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A viagem da música brasileira, de África para o litoral sul-americano, das penumbras do navio para os pés assentes na terra, em comunhão com o tropical indomável, é a mesma dos Orixás, deuses que, tal como os sambistas, sobreviveram clandestinamente a moldar o Brasil, a transformar o sol e o mar em cantiga, a desgraça em lamento, um povo alegre, que disfarça e chora.
A natureza é refém dos caprichos destes Orixás, entidades únicas, galantes e femininas, como a rainha do mar Iemanjá, ou Obá e Oxum, deusas anteriores a outras soberanas de nome singular, Gal, Bethânia, Elis, Elza. E tal como esta, que ainda vão reinando, outras vão conquistando lugar na fila da frente da música brasileira, mesmo (ou sobretudo) num ano em que o Brasil como país feminino se viu posto em causa graças à vitória eleitoral de um candidato que deixou em suspenso tudo o que não é homem heterossexual. Quem são elas?
Luiza Lian, delicada paulista
“Os Orixás fazem parte da minha espiritualidade, da religiosidade brasileira, mas mais importante, são símbolos e mitologias que permeiam a minha visão de mundo e compreensão sobre as coisas”, explica ao Observador Luiza Lian, a compositora que versa sobre este ano de eleições e cataclismos a cada esquina, uma das mulheres que conseguiu transformar este período conturbado na melhor música popular brasileira de 2018. “Cada Orixá e entidade são um mundo completamente diferente, morte, nascimento, amor, prosperidade, mistério”, continua, a lembrar que não existe uma conspiração de mulheres cantoras — uma por todas, todas por uma — existem artistas que finalmente tiveram espaço e investimento para gravar, sozinhas, acompanhadas, sem amarras. “Eles não apontam um caminho a seguir, eles estão pelo meu caminho.”
Azul Moderno é o terceiro álbum de Luiza Lian, uma miúda paulista que começou delicada, com genica, parte discreta da editora RISCO (de O Terno, entre outros), até se revelar uma corajosa exploradora sonora em Oyá Tempo, e agora, finalmente, uma compositora de mão cheia. “O Azul faz mesmo essa ponte entre os dois primeiros álbuns”, confirma. “Começou a ser gravado de uma forma bem simples, voz, violão, baixo e bateria. Depois que gravámos, falei pro Charles, ‘Ok, agora você pega essas gravações e destrói, transforma isso em um novo disco’”. O produtor Charles Tixier, da banda Holger, com uma perninha de Tim Bernardes, converte singelas canções em arranjos nervosos, dançantes, sob a direção de Luiza, que reinventa um género e comprova o molde inesgotável que é o ritmo brasileiro.
[“Azul Moderno”: de Luiza Lian:]
“Quando comecei a compor esse disco, senti que dialogava muito com a música feita no Brasil na segunda metade do século XX, MPB, Tropicália e samba rock com uma certa nostalgia” diz, realçando “a ideia de futuro que eles tinham nesse passado tão recente e como esse futuro retorna seu olhar para a modernidade”. O samba rock — ou quando Jorge Ben provou ao mundo que era possível fazer da viola uma pandeireta, ouvir as cordas a saltitar abafadas no instrumento oco — ganha uma segunda vida no suingue (como dizia Jorge Ben) de “Geladeira”, o embalo de “Larinhas” ou “Azul Moderno”, a canção que garante que vai “tocar o meu próprio cordão”. A ideia continuar a revitalizar esta alma achada em sambalanço (outra de Jorge Ben).
“Mira” é um deleite lisérgico, a voz que “é uma onda”, a girar paralela aos Orixás, alinhada pela terra e mar, mesmo que esta compositora esteja a morar numa cidade com 12 milhões de habitantes. “Essa contradição é muito estrutural no meu trabalho e na minha vida mesmo”, confessa. “É sobre isso que tenho a dizer, essa visão muito singular de quem tenta se conectar com os rios mortos e sufocados da própria cidade, com as estrelas, mesmo quando a poluição não permite enxergar”. As peripécias citadinas também estão aqui, em “Vem Dizer Tchau”, a música chiclete com sensibilidade, a melodia de piano abafada pela vibração de baixo, e melhor, o dedilhar ligeiro transformado em rock com asas, são quatro partes numa uma única canção, de uma única mulher. Aliás, no fundo, talvez seja mais, são mil mulheres, como canta em “Mil Mulheres”, a música que transforma uma noite corriqueira de São Paulo num tremendo orgasmo.
