A proposta de lei que o Conselho de Ministros aprovou esta quinta-feira na generalidade — que ainda vai precisar de audição da concertação social — suspende a caducidade da contratação coletiva durante 24 meses, apurou o Observador junto do Governo. Inicialmente o Executivo propôs 18 meses, tal como tinha dito o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Duarte Cordeiro na última sexta-feira quando dava conta dos avanços das negociações à esquerda, mas acabou por ir mais longe. Ao Observador, o líder parlamentar do PCP reconhece que a proposta do Governo “ameniza o problema”, embora não seja a solução perfeita. Uma cedência à esquerda, entre outras que começam a aparecer na reta final da negociação do Orçamento para 2021 — que até já seguiram em documentos escritos na quarta-feira à noite para os parceiros.
Numa altura em que decorrem as conversas finais com os partidos à esquerda — ainda com muitas afinações por fazer –, o Governo vem dar um sinal de cedência numa matéria cara tanto ao PCP como ao Bloco de Esquerda. Ambos os partidos têm sido insistentes na defesa do fim da caducidade da contratação coletiva — deixarem de contar, de todo, os prazos para caducarem os contratos coletivos de trabalho, os acordos setoriais ou de empresa que definem as condições salariais e de trabalho e que têm força de lei. O ideal, para a esquerda, era mesmo a “revogação da caducidade da contratação coletiva”, mas o PCP admite ao Observador que a suspensão por dois anos é um passo em frente. “Temos insistido com o Governo para resolver esta questão, e isto permite amenizar e adiar alguma parte do problema, embora se mantenha a necessidade de encontrar uma resolução de fundo”, disse ao Observador João Oliveira.
O PCP, contudo, esclarece que uma coisa é a legislação laboral, que é definida num quadro legislativo específico e à margem do Orçamento do Estado, e outra coisa é o Orçamento do Estado. Certo é que os dois processos decorrem de forma paralela, mas o PCP rejeita associá-los. Até porque era preciso que a proposta de lei sobre a suspensão da caducidade da contratação coletiva fosse agora aprovada em Conselho de Ministros, para ainda ficar 30 dias em consulta pública e só depois estar em condições de iniciar o processo legislativo normal no Parlamento. Com o processo orçamental a decorrer e o Parlamento dedicado exclusivamente a esse dossiê, isso faz com que as matérias de legislação laboral agora acordadas e vertidas em proposta de lei só avancem no Parlamento em dezembro — depois da votação final do Orçamento. Mas do lado do Governo o passo está dado e a proposta está aprovada.
Por isso é que uma coisa não pode ser dissociada da outra. No final da semana passada, quando fez um ponto de situação das negociações do Orçamento para o próximo ano, o Governo fez saber que uma das medidas que estava em cima da mesa era uma moratória para que fosse suspensa por 18 meses a caducidade dos contratos coletivos de trabalho quando não há renovação ou substituição prevista para o mesmo. Agora o Executivo alargou o prazo da suspensão, tentando uma aproximação à esquerda. A proposta pretende, segundo explicou no briefing do Conselho de Ministros a ministra do Trabalho e da Segurança Social, que “durante este momento de instabilidade e de crise” seja garantida a “estabilidade nas relações laborais”.
BE insatisfeito, Governo “surpreendido” e pelo meio um documento com objetivos políticos a médio prazo
Na quarta-feira à noite, a líder do Bloco de Esquerda deu uma entrevista à RTP a dizer que o Bloco “não poderá votar um orçamento em que não há negociação” e que este “é o momento de o PS dar passos” em direção às reivindicações que o partido tem feito à mesa das negociações do Orçamento. E deixou mesmo uma espécie de ultimato ao dizer ter “esperança que nos próximos quatro dias o Governo dê resposta a estas preocupações”.
Depois da entrevista, na noite de quarta-feira, o Bloco recebeu vários documentos do Governo, segundo apurou o Observador, mas mantém-se insatisfeito com o que tem em mãos, o que deixa o Governo “muito surpreendido”, segundo fonte do Executivo. Outro governante adianta que os passos dados em direção às pretensões da esquerda “são muito significativos” e até que “não têm comparação com nada que tenha sido feito no passado em processos negociais”.
