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Por um túnel secreto. Trazido por adolescentes da República Federal Alemã (RFA) numa visita de estudo. Ou em cima de um veículo militar, à descarada. Estas foram apenas algumas das formas que os cidadãos da República Democrática Alemã (RDA) usaram para sair do país, ao longo das quase três décadas em que a Alemanha partida em duas era o exemplo vivo de uma Guerra Fria que dividia o mundo. A cidade de Berlim, então, tornou-se o maior símbolo dessa divisão, com um Muro de 155 quilómetros de comprimento a partir uma cidade e a separar dois modos de vida.
Atravessar o Muro de Berlim foi um desafio a que muitos se propuseram, mas nem todos conseguiram. Ainda hoje, 30 anos depois, não é certo quantos foram: desde os 139 apontados por alguns académicos até aos 483 estimados pelo museu do Checkpoint Charlie, o debate sobre quantos terão morrido a tentar passar o Muro ainda decorre.
Certo é que houve quem tenha sido bem sucedido. E, entre esses, há histórias dignas de filme: têm suspense, por vezes terror, quase sempre lágrimas. A diferença é que estes homens e mulheres são bem reais. E, graças ao seu engenho, à ajuda de estranhos ou com uma ponta de sorte, conseguiram mudar as suas vidas —e sobreviver para contar como foi viver dos dois lados do Muro.
Konrad Schumman. O soldado que pulou o arame farpado (1961)
Foi o primeiro que arriscou. A imagem, captada pelo jornalista da RFA Pieter Liebing, representa o momento e tornou-se um ícone. Konrad Schumann, um soldado da RDA, saltou por cima do Muro quando este era ainda apenas arame farpado e entrou de imediato para a História. A fuga, contudo, não o conduziu à felicidade.
O Muro estava em construção há apenas três dias. Seria por volta das quatro da tarde daquele dia de agosto quando o soldado de 18 anos contemplou a possibilidade de saltar por cima do arame farpado. Mais tarde, diria que foi o horror de ter visto uma criança da RDA a ser arrastada de volta de Berlim Ocidental para o lado Oriental que o fez pensar em dar o salto. Os gritos e gestos de algumas do lado ocidental, a incentivá-lo, fizeram o resto. “Consegui trocar a minha metralhadora carregada por uma vazia antes de saltar. Assim o salto foi mais fácil”, contaria anos depois. “Depois a arma caiu com estrondo no chão. Se estivesse carregada, provavelmente teria disparado.”
A passagem para a Alemanha Ocidental, contudo, não apagaria a infelicidade que manchou a vida do jovem Schumann daí para a frente. Estabeleceu-se na Baviera e passou a trabalhar numa fábrica da Audi. Casou-se. Pelo meio, foi recebendo cartas da família que lhe pediam para regressar — que, soube mais tarde, eram ditadas pela Stasi. A vida de Konrad ficaria marcada pelo infortúnio: primeiro o alcoolismo, depois a depressão. Acabaria por suicidar-se aos 56 anos, em 1998.
Harry Deterling. Comboio para a liberdade (1961)
Seis meses depois de Konrad, outro habitante de Berlim Oriental protagonizaria uma fuga mediática. Harry Deterling, um engenheiro ferroviário de 27 anos, engendrou uma fuga que o levaria não apenas a ele e a sete membros da sua família para a RFA, mas também outras 25 pessoas que escolheu para irem no comboio a que chamou “o último comboio para a liberdade”, de acordo com o que revela Frederick Taylor, autor do livro The Berlin Wall: A World Divided (em Portugal O Muro de Berlim, ed. Tinta-da-China). Outros sete passageiros, incluindo o condutor, nada sabiam.
O plano foi posto em marcha a 5 de dezembro. Chegados à zona da fronteira que dividia a linha ferroviária dos dois lados de Berlim, Deterling entrou em ação: carregou no acelerador, desligou o travão de segurança e subiu para a carruagem que transportava o carvão que alimentava a própria locomotiva, forçando assim o comboio a entrar na zona de Spandau, em Berlim Ocidental. A maioria dos passageiros baixou-se, com medo de que os guardas atirassem sobre eles. Nada aconteceu e foram recolhidos em segurança.
Os sete passageiros que não estavam a par do plano decidiram regressar para o lado da RDA — com exceção de uma rapariga de 17 anos, que quis decidiu ficar.