[“Mil Mulheres”, de Luiza Lian:]
Ava Rocha não facilita
Dorival Caymmi é o provável culpado de popularizar os Orixás na música popular, e essa tradição baiana, de mantras em linguajar afro brasileiro, prossegue hoje nas canções, na vida, de Ava Rocha, outra cantora que moldou a natureza de 2018 em proveito próprio. “Dorival é Dorival, que é a Bahia, o mar, o útero, a música, a memória, o Brasil, enfim tudo isso, a criação, obatalá, forte raiz, ancestralidade, me conecta com meu pai”, responde a cantora sobre a música “Dorival” do seu álbum Trança, a mencionar o pai, Glauber Rocha, mestre do Cinema Novo. Outra homenagem é “Assumpção”, apelido do compositor marginal Itamar Assumpção, que representa “um Brasil que veio da África, não que romantizou voltar, que carrega um conhecimento profundo e também uma revolta profunda”.
Ava Rocha não facilita. Ava nunca facilitou, sequer o nome da cantora é de digestão tranquila, Ava Patrya Yndia Yracema, complicada sucessão de consoantes e título do álbum anterior, um estranho e extraordinário conjunto de canções, a equilibrar uma personalidade irreverente com uma cantora plena na tradição MPB de amores arrebatados. “Eu imaginava uma pangeia, retrançada, cujos fios eram os músicos, os compositores, as vozes, meus amigos e interlocutores de várias partes, unindo, trançando poéticas de um Brasil latino-americano universal”, reflete a cantora sobre o novo álbum, a unificação de diversas partes de um mesmo corpo mutável, hipnótico, feito de samba e ruído. “Queria que nessa pangeia coubesse o sonho, o amor, a política, a poesia, a bruxaria, o ardor, a saudade, a memória, a febre e o frio, a neblina, a morte”, apresenta, acrescentando “e que fosse popular e experimental ao mesmo tempo.”
“Periférica” é idiossincrático como Jards Macalé, um gingar indescritível dentro da “cabeça esfera” de Ava, que vive “fechada nessa massa cinza”, um espaço privado onde existe um espelho da “dimensão exata para o culto do ego e para sentir tesão”. “Por natureza, eu sou experimentadora, alquimista, montadora, poeta, cozinheira”, justifica, a reiterar a importância de Negro Leo nestas melodias de laboratório. “Além de compositor, é músico e colaborador na direção musical”, e marido, e pai da sua filha, e um dos principais cientistas loucos da canção brasileira, podia ter acrescentado. A intérprete da vanguarda, seja em “Patrya” ou “Joana Dark”, convive com a cantora de paixões, de pessoas que se abraçam porque se amam e têm frio de manhã.
[“Joana Dark”, de Ava Rocha:]
“Boogarins, Negro Leo e eu, começamos a nos declarar, uns aos outros, admiração e identificação, depois eu e os Boogarins nos conhecemos pessoalmente em Nova Iorque e o santo bateu forte”, recorda Ava sobre a origem de “João Três Filhos”, canção flutuante de Dinho, vocalista dos Boogarins, outro continente que compõe esta nebulosa pangeia, a florescer para os ouvintes mais insistentes. “Amo ter a música do Dinho, e a presença simbólica e afetiva dos Boogarins nessa trança, representa o trançado das nossas vidas”.
