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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Emergência nacional ou desastre regional? Gestão das inundações em Valência tornou-se arma de arremesso político e atrasa auxílio

Desde que Valência foi inundada que se discute a quem competia lançar alertas e liderar buscas. Poder central e regional jogam ping pong de culpas e atrasam auxílio. Afinal, a quem cabia fazer o quê?

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Siga aqui o nosso artigo em direto sobre as cheias em Espanha

De um lado as autoridades espanholas, as regionais e as centrais, a garantir que mobilizaram esforços “desde o primeiro momento” da tragédia que arrasou Valência nos últimos dias. Do outro, os valencianos, os que dizem ter recebido os alertas da Proteção Civil tarde demais, os que se sentiram abandonados pelas autoridades e todos os que agora lidam com as perdas materiais e humanas — mais de 210 — depois de ter chovido em poucas horas tanto como num ano na região valenciana. E pelo meio o Rei, a pedir ação do Estado “na sua plenitude” e compreensão com as pessoas que perderam tudo.

Muitos culpam o poder político espanhol pela demora no envio de ajuda para as zonas mais afetadas pela DANA (sigla para Depresión Aislada en Niveles Altos), auxílio que acabou por ser colmatado, nos primeiros dias do rescaldo da tragédia, pelas centenas de voluntários que se deslocaram até Valência, com muitos a chegarem ao local pelo próprio pé.

A indignação destes muitos fez-se notar, pela ação de alguns, nos incidentes que se registaram este domingo em Paiporta. Pedro Sánchez , o Rei Felipe VI e a rainha Letizia foram apupados (o presidente do governo foi mesmo o alvo de varas e outros objetos arremessados por pessoas furiosas e alguns deram pancadas e pontapés no carro em que seguia) durante a visita oficial à região afetada pelo desastre natural. Revoltados, os presentes garantiam que um e outro têm responsabilidade nas consequências devastadoras que a tempestade provocou em Valência, já que deixaram a região à sua sorte, sem assumir responsabilidade nacional pelo desastre.

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Na mesma linha, sucedem-se os pedidos de demissão de Carlos Mazón, presidente da Generalitat valenciana, acusado de agir tarde demais para dar o alerta que só chegou à população quando a grande maioria já tinha a vida colocada em risco e dificilmente podia fugir das casas e ruas que se inundavam a grande velocidade.

Os jornais, como o maior diário da Catalunha, chegaram a noticiar que Mazon apagou um tweet  das 13h14 de terça-feira onde dizia que, de acordo com a previsão, a tempestade ia deslocar-se “em direção à Serranía de Cuenca” e que se “esperava que por volta das 18h00 horas a sua intensidade diminua no resto da Comunidade Valenciana”. Segundo o El diario.es, este tweet foi apagado por volta da meia noite, depois de a catástrofe em curso se tornar visível nas redes sociais, mas houve quem o conseguisse recuperar.

Mazon terá tardado não só em dar o alerta, como em pedir e aceitar ajuda. Há mesmo um tweet dos bombeiros de Bilbao a dar conta disso mesmo.

Quem devia afinal ter lançado os primeiros avisos, o poder central ou regional? Deveria ou poderia Pedro Sánchez ter-se colocado à frente do presidente da região? As questões que se levantam são mais que muitas na tentativa de justificar a mobilização insuficiente das autoridades e equipas de busca em regiões de Valência que ficaram praticamente abandonadas depois de serem destruídas pela força das águas.

Há quem caminhe horas para ajudar os afetados pelas cheias. Voluntários tentam compensar inação das autoridades em Valência

Sucederam-se as queixas de povoações que durante dias não tiveram qualquer ajuda a não ser de voluntários. A surpresa de um bombeiro francês (o Presidente Macron ofereceu logo ajuda) ao chegar a uma localidade na sexta-feira, Alfafar, e perceber que a sua equipa era a primeira ajuda no local, foi muito partilhada nas redes sociais.

Quando e como chegaram os primeiros avisos do perigo da tempestade?

