Durante longas décadas, o Espírito Santo foi desterrado do nosso país. Tenho a honra de presenciar o momento em que o seu solo é beijado pelo apóstolo da espiritualidade. Seja bem-vindo à Checoslováquia, Santidade!”. Foi com estas palavras que Václav Havel, o primeiro presidente democrata da Checoslováquia, recebeu em Praga, em 1990, São João Paulo II. A revolução democrática que derrubou o comunismo no Leste europeu começa a 9 de Novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, e termina sete semanas depois, com a eleição de Václav Havel, o primeiro presidente democrata da Checoslováquia.

Karol Wojtyla foi, segundo a CBC News, uma das mais influentes personalidades do século XX, o grande protagonista da libertação dos países do Leste, como o próprio Gorbachev reconheceu. Mas, nestes trinta anos da queda do muro de Berlim, poucos foram os que o referiram. Mais uma vez, a história foi objecto de um revisionismo que, por conveniências laicistas, higienicamente retirou desta efeméride o seu principal artífice. Esta subtil censura recorda o despudor com que, à medida em que alguns caíam na desgraça do regime soviético, eram também apagados das fotografias oficiais.

Há já alguns anos, uns pais de uma estudante liceal de Lisboa contaram-me que uma sua professora tinha pedido aos alunos que escolhessem uma personalidade que se tivesse destacado pela sua defesa dos direitos humanos, que a estudassem e expusessem na aula. A filha optou por São João Paulo II, cuja vida e obra expôs. A apresentação foi impecável, mas a docente deu-lhe uma má nota, com a desculpa de que a personagem escolhida nada tinha a ver com os direitos humanos! Os pais, chocados com a ignorância, ou má-fé, da dita professora, recorreram para as autoridades académicas do liceu, que corroboraram o parecer, obviamente mais ideológico do que científico, da mestra.

A ação de Karol Wojtyla, como campeão dos direitos humanos, não tem o seu início em 1978, quando é eleito para a cátedra de Pedro, como sucessor de João Paulo I, o papa que o foi só durante um mês. Já como padre, bispo e cardeal num país comunista, em que a religião católica era obviamente perseguida, o futuro São João Paulo II destacou-se pela defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos.

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Durante a invasão nazi e comunista da Polónia, São João Paulo II fez uma clara opção pela liberdade e independência do seu país, mas de uma forma original. Com efeito, o jovem Karol Wojtyla optou pela resistência civil, cultivando a língua, a cultura e as tradições polacas. É sabido que, tanto os nazis como os comunistas, pretenderam não só a ocupação territorial daquele país, que dividiram entre si, como assassinar a sua alma colectiva, profundamente católica e patriótica.

Curiosamente, na invasão da Polónia, os dois principais totalitarismos do século XX, agiram de forma idêntica, o que justifica que, trinta anos após a queda do muro de Berlim, o parlamento europeu tenha equiparado, o comunismo ao nazismo. Se Churchill foi o grande vencedor do nazismo, São João Paulo II foi quem derrotou o comunismo na Europa: são, sem dúvida, as duas grandes figuras europeias do século XX.

No encontro de João Paulo II com as autoridades checas, que teve lugar no castelo de Praga, Václav Havel, também ele um lutador pelos direitos humanos e vítima da repressão comunista no seu país, manifestou a alegria que sentia ao receber o irmão eslavo que lutou para reconquistar a civilização do espírito, contra o materialismo dialéctico do regime comunista: “Santidade: Num dos seus poemas, questiona: ‘Pode a História fluir contra a corrente da consciência?’ É óbvio que (…) a História não pode fluir sempre contra a consciência. Tinha razão, como também a tinham aqueles que não perderam a esperança (…)”.

Na sua saudação ao Papa São João Paulo II, o presidente checo enumerou as diversas qualidades em que o recebeu: como sucessor de Pedro, como eslavo e filho da irmã nação polaca, como “mestre e companheiro de luta” pela tolerância e liberdade e, por último, “como escritor, intelectual e homem de cultura que é”.

Dou-lhe as boas-vindas, em primeiro lugar e mais importante, como Chefe da Igreja Católica; e alegro-me, juntamente com todos os católicos, de que tenha aceite o nosso convite.” Mas a Vaclav Havel não lhe escapou o carácter ecuménico do ministério petrino, na medida em que o Papa é, para as questões dos direitos humanos e de moral natural, mestre de “todas as pessoas de boa vontade”: “Dou-lhe as boas-vindas como cristão, cuja visita é aclamada não só pelos católicos, como por todos os cristãos. E não só eles: estou na verdade firmemente convencido de que todas as pessoas de boa vontade se unirão à alegria que os cristãos sentem pela sua chegada”.

