como o mundo é tão injusto, às vezes. Para um jogo como a Baleia Azul, com toda a legitimidade, houve um bruaá imenso das autoridades, e perante estas situações que nos deviam obrigar a parar e dizer: “Mas brincar não é um património da humanidade?”. De repente, fica toda a gente a assobiar para o ar e há inúmeras crianças que têm trabalhos de casa no jardim infantil, não brincam a partir do momento em que entram no ensino obrigatório. Costumo pedir — era engraçado que tivesse o logótipo do Observador por baixo — que à entrada dos jardins de infância houvesse um letreiro muito grande a dizer assim: “É proibido ensinar a ler e a escrever no jardim de infância”. Não é por vontade das educadoras — as educadoras são um enclave de saúde mental que existe no sistema educativo –, mas é pela pressão das escolas e, às vezes, pela pressão dos pais. É bom que nós tenhamos uma regra….
E pela pressão da sociedade…?
Qual sociedade? A sociedade quer pessoas cada vez mais expeditas, cada vez mais autónomas, que saibam pensar melhor.
Aquilo que estamos a dar às nossas crianças, as ferramentas que lhes damos com a forma como a escola está organizada, são ferramentas que vão servir para quê?
Estava na esperança que não me perguntasse isso, porque aí eu ficava mais protegido. Não tenha dúvidas de que a escola é só a invenção mais bonita da humanidade. A família não é uma invenção da humanidade. É aquilo que resulta da nossa fragilidade humana e é uma solução brilhante, de inteligência. Mas a escola é uma invenção muito bonita da humanidade. Aquilo que eu acho arrepiante é que a escola, no século XXI, funciona com os mesmo princípios com que ela foi imaginada no século XIX. Acho até delicioso que, às vezes, as escolas digam assim: “Não, mas nós temos iPads e quadros interativos” e depois as crianças do século XXI não têm nada a ver com as crianças do século XIX e com as crianças do século XX. As crianças saudáveis aprendem do todo para a parte. A escola ensina-os da parte para o todo. As crianças, quando lêem um texto, ou vêem um quadro, interpretam primeiro e lêem depois, ou se preferir, interpretam em tempo real. O que é que a escola faz? Exatamente o contrário. A escola vai fracionando os saberes como se de facto a geologia, a biologia ou o português e a matemática fossem territórios à parte. Por favor! Quando alguém diz assim: “Amo-te Teresa!”, quando diz qualquer coisa que vem de dentro de si, isto é uma fórmula de síntese que vale tanto como uma resolução de uma equação de matemática. Nós podemos ensinar as crianças a pensar a matemática através do português e vice-versa. Tudo se mistura e o que é que a escola faz? Faz tudo em frações, como assim fosse aprender. Tenho medo que este tipo de escolas esteja a estragar as crianças contra a vontade dos pais, seguramente contra a vontade dos professores e portanto é na altura de nós, de uma forma…
Então porque é que nós não ouvimos os professores a falar disso claramente? E nem os pais… Tem experimentado ir a reuniões de pais nas escolas?
Tenho e até nem sou maltratado…
Nem eu, mas do que é que se fala? Disciplina? Notas? Da comida, normalmente fala-se imenso da comida, mas ninguém fala do tempo que eles passam dentro de uma sala de aula, quem é que contesta as aulas de 90 minutos?
É verdade, mas agora sem ser politicamente correto: acho que a comunicação social tem um papel muito importante a este nível, porque os pais não andam tão distraídos assim. Não andam distraídos. Agora, sejamos razoáveis. Quem anda distraído é quem no fundo tutela a educação. Faz sentido que nós hoje estejamos a formar licenciados em matemática, em biologia, em geologia, etc, e que eles nos próximos 55 anos se transformem em professores sem que se faça como se faz nas outras áreas?. Formações, exercícios, que se dêem ferramentas aos professores para que eles possam crescer de forma sustentada? Como é que é possível fazer reformas educativas que não pensam as crianças e, de repente, se esqueçam dos professores? Nós estamos num mundo, num país nomeadamente, em que os médicos podem ir a congressos durante o tempo de trabalho sem que isso conte para descontar nas próprias férias — porque toda a gente assume que é uma benção que eles desenvolvam recursos e competências –, mas os professores que querem fazer isso são um bando de malandros portanto, quando muito, pagam a formação e ao fim de semana. Nós desprezamos completamente a formação dos professores. Os professores passam a vida a dizer que adoram ser professores, mas estão cansados de ser professores porque eles são desconsiderados a torto e a direito.