A Agência Espanhola de Meteorologia (AEMET) tem um sistema de alertas por cores — as do semáforo — tal como acontece em Portugal com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Os critérios seguidos são os europeus e foi através deles que, nos dias anteriores à madrugada de 29 de outubro, aquela em que mais choveu em Valência, foram acionados vários avisos de diferentes níveis, não apontando os primeiros para o nível de maior perigo provocado pela  forte precipitação (os primeiros alertas são mesmo de dia 24).

Na tarde de terça-feira, o Centro de Coordenação de Emergências do governo de Valência publicou diversos avisos nas redes sociais que davam conta das primeiras consequências da chuva intensa na região, incluindo inundações de grande dimensão, e das centenas de chamadas que eram feitas para o número de emergência. Mesmo assim, ainda não tinha sido feita uma comunicação direta aos cidadãos

O mais grave foi divulgado às 7h36 da manhã de terça-feira. De cor vermelha, dava conta do “risco extremo por fenómenos meteorológicos incomuns de intensidade excecional e com um nível de risco para a população muito alto”. Foi publicado no site e redes sociais da AEMET e, talvez por isso, não tenha tido o impacto necessário na população de forma a que se apercebesse do real perigo que se aproximava.

Na tarde de terça-feira, o Centro de Coordenação de Emergências do governo de Valência publicou diversos avisos nas redes sociais que davam conta das primeiras consequências da chuva intensa na região, incluindo inundações de grande dimensão, e das centenas de chamadas que eram feitas para o número de emergência. Mesmo assim, ainda não tinha sido feita uma comunicação direta aos cidadãos, como informa o El País, que fez uma cronologia dos alertas dirigidos à população nas horas que precederam a tragédia em Espanha.

Só às 20h03 — quatro horas depois de o serviço de emergência revelar meio milhar de chamadas e um vídeo em que se via a destruição que a água estava a provocaré que a Proteção Civil, sob as ordens da Generalitat Valenciana, lançou um SMS geral, enviado a toda a população, que pedia que fosse evitado “qualquer tipo de deslocação na província de Valência”. Para muitos foi tarde demais. Relatos recolhido pelo El País contam que, quando o aviso chegou aos telemóveis, muitas pessoas já tinha “água pelo pescoço” ou viam-se já obrigadas “a subir a árvores” para se salvar, como demonstraram os muitos vídeos partilhados nas redes sociais.

Carros empilhados, ruas cheias de entulho e estações de metro submersas. As imagens do rasto de destruição em Valência

Quem tinha responsabilidade de lançar o alerta à população valenciana?

Segundo Rubén del Campo, porta-voz da Agência Espanhola de Meteorologia, sob a tutela da administração central espanhola, é da responsabilidade da agência a emissão dos avisos — “a matéria-prima”, como lhe chama — para que depois a “Proteção Civil de cada comunidade realize os seus procedimentos e lance essas mensagens para os telemóveis dos cidadãos na área através do sistema ES-ALERT”, afirmou, citado pelo El País.

Ou seja, logo na manhã de terça-feira tinha sido emitido o primeiro aviso vermelho que dava conta do risco para a região de Valência pela AEMET. A partir daí a responsabilidade de alertar os cidadãos passava a ser de âmbito regional e deveria ter sido materializada, mais cedo, numa mensagem de texto recebida no telemóvel de cada habitante de Valência.

Segundo Carlos Mazón, presidente da Generalitat valenciana, depois de às 7h30 da manhã o AEMET ter lançado o alerta de nível vermelho, “as primeiras medidas foram tomadas”. No X, garante que o governo regional agiu sempre de acordo com “a informação disponível e com os últimos relatórios que eram enviados pela AEMET”. Mas o SMS geral para que as deslocações fossem evitadas na zona de Valência e com o alerta para o perigo iminente na região só chegou aos telemóveis mais de 12 horas depois.

Na manhã desta quarta-feira, numa entrevista à rádio Cope, Mazón apresenta outras razões para ter ordenado o envio do SMS tão tarde. Disse que, se o aviso não foi enviado mais cedo foi porque a Confederação Hidrográfica desativou o alerta hidrográfico “três vezes; à uma, às três e às quatro horas” e só às 18h45 — ou seja, mais de uma hora antes de a mensagem ser enviada para os telemóveis das pessoas — é que se revelou a gravidade da situação, com precipitações de “até 1.700 litros” na zona de Utiel e Requena.

