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As mulheres só podem ir à escola até ao sexto ano, mas surgem escolas clandestinas

AFP via Getty Images

As mulheres só podem ir à escola até ao sexto ano, mas surgem escolas clandestinas

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Educação, emprego e agora habitação. Talibã aprofundam "apartheid de género" no Afeganistão em que 70 leis têm mulheres como alvo

Os talibã tomaram o poder no verão de 2021. Depois de 70 leis que têm as mulheres como alvo, agora o regime está a destruir bairros inteiros. Há milhares de desalojados.

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Uma mulher afegã de Cabul ganha entre um e três dólares por dia, fazendo serviços de limpeza porta a porta. O seu marido emigrou para o Irão à procura de melhores condições, mas, pouco depois de partir, cortou o contacto. Agora, ela não consegue pedir um apoio social junto dos serviços municipais: “Não nos deixam entrar”, relata. Procurava uma compensação que lhe tinha sido prometida, depois de a sua casa ter sido destruída pelo governo talibã, como parte de um “plano de modernização” da capital do Afeganistão. Esta mulher é uma de milhares de pessoas que ficaram desalojadas devido a este plano, que destruiu bairros inteiros de Cabul, como revelou revelou uma investigação conjunta de vários meios de comunicação, publicada esta segunda-feira pelo The Guardian.

O governo talibã destruiu mais de 155 hectares de casas na capital do país — o equivalente a 220 campos de futebol — entre agosto de 2021 e de 2024, concluiu a investigação. Os talibã chamam-lhe “programa de regeneração” e justificam-se com desejos de um planeamento urbano mais moderno, que substitua as ruas estreitas e as “instalações ilegais” por vias largas, trazendo a capital histórica para o século XXI. Na verdade, a “modernização” visou de forma desproporcional os distritos mais pobres, as minorias étnicas e as mulheres. Exemplo disso é o caso desta mulher, ouvida pelo jornal Zan Times, que não pode entrar nos serviços municipais por não estar acompanhada por um homem.

Esta regra faz parte das “leis da moralidade”, um conjunto de 70 medidas aprovadas ao longo dos últimos três anos, que obrigam as mulheres a usar véu completo, as proíbem de estudar depois do sexto ano e as impedem de frequentar muitos espaços públicos, entre outras proibições. As regras têm vindo a ser impostas desde que os talibã tomaram o poder em agosto de 2021, depois da retirada das tropas dos Estados Unidos do país. Antes disso, o Afeganistão tinha estado mergulhado numa guerra que durou duas décadas.

Apesar de o seu regime nunca ter sido considerado uma democracia durante o período antes da guerra de 2001, o regresso ao poder dos talibã 20 anos depois acelerou crises económicas, humanitárias e políticas e afastou as mulheres da esfera pública, de forma quase total. “Os direitos das mulheres são a linha que atravessa todas as crises que o Afeganistão enfrenta hoje”, resume o perfil de género do Afeganistão de 2024, um relatório das Nações Unidas que analisa os países de uma perspetiva de género. Alguns destes pontos têm sido repetidos ao longo dos três anos: a falta de acesso à educação, ao emprego, ao lazer. Mas a estas crises soma-se agora uma crise habitacional sem precedentes.

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Bairros demolidos e apoios sociais que não chegam. As mulheres pagam o preço da “regeneração” da habitação

“As instalações ilegais foram limpas e destruídas e atualmente o terreno está sob autoridade do município de Cabul, que implementará os seus planos de desenvolvimento. Estas terras foram confiscadas há anos por oportunistas e usurpadores”, escreveu o município de Cabul numa publicação no X, no início de agosto.

Os relatos dos habitantes locais contrariam a versão de “oportunismo” e explicam aos jornalistas que se tratavam de casas onde, há várias gerações, viviam famílias que agora não têm meios para pagar renda noutros locais. “Nem temos tendas, só temos abrigos feitos com pedaços de plástico”, afirma um residente. “Primeiro, disseram-nos que nos iam compensar e não nos iam deixar sem abrigo, mas depois de as casas terem sido demolidas, ninguém quis saber de nós”, relata uma outra mulher, na mesma situação. Para obter a compensação, os habitantes devem dirigir-se aos serviços municipais. A família desta mulher tentou, mas desistiu, depois de uma série de rejeições, quando já não conseguia pagar o bilhete do autocarro.

Aqui, surge o primeiro obstáculo, que afeta desproporcionalmente as mulheres: os facto de alguns agregados familiares serem liderados por mulheres, como é caso da primeira mulher que o Zan Times ouviu, cujo marido emigrou. A família de Maryam está numa situação semelhante. Maryam perdeu o emprego no verão de 2021, devido às leis dos talibã que a impedem de trabalhar em locais públicos. A família inteira depende agora do salário do marido, que é sapateiro.