Karol Wojtyla foi o primeiro papa oriundo de um país comunista. Esta foi também a razão do atentado que, por um triz, não pôs termo à sua vida: o KGB adivinhou que um Papa polaco era um perigo para o comunismo da sua pátria e que, libertada esta, seria inviável manter o pacto de Varsóvia. A história deu-lhes inteira razão, mas não lograram a eliminação física de João Paulo II, graças à intercessão de Nossa Senhora de Fátima, a quem o Papa baleado sempre atribuiu o dom da sua sobrevivência a esse atentado. Por este motivo, um significativo troço do Muro de Berlim está exposto na Cova da Iria, como exemplo da misteriosa relação entre as aparições marianas e a ‘conversão’ da Rússia e dos restantes países da órbita soviética.

Esta vertente, absolutamente original, de João Paulo II, foi também especialmente referida pelo Presidente da Checoslováquia: “Também lhe dou as boas-vindas, Santidade, como eslavo que entende a nossa língua e que a fala; recebo-o como egrégio filho da irmã nação polaca”. Mas Karol Wojtyla, não era apenas um cidadão de um país comunista, era também, aliás, como o próprio Vaclav Havel, um resistente e um lutador pela liberdade e pelos direitos humanos. “Talvez porque experimentou pessoalmente o caráter desumano de um sistema totalitário, vinculou o seu pontificado à ideia dos direitos humanos. A nossa luta pela liberdade também nasce desta grande ideia, e a nossa política atual reconhece-a. Portanto, dou-lhe as boas-vindas também como nosso mestre e companheiro de luta, na medida em que é alguém que aprecia o valor da paz, da tolerância, da liberdade e do respeito mútuo.

Escritor de reconhecido mérito, Havel não podia esquecer que estava a receber um literato e poeta: “dou-lhe as boas-vindas como escritor e intelectual, como homem de cultura que é. A nossa revolução tem uma clara dimensão cultural, com a qual se irá sentir próximo (…). Estou persuadido de que a sua visita nos fará recordar a todos que, a fonte genuína da autêntica responsabilidade humana, é uma fonte metafísica. A sua visita far-nos-á recordar (…) o horizonte absoluto para o qual nos devemos orientar; essa misteriosa memória do Ser em que cada um dos nossos atos é recordado e, nela e por ela, adquirem por fim todo o seu valor. Neste encontro com Vossa Santidade, reconhecemos que, sobre o nosso trabalho quotidiano, ergue-se o que, desde tempos imemoriais, se tem chamado Céu. Mais e mais pessoas se estão a aperceber de que o futuro da raça humana sobre esta Terra depende cada vez mais daqueles que conseguem não pensar somente neles próprios, mas atuar considerando o bem dos outros. Sim, o futuro da humanidade apoia-se hoje sobre a civilização do espírito, da responsabilidade e do amor”.

Nos compêndios dos alunos do ensino secundário, não deviam faltar referências a Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandhi, Winston Churchill e Karol Wojtyla. Ao receber este último, em 1990, em Praga, Vaclav Havel disse: “Não estou seguro de saber o que é um milagre. Apesar disso, atrevo-me a dizer que, neste momento, participo num milagre: a um país devastado pela ideia do confronto e pela divisão, chega o mensageiro da paz, do diálogo, da tolerância, da estima e da tranquila compreensão, o mensageiro da unidade fraternal na diversidade”.

NOTA. No passado dia 26, o Expresso lançou, numa livraria lisboeta, o “Novo Testamento para crentes e não crentes”. A sessão foi presidida por Henrique Monteiro, Graça Morais e José de Guimarães e também estiveram presentes, entre outros, Pedro Proença e António, o veterano cartoonista do Expresso. Como autor de um dos prefácios – Clara Ferreira Alves assina o outro – coube-me dizer, por amável convite de Henrique Monteiro, autor da introdução, umas breves palavras, que foram de agradecimento e louvor. Resta-me informar que este feliz encontro entre a palavra de Cristo e a beleza das obras dos artistas que colaboraram nesta magnífica iniciativa editorial, já está disponível nas bancas e desejar que a sua leitura seja proveitosa para quantos tiverem a dita de, por seu intermédio, se aproximarem de Jesus, caminho, verdade e vida.