Quem pensa a educação, peço desculpa, não percebo onde tem andado. É ou não é verdade que alguns colégios batoteiros põem tanto pó de arroz nas notas que as enviesam 5, 6, 7 e 8 valores? Onde é que têm estado as coimas para estes colégios? Qual é a posição pública dos cidadãos em relação a quem é batoteiro na educação dos filhos? Nenhuma. Está altura do Ministério da Educação, e já agora do sr. Presidente da República, que pode fazer um pacto de regime… eu não entendo o que é que tem de supérfluo os vários partidos sentarem-se com quem tem pensado a educação ao longo dos tempos e dizerem assim: “O que é que nós queremos da educação nos próximos 20 anos?”. Porque é que isto é atentatório daquilo que separa as opções ideológicas das pessoas? Não é. Nós temos porventura um modelo escolar que tem muito de século XIX, muitos professores que ainda estão muito mais do que eles desejariam no século XX e as crianças estão no século XIX. Como é que a educação pode funcionar assim, de maneira a que se adeque aos tempos que correm? Não se adequa. Se calhar há aqui muitos jovens jornalistas que quando chegam não são jovens jornalistas, são aristocratas. E nós dizemos assim: “Olhe, faça isso” e eles dizem assim: “Porque é que eu não fiz? Porque não me disse exatamente como é que eu havia de fazer”. O que é que se ganha com isto?
Há pouco mencionou que os pais devem ajudar os filhos a lidar com o erro. Como é que podemos ajudar as crianças a lidar com a frustração?
Frustando-as sempre que elas precisem de ser frustradas. Eu gosto muito quando os pais se chegam à frente e têm aquela frase que, de repente, parece ter-se tornado proibida: “Porque é que eu entendo que não deves fazer isso? Porque eu acho que não deves”. Mas se quer dois conselhos práticos, ponha as coisas assim: os pais bondosos deviam ser proibidos de explicar, de justificar e de negociar as regras com os filhos. Porque nós não ganhamos nada com isso. Os filhos, quando estão a olhar para nós, estão a medir-nos pelos nossos exemplos, portanto, se nós exigirmos em função dos exemplos que lhes damos, não percebo para que é que ainda assim temos de estar a explicar tudo ao pormenor, como se estivéssemos a pedir licença para sermos pais.
Segundo conselho: os pais estão autorizados a avisá-los duas vezes e estão proibidos de avisar três. Claro que qualquer criança saudável comporta-se como uma confederação sindical. Está a ver os sindicatos da função pública em relação aos direitos adquiridos? As crianças são assim. Se uma mãe chama oito vezes, uma criança saudável pensa assim: “Calma, para já nas oito vezes ninguém mexe. Depois, a coisa bem conversada quem chama oito, chama dez”. Prefiro que os pais avisem uma, avisem duas e à terceira se passem. E passarem-se é levantarem a voz, abrirem os olhos, respirarem para cima dele, explicarem onde pára a polícia e, se nos limites dos limites, tiverem de dar uma palmada no rabo para dizer assim: “Se eu tiver de te dar uma pequena dor passageira para te proteger de muitas dores pela vida fora faço”. Portanto, se nós introduzirmos alguma frustração em suaves prestações, acredite que as crianças aprendem a tolerar a frustração. É como as vacinas, se não as fizermos….
Vário leitores colocaram questões sobre os seus filhos adolescentes. Ou que se recusam a ir à escola, ou que apenas querem estar sozinhos, que não contam nada do seu dia, que se confrontam com os professores. Voltamos à adolescência, portanto…
Sem fazermos disto uma regra fechada, é muito bom que nós tenhamos a noção de que é muito difícil ser adolescente e, às vezes, é muito difícil ser filho e adolescente. Aos 12 anos, o corpo leva um safanão imenso, de uma forma porventura mais exuberante nos rapazes. Às vezes num ápice crescem 20cm, de repente ficam com o nariz maior que sei lá o quê, ficam com uma densidade de borbulhas por centímetro quadrado assustadora, as hormonas ficam completamente fora de controlo e até a oleosidade do cabelo parece ficar desgovernada e passam horas e horas a despentear-se para se esconderem atrás do cabelo. Mas a adolescência aos 12 nas raparigas não é melhor. Eu gosto mais do grupo dos rapazes porque, muitas vezes, têm uma linguagem imprópria para ouvidos de pais. Porque, às vezes, acabam à pancada, mas depois no fim da tarde jogam todos à bola e aquilo corrige-se. Enquanto muitas vezes os grupos das raparigas aos 12 são muito duros. O exemplo típico disso é o balneário depois da educação física, em que umas raparigas já têm caracteres sexuais secundários e outras estão muito longe de os ter. Depois há aquelas farpas, que fazem parte um pouco destas idades e que são muito esmagadoras.