E o Governo garante mesmo que, durante a noite dessa mesma quarta-feira, entre a documentação enviada, constava já a nova redação da prestação social que tanto o BE como o PCP e até o PAN defendem, assim como o desenho do novo subsídio de desemprego (e como a nova prestação é compatível com ele), a contratação de profissionais para o SNS, a limitação dos despedimentos para empresas com apoios do Estado, entre outras medidas. O Executivo recusa-se, no entanto, a adiantar o conteúdo destes documentos. E, para o Bloco de Esquerda, o documento de trabalho não é mais do que uma “síntese das atuais posições negociais” do Governo. Não é uma síntese dos avanços. “Há avanços numas [questões] e recuos noutras. Nada que altere o quadro global”, ouve o Observador de uma fonte bloquista. Ou seja, o ultimato mantém-se.
Além disso, o BE recebeu também um documento político onde estão as questões laborais e outras matérias, como por exemplo o percurso do aumento do salário mínimo nacional. Este é o tal documento para o acordo de médio prazo que o Governo está a tentar com o Bloco, como já avançou o Observador na semana passada e que o BE não descarta. O Executivo tem a intenção de ter este acordo fechado ao mesmo tempo que fixar o acordo para a viabilização do Orçamento para o próximo ano, que vai entregar na próxima segunda-feira, mas não sabe qual a posição do partido liderado por Catarina Martins quanto a esse timing. Neste documento estão sobretudo medidas para o trabalho, que surgirão à margem do Orçamento, mas sobretudo “objetivos políticos”, descreve fonte do Governo.
Certo é que o BE quer resolver tudo até segunda-feira, não quer deixar as grandes decisões para a especialidade. “Isso seria a confusão generalizada, com o PSD a entrar em campo” e com as habituais ‘coligações negativas’ a formarem-se, e não é isso que o BE quer: resolver o que há para resolver com o Governo, de um para um. Ou seja, não quer que o Governo conte com uma abstenção do BE na generalidade, como benefício da dúvida, que depois se pudesse converter num voto contra se as reivindicações não fossem atendidas. É agora ou nunca.
Governo tenta geringonça só com o Bloco até 2023. Mas não desiste de PCP neste Orçamento
Tic-tac. BE quer proibir despedimentos e mais médicos (e espera para ver se Novo Banco fica de fora)
E para isso mantém o ultimato de Catarina Martins: o Governo tem quatro dias para ir ao encontro das exigências bloquistas no desenho das medidas consideradas fundamentais desde a primeira hora, que vão desde a prestação social para os trabalhadores informais que ficaram sem nada com a crise, às medidas sobre legislação laboral, sobretudo no que aos despedimentos diz respeito. Quatro dias que na verdade são três, um dia já passou. Tic-tac.
Apesar de o Bloco de Esquerda já ter admitido que a nova prestação social era a matéria onde havia mais avanços, o Observador sabe que os bloquistas ainda não estão satisfeitos. Primeiro, porque no desenho da medida que o Governo lhes fez chegar, ainda consta uma condição de recursos que faz depender o acesso àquela prestação social da composição do agregado familiar, o que deixa “gente de fora”. Depois, ainda há que afinar a ideia de que esta prestação social (não contributiva) não venha a ser em caso nenhum superior ao subsídio de desemprego (prestação contributiva). Ou seja, o valor da prestação deverá ficar à volta dos 500 euros, mas pode haver casos em que o subsídio de desemprego esteja abaixo desse valor. Para responder a esse diferencial, o BE quer que haja um aumento do subsídio de desemprego, mas pode estar em cima da mesa apenas um complemento temporário para os trabalhadores que recebam subsídio de desemprego num valor abaixo do limiar da pobreza (equivalente a 500 euros). Resta saber se chega.
No campo das contratações para o Serviço Nacional de Saúde, onde o Governo diz haver avanços, o Bloco não vê nada mais do que a mera concretização do que já estava inscrito no Orçamento para 2020. Ou seja, o Governo vai cumprir a promessa da contratação de 8.400 profissionais de Saúde entre 2020 e 2021, promessa feita antes da pandemia, e o Bloco entende que o contexto mudou e os profissionais de saúde que sejam agora integrados no SNS vão ser alocados para necessidades relacionadas com a Covid e as necessidades permanentes vão continuar a descoberto. Ou seja, era preciso ir mais longe.