Mas as mulheres não são as únicas afetadas por esta medida. “Mulheres, crianças e velhos estavam a suplicar para que parassem a destruição até conseguirmos encontrar um abrigo, mas eles não ouviram”, relata um outro habitante, que, depois de fugir do Paquistão, viveu durante uma década no distrito 22 de Cabul, caracterizado por ser uma das maiores povoações informais — ou seja, bairros ilegais. Neste distrito, há relatos de duas crianças que foram mortas, depois de as suas casas terem sido destruídas enquanto elas ainda estavam lá dentro.

O distrito mais afetado foi o 13, que perdeu a maior área de casas residenciais, onde viviam principalmente pessoas da minoria étnica Hazara. Os distritos com maiorias Hazara e Tajique (outra minoria étnica no Afeganistão), estão entre os mais afetados, segundo os dados recolhidos pela investigação, a partir de imagens de satélite. Vincent Dupin, coordenador de um grupo de trabalho da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) na região, explica como a destruição destas povoações informais afeta mais as mulheres: “Muitos agregados familiares destas povoações informais são liderados por mulheres, que estão entre os grupos mais vulneráveis e enfrentam restrições nos seus movimentos e na sua habilidade de trabalho”, resume.

epa11324546 A burqa clad Afghan woman carries a child on a road in Kabul Afghanistan, 07 May 2024. Australia announced on 03 May it had committed to offering aid of AUD 492 million (USD 323 million) to reduce poverty in countries of the Indo-Pacific region through a fund from the Asian Development Bank. Australia has defended placing emphasis on mitigating the effects of the climate crisis and on the inclusion of new mechanisms to ensure the arrival of aid to people in Afghanistan, Myanmar and the Rohingya ethnic minority displaced in Bangladesh, with special emphasis on women and girls.  EPA/SAMIULLAH POPAL

Os agregados familiares liderados por mulheres são mais afetados pela destruição de povoações informais

SAMIULLAH POPAL/EPA

Para além do impacto direto da destruição de habitações, Dupin destaca a importância da comunidade nestes grupos vulneráveis. “Quando estão deslocadas, as mulheres perdem acesso a serviços essenciais, como saúde, recursos familiares e educação para as suas crianças. Estes despejos também afetam as redes de apoio comunitário, cruciais para a estabilidade e resiliência das mulheres”, argumentou, em entrevista ao Zan Times.

As famílias em “insegurança de subsistência” e os pais que preferem alimentar os rapazes. A bola de neve da situação das mulheres que cresce com o desemprego, a falta de acesso à saúde e à educação

Tal como explica Dupin, uma crise, neste caso a da habitação, cria um gatilho que se vai fazer sentir noutras dimensões na vida das mulheres. Tomando como exemplo as histórias das duas mulheres que foram despejadas, pode olhar-se para a dimensão do emprego. Logo no verão de 2021, as mulheres afegãs foram impedidas de trabalhar fora de casa — um ano depois, o número de mulheres a trabalhar no setor público tinha caído para cerca de 6%, segundo relatou a diretora do gabinete da região Ásia Pacífico do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP).

Muitas mulheres passaram a trabalhar a partir de casa, e em agosto de 2021, a UNDP contava mais de 75 mil pequenos negócios, geridos por mulheres. Mas o empreendedorismo feminino não é suficiente para pôr termo à crise económica que afeta o Afeganistão: a economia afegã contraiu em cerca de 27% e 69% da população vive em “insegurança de subsistência”, ou seja, dificuldades em assegurar capacidades básicas, como alimentação ou saúde.

O número sobre para quase 100% quando se olha apenas para agregados familiares liderados por mulheres, segundo dados do Programa Alimentar Mundial (WFP). As famílias tomam “medidas drásticas” e a bola de neve cresce. E, quando estas medidas são tomadas, quem sofre são muitas vezes as meninas. É o caso de Fatima. Com apenas dois anos e meio, encontrava-se internada pela terceira vez quando o The Guardian falou com os seus pais num hospital de Cabul, no início deste ano. Sofria de malnutrição pois a família também não tinha dinheiro para comprar comida. Os enfermeiros no hospital relataram que os casos de subnutrição são mais comuns em meninas, pois, quando a comida escasseia, os pais privilegiam alimentar os filhos rapazes.

epa10846273 Afghan female pupils attend school on the eve of UNESCO Literay Day, in Kabul, Afghanistan, 07 September 2023. The Taliban government, after seizing the power in August 2021 following the withdrawal of the US troops, banned girls and women in Afghanistan from attending secondary schools and universities.  EPA/SAMIULLAH POPAL