Se puser a conta aos 14, as coisas são diferentes. Aos 14, a sexualidade bate na cabeça e é saudável que as crianças não saibam o que é que hão-de fazer com ela. Fico escandalizado com a maneira como se fala de sexualidade na escola. Dizer aos adolescentes que sexualidade é tão natural como a sede é das coisas mais obscenas que eu já vi. É estar a confundir porventura cio e sexualidade, que são coisas levemente diferentes. Mostrar aos adolescentes — houve uma altura que era o máximo — o coito dos hipopótamos, dando a entender que é uma coisa natural. Com todo o respeito pelos hipopótamos — que até têm alguns lados simpáticos –, tenhamos bom senso. A sexualidade desorganiza-os e é saudável. Apanha-os ali pelo oitavo ano. O terceiro ciclo já de si é muito exigente e muito desorganizador, portanto é natural que os adolescentes saudáveis constipem as notas no oitavo ano, porque não sabem o que hão-de fazer. E com uma agravante: de repente aparece uma mãe com um coração imenso, que abraça um filho como só as mães abraçam, e de um dia para o outro o filho vira uma tábua, naquele registo: “Agradecia que não me abraçasse”. Depois, os pais saudáveis fazem uma coisa que devia ser proibida: levam um filho até à escola, mas não é até à porta da escola. É até a um quarteirão antes para dar a entender que eles são autónomos. Aos olhos de quem?
E depois aos 16, a adolescência sobe um bocadinho à cabeça, porque estes solavancos já passaram e eles são donos do mundo. É normal que sejam donos do mundo, mas isso apanha às vezes a entrada no 10.º ano, que é quando os miúdos são geniais em setembro, porque têm ideia que já limparam as disciplinas que lhes davam dores de cabeça e, às vezes, em novembro já estão em pré-reforma em relação aos sonhos, porque as primeiras notas foram um desastre. Estes solavancos são saudáveis. Eu tenho medo que, às vezes, os pais confundam um adolescente triste com um adolescente deprimido, mas é bom que tenham uma noção que, às vezes, o corpo é um empecilho, portanto é normal que eles estejam muito zangados com o corpo e daí com a vida.
Agora, não faz sentido que os pais entendam que os adolescentes não gostem de ir à escola. Não é porque gostem da escola, é porque adoram os recreios e o caminho para a escola. É muito importante darem-se conta que se um adolescente diz “hoje não vou à escola”, isso nem é negociável. Sendo certo que o pai e a mãe têm de acender uns sensores para perceber o que se está a passar na escola, com os colegas ou com alguns professores, para que se chegue a um limite destes. Tenho medo que muitos pais vacilem e, às vezes, sou confrontado com adolescentes que não vão à escola há dois meses. Não pode ser. Significa que os pais estão ali num registo aflito, “tirem-me daqui, o que é que eu faço com isto?”. Tentando pôr algumas regras nisto…
Mas não é um sinal? Uma coisa é eles dizerem que a escola é uma seca, mas é diferente acordar e dizer “eu não quero ir”. Há aí qualquer coisa que não está certa…
Claro. Significa que há muitas coisas na escola que não estão a acontecer como deviam. Não vale a pena termos a ideia — voltamos à questão da Baleia Azul — que os miúdos que hoje são saudáveis, amanhã acordam divorciadíssimos da escola, sem que nada se tivesse passado. Ou é porque eles estão a ter resultados que estão muito longe daquilo que eles próprios desejariam, ou porque alguém lhes anda a infernizar a vida na escola, ou porque há um ou outro professor que tem uma química muito adversa com ele, tão adversa que às vezes se dão episódios muito infelizes que, às vezes, os pais só sabem dois ou três meses depois. Manda o bom senso que os pais, quando percebem que estamos com febre, é como outra febre qualquer. Ele está com febre de repente, eu não sei o que se passa, vai-se ao pediatra. Às vezes, quando a febre é alta a outros níveis, não é pecado que nós olhemos lá para dentro para perceber o que se está a passar de tão atípico assim. Que os pais fiquem certos que, ainda assim, não faz sentido que sejam complacentes com uma tentação que é saudável em todos os adolescentes, que é “eu nisto sou bom portanto vou investir nessa área, nesta não presto e nem sequer sei para que é que isto serve” e deixem que isto se vá sucedendo. Isto é como os slogans na política, repete-se meia dúzia de vezes e depois até parece um defeito de fabrico. Não é.