Só no nível três de emergência, que nunca foi acionado, é que a "condução das operações é transferida do governo regional para o governo nacional". Passando para este nível de maior gravidade é necessário declarar que se está perante uma "emergência de interesse nacional", ação que até ao momento não foi tomada.

Que níveis de emergência existem em Espanha?

“Em Espanha existem três níveis de alerta, que variam do zero ao três. O nível dois, que está neste momento em vigor, é decretado pela Generalitat da Comunidade Valenciana e, portanto, é da responsabilidade do governo regional. Embora possa recorrer a meios de âmbito nacional, como está a acontecer, continua a ser sua a coordenação das operações”, esclarece Diogo Noivo, especialista em política espanhola, em declarações ao Observador.

Só no nível três de emergência, que nunca foi acionado, é que a “condução das operações é transferida do governo regional para o governo nacional“. Passando para este nível de maior gravidade é necessário declarar que se está perante uma “emergência de interesse nacional”, ação que até ao momento não foi tomada.

Quem podia ter acionado o nível máximo de emergência em Valência?

Segundo Diogo Noivo, o nível de emergência mais severo, de nível três, poderia ter sido acionado tanto ao nível regional, perante as consequências imediatamente visíveis das inundações, como ao nível central, se o governo central assim o entendesse, “mesmo que unilateralmente”.

De acordo com a Lei da Proteção Civil espanhola, emergências de "interesse nacional" são as que requerem "a proteção de pessoas e bens" com base na ativação dos estados de alarme, exceção e sítio. O governo de Pedro Sánchez não acionou este mecanismo.

Ou seja, tanto poderia ter existido uma perceção regional de que a dimensão da tragédia era tal que seria necessário um comando nacional para responder às suas consequências, como poderia, o próprio governo de Sánchez, ter decidido que sentia necessidade de assumir as rédeas das operações de busca e salvamento, bem como da limpeza e recuperação de Valência.

O que constitui uma “emergência de interesse nacional” em Espanha?

De acordo com a Lei da Proteção Civil espanhola, emergências de “interesse nacional” são as que requerem “a proteção de pessoas e bens” com base na ativação dos estados de alarme, exceção e sítio. Ou seja, aquelas em que é “necessário prever a coordenação de diversas administrações porque afetam várias comunidades autónomas e exigem uma contribuição de recursos a nível supra-autónomo”. O governo de Pedro Sánchez não acionou este mecanismo.

São abrangidas também as emergências que pelas suas “dimensões efetivas ou previsíveis exigem uma direção de caráter nacional“, critério que parece ser preenchido no caso de Valência. A declaração deste tipo de emergência pode ser feita “por iniciativa do Ministério da Administração Interna espanhol”, após “comunicação com a comunidade autónoma ou comunidades autónomas afetadas, por meios que não prejudiquem a rapidez da declaração e a eficácia da resposta pública”, lê-se na lei.

Uma vez declarada a emergência de interesse nacional, o titular do governo espanhol assume a “sua direção, que compreenderá a ordenação e coordenação das ações e a gestão de todos os recursos estaduais, regionais e locais do âmbito territorial afetado, sem prejuízo do disposto na lei para os estados de alarme, exceção e sítio, e na regulamentação específica sobre segurança nacional”.

Como explica Diogo Noivo, “por força da arquitetura regional espanhola, a primeira competência é sempre do governo regional, sendo certo que tanto a lei como a Constituição permitem que, se a situação for muito grave, o governo central possa chamar a si competências do governo regional”.

Como justificou o governo espanhol não ter acionado o nível de emergência máximo?

O governo central podia ter declarado a existência de uma “emergência de interesse nacional”, assumindo os comandos das operações e declarando o nível três de alerta, mas não o fez. Segundo fonte do ministério da Administração Interna ao El País, a declaração de nível nacional foi ponderada, mas colocada de lado uma vez que não foi considerada necessária tendo em conta a “atuação correta” do governo regional.

Segundo as fontes citadas pelo jornal, declarar de forma unilateral este tipo de emergência seria equivalente a aplicar o artigo 155º da Constituição espanhola, que permite ao governo central superar as competências das comunidades autónomas.