Segundo as leis da moralidade, as meninas só podem frequentar a escola até ao sexto ano

SAMIULLAH POPAL/EPA

Maryam, uma outra menina ouvida pelo The Guardian, foi vítima mais direta destas “medidas drásticas”. Aos 14 anos, os pais de Maryam casaram-na com o filho do seu senhorio, em troca de um poço e painéis solares que não conseguiam pagar. Esta família afegã faz parte de um grande grupo de refugiados que regressou ao país, depois de terem emigrado para o Paquistão. A “venda” de Maryam a troco de bens essenciais — como define a Human Rights Watch — impede-a de continuar a estudar. “Sou boa a ler e a escrever. Quando ouvi que íamos voltar ao Afeganistão fiquei feliz, mas preferia viver no Paquistão — lá podia continuar a minha educação pelo menos”, lamenta.

A UNESCO estima que 1,4 milhões de meninas tenham sido impedidas de continuar a estudar devido às leis impostas pelos talibã. Hoje em dia, isso representa 80% das raparigas em idade escolar no país. Ainda assim, em algumas regiões há quem resista e organize escolas clandestinas.

“Não posso ser humana aqui. Não há nada”, dizem algumas. Outras tentam resistir ao “apartheid de género” com gestos no dia a dia

Apesar dos obstáculos e desafios, o silêncio perante a opressão continua a não ser opção para muitas mulheres. Uma fotogaleria reunida pelo The Guardian ao longo de dez semanas no Afeganistão, publicada na passada quinta-feira, retrata as mulheres “como participantes ativas nas suas vidas” e não como “vítimas passivas”. Exemplo disso são, precisamente, as escolas clandestinas. A presença de escolas nos distritos depende, principalmente, do comandante talibã e da sua capacidade de “olhar para o lado” perante as leis quebradas. Em muitos casos, o seu silêncio é suficiente para criar estas escolas.

Outras formas de resistência incluem atos “absurdamente” simples que se configuram “radicais” por serem proibidos. Se os talibã proíbem a educação, surgem escolas clandestinas; se proíbem a presença de mulheres em parques, fazem-se lutas de bolas de neve no quintal; se as proíbem de cantar em público, reúnem-se para cantar os parabéns em privado.

Zahra, uma ativista ouvida pelo The Guardian, cedeu ao peso da responsabilidade. Durante muito tempo organizou protestos online: mulheres enviavam vídeos sem o hijab, o lenço islâmico obrigatório no Afeganistão dos talibã, mas apareciam de cara tapada, para não serem reconhecidas. Zahra reunia os vídeos e publicava-os na internet. Mas, meses depois de ter falado com o jornal britânico, escolheu o exílio. “Não há forma de ficar aqui, estaria a perder tempo, a perder a minha vida. Não há melhorias possíveis. Não posso ser humana aqui. Não há nada”, remata.

A partir de fora, a comunidade internacional continua a fazer condenações aos talibã. Mas ao fim de três anos o regime parece ter sido normalizado a nível internacional, tanto que os talibã estão a participar esta semana numa grande cimeira das Nações Unidas, a COP29, em Baku, Azerbaijão — é a primeira vez que marcam presença desde que tomaram o poder.

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As Nações Unidas têm-se focado no combate à violação dos direitos das mulheres no Afeganistão

AFP via Getty Images

Ainda assim, a preocupação com as violações de direitos humanos continua a existir. As Nações Unidas e a Amnistia Internacional apelaram, em junho deste ano, à codificação no Direito Internacional do “apartheid de género”. “É verdadeiramente vergonhoso que o mundo não tenha reconhecido a opressão e domínio sistémicos com base no género como um crime ao abrigo do Direito Internacional e não tenha respondido adequadamente à sua gravidade”, criticou Agnès Callamard, a secretária-geral da Amnistia Internacional. “Gerações e gerações de mulheres e raparigas têm sido sujeitas a violência. Um número incalculável foi morto e a muitas mais foi negada a dignidade”.

Allison Davidian, representante da UN Women no Afeganistão, faz eco das suas palavras e acrescenta que “a tendência mais gritante é o apagamento das mulheres afegãs da vida pública“. “A discriminação contra mulheres e meninas é resultado de décadas de desigualdade de género institucionalizada, que pioram o impacto das restantes crises”. A pressão internacional contra o regime talibã continua, apesar de tímida, mas não faz surgir oportunidades de mudança. Durante os últimos três anos no poder, o domínio dos talibã — e os seus ataques aos direitos das mulheres — não têm dado sinais de abrandamento. Pelo contrário, o seu regime continua a aprofundar-se, como comprovam as políticas “de planeamento urbano” levadas a cabo em Cabul este ano.

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