Wolfgang Engels. Como roubar um carro do Exército para derrubar o muro e conseguir passar (1963)
Wolfgang tinha 19 anos e era um civil a trabalhar para o Exército da RDA quando tomou a decisão. Dois dos seus amigos foram detidos por suspeitas de terem tentado atravessar o Muro quando, na verdade, estavam apenas a tentar encontrar um café onde decorreria um concerto. A detenção e a reação da sua mãe — que, ficaria a saber anos mais tarde, trabalhava para a Stasi — deixaram-no surpreendido: “Foi isso que me chocou, que alguém pudesse aderir tão firmemente à ideia de que ‘o Partido tem sempre razão'”, diria à edição alemã do site The Local.
Daí a planear a fuga, foi rápido. Na véspera do 1.º de Maio, dia de grandes festejos em Berlim Oriental, Wolfgang pôs o plano em ação. Como trabalhava para o Exército, teve de conduzir nessa noite para transportar alguns oficiais. Quando estacionou perto de outros veículos militares, pôs os olhos num PSW 152, uma espécie de jipe militar de grande porte, cuja condução já tinha testado com a ajuda de alguns amigos soldados.
Quando ficou finalmente sozinho, subiu para cima de um PSW 152 que estava vazio. De seguida, decidiu ir diretamente contra o muro — que, à altura, ainda estava em fase inicial de construção. Ao sair do carro, foi atingido a tiro por alguns soldados, mas continuou a caminhar. Rapidamente algumas pessoas do lado Ocidental foram ajudá-lo e levaram-no para a segurança de um bar. “A primeira coisa que ele disse foi ‘deem-me um conhaque ou uma cerveja'”, contou um norte-americano, que o tinha ajudado, aos jornais do seu país no dia seguinte. Nos dias seguintes, Wolfgang recuperaria dos ferimentos de bala no hospital.
Joachim Neumann. Um dos construtores do Túnel 57 que voltou para ir buscar a namorada (1964)
A história de Joachim Neumann é uma das mais conhecidas entre todos os que atravessaram o muro — e há boas razões para isso: poucos se podem gabar de ter conseguido fugir não uma, mas duas vezes da RDA.
Neumann era um estudante de engenharia civil de 21 anos quando tomou a iniciativa de passar para o outro lado do Muro. Com a ajuda de alguns amigos da Alemanha Ocidental e um passaporte falso, conseguiu embarcar num comboio para Berlim Ocidental fazendo-se passar por suíço. Estávamos em 1961.
A família sabia do plano de Joachim, mas este não se sentiu capaz de o contar à namorada, Christa. Com esse peso na consciência, juntou-se a alguns colegas num plano que, à primeira vista, parecia de loucos: construir um túnel que passasse por debaixo do Muro para ir buscar pessoas à Alemanha de Leste. “Escavávamos 24 horas por dia, sete dias por semana, em turnos de 12 horas durante vários meses”, contaria o próprio anos depois ao jornal Guardian. Um cano furado complicaria os planos e anteciparia a data prevista de saída: apenas 29 pessoas foram resgatadas nessa tentativa inicial. Christa estava de férias, longe de Berlim, e não pôde ser uma delas.
Rapidamente o grupo começou a construir um outro túnel, que ganharia o nome de Túnel 57, por ter sido o canal por onde 57 cidadãos da RDA passaram para chegar à Alemanha Ocidental. Durante a sua construção, Joachim informou a namorada da nova tentativa: “Enviei-lhe uma mensagem para que soubesse do túnel, com um pequeno urso de peluche que ela me tinha oferecido, para que ela soubesse que era eu.” À segunda, seria de vez. Foi apenas em 1964 que Joachim atravessou de volta o Muro, por baixo, para ir buscar a namorada. No ano seguinte casaram. Viveram juntos durante 35 anos.
Bernd Bergamnn. O mecânico trazido por adolescentes da RFA (1984)
Estávamos a apenas cinco dias do Natal quando um mecânico de 25 anos conheceu um grupo de raparigas da Alemanha Ocidental que estavam na RDA, numa visita de estudo. A história não se passou em Berlim — portanto o Muro não foi literalmente “atravessado”, mas abre-se a exceção devido ao insólito do acontecimento.