Em primeiro lugar, se têm dúvidas, devem esclarecê-las o mais depressa possível. Em segundo lugar, é proibido serem alarmados. Ou seja, não se esqueçam do nariz das mães em relação ao choro, é um bom indicador. Este equipamento não adormece com o crescimento dos filhos, apura-se. Os pais antes de irem a correr ler, devem-se escutar a eles próprios e já agora reunirem em conclave e decidirem o que é sensato. A seguir, têm de ter a noção que os adolescentes precisam de errar, precisam de ficar tristes e que, às vezes, isto que é vivido com algum alarme por parte dos pais são só fatores de crescimento, que se nós os gerirmos com serenidade, mas com firmeza, vale mais do que qualquer outra vitamina que eles possam ter.
Disse há pouco que as crianças são autênticas estruturas sindicais. Há vários conceitos como pequenos ditadores. Não queria aqui derivar num bacoco politicamente incorreto, mas pergunto-lhe se existem crianças más e se é possível atribuir maldade às crianças.
Existem crianças más, sim. Mas cuidado. Eu costumo chamar a atenção de que por trás de uma criança difícil está sempre um adulto em dificuldades, mas não vale a pena termos a noção de que as crianças más são uma espécie de geração espontânea para a qual os pais não contribuem. Mesmo que tenham contribuído por acidente, sem darem por isso, quase sem se aperceberem. Por outro lado, as crianças só são pequenas ditadoras quando os pais não são a autoridade que têm de ser. Às vezes os pais fazem lembrar este país, que produz muita legislação e que depois, quando se trata de a porem em prática, é um ‘Deus me Livre’. As crianças só são ditatoriais quando os pais se vão encolhendo para serem pais e isto pode acontecer a todos os pais. Não percam os pais de vista que todas as crianças amadas… aliás, todos nós quando somos amados somos um bocadinho egocêntricos. E isso não é obrigatoriamente mau. O egocentrismo devia ser como o sal na cozinha, quanto baste, nem demais nem de menos.
É evidente que muitos pais se vão encolhendo quando os filhos às vezes os magoam. Sejamos razoáveis: quando um filho magoa a mãe ou o pai com aquilo que diz, com o tom com que diz, com um esgar… a maneira como desafia e, às vezes, a maneira como está calado quando nós estamos a ralhar — que nós percebemos que não é um calado de quem está a pensar mas que é quase desafiante — os pais estão proibidos de avisar uma vez que seja. Têm de pôr uma coima nisto tudo. Acho que devia ser proibido os pais reagirem no impulso, porque nós somos animais de sangue quente. Quando reagimos no impulso, parecemos o Luís de Matos a tirar coelhos da cartola: “ficas sem isto, ficas sem aquilo”. Depois, a fúria passa, e parecemos o Governador do Banco de Portugal a fazer revisões em baixa. Zangarem-se no impulso não, mas não devem fazer aquilo que a maior parte dos pais fazem, que é ficarem tão magoados que nem sequer têm forças para se zangar.
Acho que a mãe e o pai, ao fim do dia, se um filho os magoa, devem pôr uma coima duríssima nisso. Isto é, vamos magoá-los onde mais dói. Ele magoou tanto a mãe e o pai que isto tem de ter uma coima exemplar: fica dois meses sem o telefone. Acredito que se os pais, dentro do que é sensato, forem firmes uma ou duas vezes, não vão precisar de serem duros outra vez. Agora, os pais não podem fazer aquilo que muitos outros fazem, que é varrer para debaixo do tapete. Ficam magoados, ficam zangados e não dizem. Vão acumulando e depois à sétima ou à oitava vez, por uma porcariazinha insignificante, zangam-se e não são justos quando se zangam nessas circunstâncias.
Acho que devia ser proibido de uma vez por todas continuarmos a repetir aquele slogan “as crianças são muito cruéis umas para as outras”. Aquilo que me parece é que as crianças são frontais. Os adultos são cruéis pelas costas, mas é ótimo que, de repente, repitam este slogan como quem diz “vejam bem do que elas são capazes”, porque nós ao pé delas damos-lhe dez a zero e isto é batotice. As crianças saudáveis não são nada cruéis umas para as outras. As crianças saudáveis têm direito a quotas de parvoíce e de estupidez dentro do que é razoável. As crianças saudáveis de vez em quando esticam-se e precisam da mãe do pai a dizer assim: “Proibido magoar os pais”. Se os pais fizerem isso, as crianças não se tornam pequenos nem grande ditadores. E as crianças más são más por tantos e tão graves maus tratos que manifestamente têm uma inveja muito grande daquelas crianças têm um pai e uma mãe a fazer de pais e até têm colo e tudo o resto que as crianças saudáveis têm.