Passo que Pedro Sanchez preferiu não tomar, até agora. E uma frase isolada — “Se não têm meios, devem pedi-los”  — das declarações do chefe de governo espanhol incendiaram ainda mais as redes sociais. Mas o que o socialista  disse foi mais amplo: “Se a Comunidade Valenciana precisa de mais tropas, mais maquinaria, mais fundos, o que tem de fazer é pedir e serão fornecidos de imediato. As autoridades valencianas conhecem o terreno melhor do que ninguém e sabem o que é preciso fazer. Se não dispõem de meios suficientes, devem pedi-los”, disse Sanchez há dois dias.

Diogo Noivo coloca as motivações políticas na base da hesitação mútua em ativar este mecanismo que podia ter agilizado o envio de auxílio a quem mais precisava nos dias que se seguiram às inundações. “Temos um governo [central] de esquerda de maioria socialista [PSOE] e o governo da Comunidade Valenciana é um governo de direita, de maioria do PP”, recorda.

Segundo o diretor-geral da Unidade Militar de Emergencias (UME), pode ter "1.000 soldados na porta da emergência", mas que não pode "entrar legalmente até que o diretor da emergência o autorize". Ou seja, apesar de a unidade ser soberana e tutelada pelo governo central, precisa da validação da comunidade valenciana.

O especialista em política espanhola considera que o governo valenciano “não quis dar parte fraca e quis assumir as responsabilidade” e que, do lado nacional, o governo espanhol, “percebendo que as coisas iam correr mal, preferiu transferir todo a responsabilidade para o governo regional, que é também o seu adversário político”.

Alberto Núñez Feijóo, líder da oposição espanhola, pediu esta segunda-feira que as inundações em Valência sejam declaradas uma emergência de interesse nacional, numa tentativa de responsabilização do governo central.

De que forma tem atuado o governo central em Valência nos últimos dias?

Segundo o diretor-geral da Unidade Militar de Emergencias (UME), em conferência de imprensa na tarde desta segunda-feira, o número de efetivos da autoridade foi aumentando com o passar dos dias nas áreas mais afetadas de Valência. Numa declaração citada pelo El País, afirma mesmo que pode ter “1.000 soldados na porta da emergência”, mas que não pode “entrar legalmente até que o diretor da emergência o autorize”.

Ou seja, esclarece que apesar de a unidade ser soberana e tutelada pelo governo central, precisa de autorização para aceder a uma área de emergência, neste caso precisa da validação da comunidade valenciana, cujas operações são lideradas por Carlos Mazón. Javier Marcos respondia às críticas de que não foram mobilizados, de imediato, militares em número suficiente e adequado face ao que seria adequado dada a dimensão que a tragédia rapidamente assumiu.

Essa era, aliás, uma das perguntas zangadas das pessoas que, revoltadas, cercaram e interpelaram no domingo Felipe VI: “Onde está o exército?”. O Rei mostrou um militar procurando acalmar os ânimos exaltados mas mais tarde foi muito claro ao falar com Sanchéz e Mason: “Tem de se garantir que o Estado, em toda a sua plenitude, tem de estar presente”.

Além do aumento de efetivos no local, o executivo de Pedro Sánchez decretou ontem Valência uma zona afetada gravemente por uma emergência de Proteção Civil, figura jurídica prevista na lei da Proteção Civil, que é da competência exclusiva do governo central. Segundo Diogo Noivo, o governo “passa a poder mobilizar mais meios”, bem como pode começar a aplicar “vantagens fiscais para a região”. O especialista em política espanhola entende que este mecanismo já podia ter sido ativado “há quatro ou cinco dias”.

Entende ainda que, por ter sido aplicado a comunidades vizinhas, como Castile-La Mancha, o governo espanhol está a admitir, de forma subjacente, que outras regiões foram muito afetadas e que, portanto, não se trata de uma tragédia de carácter regional, mas sim de carácter nacional.

O primeiro-ministro espanhol já disse que “haverá tempo” para apurar responsabilidades e para refletir sobre as competências de cada nível de administração. Para já, “há só um inimigo a abater” referiu, concretizando: “A destruição causada por esta catástrofe”.

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