Enfrentar diferentes tipos de terreno e condições climáticas, ter de lidar com o cansaço, manter a concentração, encontrar o caminho certo no meio de um deserto, correr contra o relógio e garantir que o veículo chega ao final da competição. Estes são alguns dos desafios que um piloto enfrenta ao disputar um rali. Há, no entanto, outra dificuldade que poucas pessoas imaginam: a solidão. É o que descreve Elisabete Jacinto, piloto de camião todo-terreno, com diversas participações no Rali Dakar entre 1998 e 2009. “Lembro-me que quando era piloto de moto, sentia-me muito sozinha e a solidão é um sentimento esmagador”, explica ao Observador.

Segundo a piloto do Montijo, esta sensação de solidão desaparecia ao fim de cada competição, quando percebia que “tinha muita gente a apoiar” para superar todos os problemas. Desde 1992, quando disputou a sua primeira prova, o sentimento tem desaparecido gradualmente, sobretudo depois de ter decidido trocar a mota pelo camião. Desde a mudança, tornou-se a segunda mulher a terminar o Rali Dakar em camião, em 2004. Atualmente, é a única piloto a disputar regularmente as principais provas de rali em África ao volante do veículo.

Apesar de ser uma pioneira no desporto e contar com um apoio cada vez maior, considera-se uma “pessoa absolutamente normal”. “O facto de ter sido uma das primeiras fez com que eu achasse, ao longo do tempo, que haveria outras mulheres que seguiriam o meu exemplo, mas acabei por ficar sozinha. Mas não acho que sou nenhuma super-mulher, sou uma pessoa absolutamente normal, que não tem nenhum super-dote”.

A carreira de Elisabete iniciou-se nas motas, tendo competido até 2001 em diversas provas, como o Campeonato Nacional de Todo-o-Terreno, o Rali da Tunísia e o Rali Dakar. O que começou como um hobby, que partilhava com o marido, tornou-se uma ocupação e um desafio físico e mental. “A mota é um veículo muito físico, onde fazemos 100 quilómetros e ficamos nas últimas e depois temos de fazer mais 200, 300, 400, 500 quilómetros, mais dois, quatro, seis, quinze dias, e temos de fazer estas estas etapas todas já sem energia”, reconhece.

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(MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR)

Elisabete relembra que “não havia muitas raparigas” naquela altura e que a sua mota era “muito difícil” de conduzir. “Hoje em dia, todas as raparigas conduzem motas mais pequenas, de 400 centímetros cúbicos, que só precisam de autonomia para 200 quilómetros. Tinha de ter uma autonomia de 300, a minha mota era uma 660, era muito grande, muito pesada, não chegava com os pés no chão, então ter uma mota era muito difícil”, relatou.

Apesar dos bons resultados obtidos ao longo dos anos (entre alguns infortúnios), começou a sentir que não estava a progredir como piloto. Também já lhe estava a pesar a dificuldade em conseguir patrocínios e apoio financeiro para continuar no desporto. “Consegui fazer progressos até um certo nível e depois não consegui chegar a um nível que gostava de atingir e percebi que não ter a mesma musculatura que os homens era um impedimento para conduzir uma mota que pesava 200 quilos. Percebi que havia um limite, que não conseguia ir mais longe”.

Em 2001, no rali Paris-Dakar, o carro de apoio que seguia a sua equipa pisou uma mina, na fronteira de Marrocos com a Mauritânia, o que causou ferimentos aos seus tripulantes. Com o incidente, Elisabete perdeu parte do seu equipamento e teve de realizar todas as tarefas de assistência da sua mota. Com muitos atrasos e dificuldades técnicas, conseguiu terminar a prova, mas a sucessão de complicações dentro e fora das provas fez-lhe tomar a decisão de parar de competir, após cruzar a meta. “Um dia, fiz uma balanço e tomei esta decisão extremamente difícil”, comentou.

Da “escola moto” para as quatro rodas

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(MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR)

Elisabete Jacinto chegou a pensar vender as motas para voltar a ter uma vida “normal”. Mas a paixão pela velocidade no deserto falou mais alto. “Perguntei-me a seguir: ‘por que eu não faço de camião?’. Camião é muito giro, nunca nenhuma mulher fez. Imaginei-me dentro de um camião a saltar as dunas, como via na televisão, e aquela imagem fez tanto sentido que eu disse para mim própria que achava que era capaz de fazer”.

O próximo passo foi tirar a carta de condução para veículos pesados, em outubro de 2002. Em janeiro de 2003, já estava a disputar o seu primeiro Rali Dakar de camião. Para Elisabete, a mota foi a “escola” que a preparou para pilotar camiões no deserto. “Digo sempre que consigo fazer o que faço com o camião, porque a mota me deu um traquejo enorme. Se eu não tivesse começado com a mota, se calhar já tinha desistido de fazer o rali com o camião”, assegura.

Naquela prova, foi forçada a abandonar no final da 7ª etapa por problemas mecânicos, mas decidiu terminar a prova, fora da classificação, para dar apoio técnico a outras equipas e ganhar experiência com o veículo. A partir desse ano, os resultados começaram a aparecer. Entre as provas no seu currículo, estão o Rali Dakar, o Rallye Aïcha des Gazelles (exclusivo para mulheres pilotos), o Rali de Marrocos e o Rali da Tunísia. Todos em África. “O único lugar onde um camião pode circular à vontade é em África. Este é um veículo grande e pesado e precisa de espaço para circular, portanto o deserto é o lugar por excelência para este tipo de veículo”.