A Carne Doce de Salma Jô
“Brincadeira” é outra composição com o toque repentista de Dinho, e desta vez, não foram necessárias declarações de amor para unir Boogarins a Carne Doce, duas bandas que são pilares do novo rock brasileiro, duas cartas fora de baralho, a brincar às guitarras em Goiânia, meca das vacas e sertanejo. A última vez que falamos com Salma Jô, a vocalista e letrista performática de Carne Doce, defendia de unhas e dentes a sua posição como mulher em frente a uma banda, perguntava se já estávamos cansados da sua voz, porque “O tempo todo um timbre feminino é/ Pra maioria algo enjoativo”. Agora, lasciva, selvática, com collants de rede fluorescentes, deixou para trás o confronto de Princesa e, como diria Anitta, está a rebolar bem na sua cara.
[“Brincadeira”, de Carne Doce:]
“Pagámos os custos do [álbum] Tônus com o edital, e isso nos deixou bem mais tranquilos para termos um momento sem shows, dedicados à composição, sem sofrermos a instabilidade de renda”, indica Salma ao Observador, a salientar a importância do programa de apoio à gravação da Natura, marca de cosméticos que é protagonista nesta história da música independente brasileira. Luiza Lian, Mariana Aydar, Tássia Reis e a pernambucana Lia de Itamaracá, aos 74 anos, são os nomes fortes para o próximo edital da Natura. Quando Carne Doce entra em estúdio, bebem da fonte que permanece inalterável desde o início da banda, o registo agudo de Salma, que arrasta o resto, floreado pelas linhas graciosas de guitarra, um progressivo acumular e libertar de tensão. Mas não, desta vez a receita tinha de ser diferente.
“Fiquei com ressaca da forma como o Princesa foi revendido como um álbum de luta ou denúncia somente, fiquei com ressaca de ter soado limitada a um discurso, que nem é o do feminismo exatamente, que é amplo, plural e complexo, mas ao discurso mais superficial e marketeiro de feminismo, e acho que parte do que passava pela minha cabeça durante o Tônus era justo atenuar o que soasse panfletário, e continuar o que sinto que faço melhor, que são letras sobre personagens e sentimentos dúbios, contraditórios, vulgares, tiranos, ridículos, egoístas”.
Confortável, com a banda recostada, Tônus é um necessário regresso a casa, a calma depois da tempestade, a debitar sobre as neuroses de viver junto, o sexo (“Amor Distrai”) e mentiras (“Besta”), os pequenos apocalipses, desabafos de quem pensa “Já não sou mais gostosa/Você goza triste em mim” (“Comida Amarga”) e, no fim, o amansar do turbilhão, as pazes (“Já Passou”). “Muitas dessas canções são inspiradas nessa dinâmica, e no meu casamento com o Mac mesmo”, confirma Salma sobre o marido e compositor, a figura austera e harmoniosa que segura esta banda em palco. Outra inspiração é o corriqueiro, o miúdo, os rituais femininos, as metamorfoses adolescentes de “Blush nas bochechas e na zona T” a “Perfume nas orelhas” e a pressão que qualquer mulher brasileira deve sentir ao chegar a época dos biquínis ousados:
“Uma menina
Naquele short
Que mostra a bunda
Tal criatura inunda
A minha solidão”
[“Tônus”, de Carne Doce:]
Simplesmente Anelis
Outro patrocinado pela Natura é Taurina, terceiro álbum, e signo astrológico, de Anelis Assumpção, filha do mesmo Itamar que foi homenageado este ano por Ava Rocha. “O disco se chama Taurina, mas nasceu pisciana cúspide com aquário”, esclarece Anelis, enquanto tentamos decifrar esta explicação através das memórias longínquas dos Cavaleiros do Zodíaco. “A relação taurina está sobre meu ponto de vista do animal que carrego como signo, a vaca, a mulher, o leite, o alimento, prazeres de vénus”. Prazer é a palavra-chave para decifrar estas cantigas leves, brisas de batida suave, onde Anelis esconde um “mergulho interior”, de dimensão “ancestral, circular e adiante”, como explica na canção que abre o disco.