Há muito que se diz que os infantários são infectários, mas mais recentemente o problema agravou-se porque apareceram realmente no país doenças até aqui adormecidas: sarampo, hepatite. Como é que os pais devem reagir a isto? Devem ficar ou não preocupados em relação à escola? A escola continua a ser um local seguro ou não? Qual deve ser a atitude dos pais perante estas notícias?
Os nossos filhos quando são pequeninos e ainda não entraram no infantário, vão por exemplo a um parque infantil. Ao irem a um parque põem as mãos no escorrega, no baloiço, e trazem para o corpo deles bactérias, vírus, fungos e outras coisas más. O intestino agradece e o sistema imunológico vai bem. Se reparar, eles quando fazem esses movimentos no espaço público estão em contacto com muitos agentes que os podem fazer adoecer e, ainda assim, adoecem menos do que quando entram no jardim de infância. É muito importante darmos conta que quando as crianças entram no Jardim de Infância ficam um bocadinho deprimidas e quando são obrigadas a dormir é um murro no estômago. Porque serem obrigadas a dormir no Jardim de Infância, é do género “e quem me garante que a seguir, enquanto estiver distraído, o meu pai e a minha mãe não se esquecem de mim e não me vêm buscar?”. Todos nós, quando nos deprimimos um bocadinho, o sistema imunitário vai à boleia. Algumas substâncias, vamos chamar assim, que fazem com que façamos mais quadros inflamatórios; o sistema imunitário parece uma rede de pesca, fica com mais aberturas, com espaços oportunistas, para que os mesmos agentes aos quais eles tinham reagido digam “é agora, está em condições de se atacar”. Isto faz parte do crescimento, faz parte de uma espécie de campanha de vacinação popular. Todavia, tenho muito medo daquilo que se está a passar em Portugal com o sarampo, e com uma certa deriva para o bacteriologicamente puro que não é verdade. Portanto, não consigo entender o papel das autoridades públicas a este nível.
Quer explicar um bocadinho melhor?
Das duas uma: ou as vacinas são um bem precioso que protege a crianças e não repugna que elas sejam obrigatórias, ou então, não o são. O que a mim não me parece razoável é que, por exemplo, em relação àqueles pais que são contra as transfusões sanguíneas, os serviços clínicos no limite, entendam que há um conflito de interesses diante do qual proteger a criança está à frente da vontade dos pais, nem que para tanto os médicos sejam protegidos por um aval de um procurador da república. Não entendo é que os pais, a pretexto do que for, entendam que se não querem vacinar, não vacinam, e de repente tenhamos o nível absolutamente preocupante de crianças em Portugal que têm um quadro clínico que, se fosse gerido com bom senso, certamente não teria a dimensão que neste momento tem. É aqui que eu acho que às vezes as liberdades individuais e o bem comum têm de se entender de uma vez por todas. O Estado, nesta gestão, tem de ser equilibrado. Não é de repente colectivizar os nossos filhos e decidir a torto e a direto o que é suposto fazer, mas por favor. Se o Estado entende que as crianças têm de entrar no ensino obrigatório, e quando não vão à escola aos seis e aos sete, acendem-se não sei quantos alarmes e as crianças são consideradas em perigo, juro que não entendo como há pais a não vacinar os filhos, que os expõem a perigos em consequência disso, que põem os outros em perigo por causa das opções muito duvidosas que eles têm e que isto não tenha consequências.
Mas os pais devem estar mesmo preocupados, então?
Há pais que, com todo o respeito pelas suas opções, entendem que vacinar não é uma questão prioritária. Porque senão onde é que há um ordenamento jurídico nisto tudo? Porque é que somos tolerantes com quem decide “vacinar não é fundamental” e de repente somos tão duros em relação aos pais que entendem que os filhos podem não ir à escola só porque sim, ou podem ter uma vida sexual precocíssima só porque sim. Nalgumas coisas o Estado diz não. Há um bem comum, tomando em consideração o supremo interesse das crianças, que deve ser protegido. E noutras coisas o Estado diz “no resto os pais decidem, mesmo que, porventura, as suas decisões ponham em perigo os seus filhos e outros meninos. Portanto, com muito bom senso mas com muita clareza, é evidente que o Estado é um reservatório de bom senso, espera-se. Ancorado numa lei que é, ela própria, um reservatório de bom senso. Não se entende que a determinada altura, em relação a isto, se fique no meio campo. Às vezes parece que quando não se quer decidir, faz-se mais uma comissão e se vai adiando, adiando, adiando, à espera que as coisas sejam decididas por si próprias.
*Esta entrevista foi feita em conjunto com todos os jornalistas do Observador e inclui também perguntas dos leitores.