Em 2009, o Rali Dakar passou a ser disputado na América do Sul. Naquele ano, a piloto teve de abandonar a prova após um incêndio destruir o seu veículo na sequência de uma colisão com um buggy, devido à falta de visibilidade. Esta foi a sua última participação na prova rainha do todo-o-terreno. “Fiz um ano e encontrei um rali com características totalmente diferentes daquelas que tinha em África e não era mais aquele rali que me tinha feito sonhar e trabalhar durante todos os anos”, explicou.

A volta à África entrou no Africa Eco Race, prova criada em 2009 para manter as competições de rali em África, seguindo a tradição do Rali Dakar. “Fiz a opção de voltar ao Africa Eco Race, que é uma prova recente, que não tem o mesmo prestígio e nome, mas é aquilo que era o Dakar antes, é aquelas zonas de deserto, sem ninguém, difíceis, com o piso muito variado, onde nós temos que nos bastar por nós próprios”.

Em sete participações no Africa Eco Race, conseguiu terminar a competição cinco vezes entre os três melhores da secção camião.

Nos seus quase 20 anos a disputar provas no deserto, destaca um episódio marcante. “Lembro-me que partiu um eixo do camião, na Mauritânia, e ficamos no meio do deserto duas noites e três dias à espera que nos fossem buscar, tínhamos comida, mas não tínhamos água, estávamos todos chateados e desiludidos com a situação, e começava a ser preocupante porque o camião-vassoura [camião que recolhe os competidores com problemas no deserto] nunca mais passava ao pé de nós para nos buscar. E, de repente, coisa rara: começou a chover no meio do deserto. Lembro-me que meus companheiros de equipa foram buscar as caixas de parafusos, despejaram tudo para recolher água”, relata, ainda incrédula com a sua própria história.

Criatividade made in Portugal

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(MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR)

Elisabete Jacinto promoveu, na última sexta-feira, uma reunião na herdade Monte das Gamas, em Coruche, para que amigos, patrocinadores e a imprensa pudessem ter contacto com o novo camião com o qual vai competir esta temporada.

O veículo foi recentemente equipado com um motor de 830 cv, novas peças e uma nova imagem para a equipa. A piloto explicou a diferença entre o seu camião e um camião “normal”: “Fizemos-lhe alterações para o tornar adaptado à competição, como pôr mais um tanque de combustível, alterar as molas, amortecedores, substituir o volante por um mais pequenino, já alterei a coluna de direção, construí uns apoios para a coluna de direção e uma caixa de carga mais ligeira. São todas alterações que fazemos para tornar o camião mais competitivo”, contou.

A equipa de Elisabete instalou uma câmara subjetiva, na parte frontal do camião, para registar como o veículo supera as curvas e a vegetação do terreno, a mais de 120 quilómetros por hora.

Elisabete disse que todas as alterações que fez no camião a fazem sentir como se fosse um projeto pessoal, fruto da sua “criatividade”. “Às vezes, temos de fazer moldes em papel para criar uma peça nova”, disse, orgulhosa. “Não sou destes pilotos que veste um fato de competição no dia em que a corrida começa”.

Entre todas as componentes e partes do camião, há um par de objetos que se destacam por não ser algo esperado no veículo: pás. “Lembro-me que houve uma etapa na Mauritânia, onde eu e os meus parceiros tivemos de cavar durante quatro horas. Foi um grande desgosto que apanhei”, relembra.

O camião é da marca alemã MAN, mas a maior parte dos seus componentes são feitos em Portugal. “Isto é uma das coisas das quais me orgulho”, relata.

A piloto vai estrear o novo camião no Africa Eco Race a 31 de dezembro, onde espera terminar no pódio. Estão previstas ainda participações no Libya Rally e no Rali de Marrocos, em 2017.

Questionada sobre como avalia a participação de portugueses em provas de rali, lamenta que a crise tenha diminuído a importância do Campeonato Nacional de Ralis, a principal competição de ralis em Portugal. “Tivemos em Portugal um dos melhores campeonatos a nível mundial, com um parque de automóvel excelente, com pilotos excelentes, depois veio a crise e deitou tudo abaixo. As corridas começaram a ter menos participantes e ficou tudo um pouco mais calmo”, descreveu.

O camião de Elisabete Jacinto por dentro

Atualmente, Elisabete dedica-se exclusivamente à pilotagem, mas já foi professora de geografia. ” A geografia ajudou-me a perceber muito bem os sítios por onde passo e os segredos daquele terreno. O conhecimento de tudo o que eu tinha, da formação do deserto e das dunas, de que lado [uma duna] era dura ou mole e alguns aspetos relacionados à orientação vieram daí”.

E o que a motiva a enfrentar anualmente as dificuldades do deserto a bordo de um camião? O “grande desafio”. “Temos de encontrar soluções para os nossos problemas, temos que ser fortes quando temos vontade de ser fracos, temos de ir encontrar forças onde já não temos mais, quando já andamos de rastos, porque andamos há dez, quinze dias a esforçar-nos, a dormir mal. Este é o grande desafio, de perceber que afinal conseguimos fazer muito mais e muito melhor do que aquilo que a gente pensava que era possível”.

Aos 52 anos, não pensa parar e espera que a sua carreira sirva de exemplo para outras mulheres. “Gostava que o meu exemplo servisse de incentivo para que outras mulheres se lançassem não só para os desportos motorizados, mas para qualquer outro projeto da vida que queiram fazer, que ambicionam e que tenham sonhado concretizar”.