O Die Welt conta a história: numa estação rodoviária, o jovem Bernd Bergmann reparou na matrícula do autocarro que transportava os alunos da escola. MR, de Marburg. O local era-lhe particularmente caro, por ter sido o sítio onde cresceu. Mas, quando fez dois anos, os pais mudaram-se para Erfurt. Com a construção do Muro dois anos depois, a família ficou assim presa no Leste, isolada dos restantes familiares. E o seu fascínio com o Ocidente foi crescendo.
O encontro com a turma de Marburg e a conversa com algumas raparigas do grupo sobre o seu passado — bem como a vigilância da Stasi, a que sabia estar sujeito — comoveram as adolescentes. Dali até algumas engendrarem um plano, não tardou: porque não levar Bergmann consigo no autocarro de volta para o Ocidente? Parecia de loucos, mas foi o que acabou por acontecer. O jovem Bernd seguiu escondido no porta-bagagens.
Se à vinda as adolescentes tinham estado a cantar Duran Duran, à volta foi a vez de Tina Turner. Na paragem para almoçar, um polícia aproximou-se. Uma das jovens assustou-se: “Ó meu Deus, fomos apanhadas”, recorda-se de ter pensado, como conta numa entrevista ao Guardian. Falso alarme: era só um aviso por estarem mal estacionados.
A viagem decorreu sem incidentes. Depois de atravessada a fronteira, todos respiraram de alívio. “Só os gritos estridentes das meninas é que me trouxeram a consciência de volta”, contaria Bernd anos depois, ao Bild. Estava a sangrar, porque tinha mordido os lábios com os nervos. As estudantes abriram champanhe vermelho da Crimeia, que compraram previamente para festejar. Os outros alunos bateram palmas e houve até um professor a chorar.
A reação na escola, contudo, não seria tão positiva. Considerou-se que as adolescentes colocaram os restantes colegas em risco e foram obrigadas a cumprir serviço cívico. Mas Bernd nunca esqueceu o gesto. Contactado pelo Guardian, anos depois, confessou ainda estar grato. Quando lhe perguntaram porque quis atravessar a fronteira, respondeu “Ich wollte Freiheit” — “Eu queria liberdade.”
A família Spitzner. O pai e a filha que foram os últimos a atravessar o Muro (1984)
Tudo aconteceu apenas três meses antes de o Muro cair. À altura, porém, Hans-Peter Spitzner não tinha como o saber. A visita da Stasi à sua casa meses antes tinha-o deixado e à mulher, Ingrid, apavorados. Hans-Peter foi detido por três horas e foi-lhe dito que seria vigiado daí para a frente. O seu crime? Não ter votado em nenhum dos candidatos para o sindicato dos professores a que pertencia, como conta o Independent. Todos eram, naturalmente, nomeados pelo Partido Comunista.
Por isso, a família tomou a difícil decisão de tentar pular para Berlim Ocidental. Eis que, inesperadamente, a mulher Ingrid foi autorizada a viajar para a Áustria para ir visitar a tia. O casal combinou então tentar encontrar-se no Ocidente, mais tarde. Hans-Peter tentaria fugir com a filha Peggy, de sete anos.
Para isso, aproximou-se de vários soldados estrangeiros na zona do Checkpoint Charlie. “Aproximei-me de cinco ou seis pessoas no primeiro dia, dez no segundo, outras cinco no terceiro. Franceses, britânicos, americanos… Todos diziam que era muito perigoso”, recordou mais tarde Hans-Peter ao Mirror. Até que encontrou o norte-americano Eric Yaw, que lhe disse que sim: pai e filha iriam assim escondidos na bagageira do carro do soldado, enquanto este atravessava o Checkpoint Charlie para o lado Ocidental.
Hans-Peter disse à filha que o que se passava era um jogo de escondidas para poder “ir ter com a mamã”. O soldado americano combinou que iria pôr Pet Shop Boys a tocar no carro até estarem em segurança do lado ocidental, para que pai e filha percebessem que não podiam fazer barulho até deixarem de ouvir a música. Caso contrário, se os guardas suspeitassem de algo, podiam pedir para abrir o porta-bagagens.
Mas, no final, tudo correu bem. “A partir de agora és um membro da minha família”, disse Hans-Peter a Eric, para lhe agradecer pelo que tinha feito. Três meses depois, já reunidos com Ingrid, os três membros da família assistiram pela televisão à queda do Muro de Berlim.