[“Mortal à Toa”, de Anelis Assumpção:]
À primeira vista, Anelis passa os dias em temperaturas maravilhosas, longe do agreste frio português. Porém, os amargurados com disposição de perfurar esta alegria, encontram por debaixo da camuflagem tropical uma transcrição de metáforas e trocadilhos do quotidiano, onde o prazer toma a posição central. “Taurina é um signo regido por vénus, este planeta comanda essas sensações em nós, de alguma forma mais instintiva, trago esses lirismos de forma inconsciente”, continua na sua auto-análise em formato mapa astral. “Gosto de observar o ser taurina em cada pessoa, porque o desejo e os prazeres são do ser humano, taurina apenas revela.” E revela mesmo, o regalo de comer e ser comido, a coexistir o amor dócil com uma fortaleza feminina que é um corpo de mulher, “sólida e sozinha”, de coração complexo.
O universo é uma mulher, e no seio está “o mundo inteiro”, representado pela capa do disco, uma ilustração de Anelis em tronco nu. “A lembrança de que o peito feminino não pode jamais ser exposto”, justifica sobre a capa. “Que os mamilos femininos são vistos com vulgaridade, que um peito nu constrange, que a natureza é tolhida pela figura masculina do homem.” Uma figura masculina presente é Itamar, o incendiário de Beleléu, Leléu, Eu, compositor de “Receita Rápida” que fecha o disco. “Em toda a obra do meu pai você pode notar semelhanças na forma de escrever, uma certa ironia no texto, este ponto em sua obra me influencia porque eu me comporto assim na vida”, defende. “Porém, as duas obras caminham paralelas, essa intersecção entre nós está para além do que criamos.”
[“Receita Rápida”, de Anelis Assumpção:]
“Não temos influência nenhuma fora do nosso nicho”
E o elefante na sala, que anda aos trambolhões a derrubar a mobília, omnipresente na internet, televisão, missa, até na hora sagrada, durante a bola? “A eleição de Bolsonaro é um trauma”, admite Salma sobre o presidente recém eleito do Brasil, infamemente reconhecido por comentários controversos, como quando disse que não violaria a colega deputada Maria do Rosário porque “ela não merece”. “A eleição democrática — com votos de pessoas que amamos e que nos inspiram os valores humanos — de um presidente que é declaradamente mesquinho, vulgar, que defende abertamente a tortura, a milícia e a ditadura, é um trauma”, reforça, aludindo ainda à classe artística que se posicionou mais defensiva: “Alguns artistas saíram dessa experiência sentindo-se ainda mais necessários, para mim ficou ao contrário, é ainda mais claro que nós não temos influência nenhuma fora do nosso nicho, não nos levam a sério como parte da sociedade”.
Anelis, a profetiza da fortaleza femenina, acredita numa unificação entre as mulheres artistas como contra-ataque para qualquer vicissitude. “As mulheres estão compondo mais, interpretando suas próprias obras”, diz-nos. “Se vê bem menos algo corriqueiro de poucos anos atrás que era um cantora procurar compositores para conceber um álbum”, indica sobre a prática habitual na MPB, acrescentando que, “salvo poucas exceções, as cantoras estão escrevendo dominando o caminho que querem seguir em seus discos, escolhendo os produtores, o repertório, e procurando tocar com instrumentistas mulheres”. Ava Rocha, outra profeta, também não cede um centímetro, e acredita que, “2019 será um ano que nossa força se multiplicará ainda mais, na contramão não vamos retroceder”
Luiza Lian, assim como Anelis, Ava Rocha, e Carne Doce, é uma artista que amadureceu ao seu terceiro disco, atingiu um auge criativo que permite compreender o que significa, se alguma coisa, isto de ser mulher e cantora popular, ou sequer se esta discussão tem algum cabimento. “Poetas e artistas brasileiras sempre existiram, mas elas não tinham muito espaço para se apresentar, especialmente dentro da indústria musical”, diz, antes de desembainhar a espada: “Você acha que existe uma mensagem unificada entre os artistas homens? Por que seria diferente com as mulheres? Nossas vozes estão soando mais agora, mas nas artes não teremos superado o patriarcado enquanto nosso trabalho continuar sendo visto como arte de mulher”.