Mas é no plano laboral que o Bloco de Esquerda está mais longe de se dar por satisfeito — independentemente de ser matéria orçamental ou de acordo político extra Orçamento. É que o grande cavalo de batalha do BE, que assumiu desde a primeira hora, é a proibição dos despedimentos para empresas com lucro e com apoios estatais para a criação de emprego. E o máximo onde o Governo chegou, segundo os bloquistas, foi aceitar impor limitações aos despedimentos, mexendo nos apoios às empresas pela via fiscal. “Uma proposta muito fraca” para os bloquistas que apenas atinge as grandes empresas e que deixa de fora, por exemplo, os casos das empresas que, perante a crise, decidiram não renovar todos os contratos que tinham a prazo. E aí o Governo nada muda. Nem aí nem na compensação por despedimento dada aos trabalhadores, que o BE quer que volte aos 30 dias por cada ano de trabalho (e que está fixada nos 12 dias desde o tempo da troika).
A única coisa que o Governo concretizou foi um pequeno passo no sentido de reduzir o período experimental dos trabalhadores. O BE está desde a primeira hora a pedir o fim do alargamento de 120 para 180 dias, que entrou em vigor na legislatura passada após acordo entre o PSD e o PS, mas o Governo não está disposto a voltar aos 120 dias. O máximo que o Governo está disposto a ir é acrescentar uma indemnização aos trabalhadores que sejam despedidos ao fim do período de 120 dias — mas o valor, dado o curto período de trabalho, seria sempre “irrisório” segundo os bloquistas.
Isto para não falar do Novo Banco, que o Governo tem dito que não vai ter nem mais um cêntimo do Orçamento do Estado, mas que os bloquistas esperam para ver. É que, se no Orçamento estiver inscrita uma previsão de despesa para o Fundo de Resolução, significa que mesmo que sejam os bancos a injetar dinheiro, o Fundo de Resolução servirá sempre como garantia de Estado. E isso o BE não aceita.
PAN dentro da arca de Noé. E pode ser decisivo
A verdade é que, em termos aritméticos, se o BE ficar de fora, há outra forma de o Governo conseguir aprovar o Orçamento do Estado: basta o PCP, o PEV e o PAN se absterem. Ou seja, os votos do PAN podem mesmo vir a ser essenciais e o Governo sabe disso. No debate bimestral desta quarta-feira, o Governo já deixou cair algumas pistas: confirma-se a passagem da tutela do bem-estar dos animais de companhia do Ministério da Agricultura (DGAV) para o Ambiente (ICNF), como o PAN queria, e é provável que haja avanços também no que diz respeito ao transporte de animais vivos. O partido Pessoas-Animais-Natureza mantém-se em jogo nas negociações do Orçamento em três áreas: apoios sociais, ambiente e animais.
No que diz respeito aos apoios sociais, do Governo o PAN já ouviu o compromisso relativo à criação de um apoio social que parece ir ao encontro daquilo que o partido pretendia, pelo menos em parte, com a proposta de criação de um rendimento básico de emergência. Ao Observador, a líder parlamentar do PAN, Inês Sousa Real, diz mesmo que o governo “pode chamar-lhe o que quiser”, desde que avance com a nova prestação para apoiar os que ficaram desprotegidos com a crise. Já na área ambiental, as ambições vão para a criação, por exemplo, de uma taxa nas máscaras descartáveis, que o Governo não afasta.
No capítulo dos animais, um dos objetivos do PAN é criar uma Direção-Geral de Bem-Estar Animal, mas o partido já vê a transferência da tutela dos animais de companhia entre os ministérios (da agricultura para o ambiente) como um passo em frente. Mas quer mais. Quer, por exemplo, a presença de médicos veterinários a bordo dos navios que transportam animais vivos e, a longo prazo, quer mesmo o fim do transporte longo de animais vivos — embora Inês Sousa Real admita que isso “não será para já”. Na saúde, o PAN mantém alguma pressão sobre o Governo para que haja um reforço de profissionais de saúde de emergência mental, cujo défice de profissionais consideram que ficou ainda mais exposto no atual contexto pandémico.
E traça uma linha vermelha, comum à esquerda: o Novo Banco. Ao Observador, a líder parlamentar do PAN, Inês Sousa Real, lembra que a questão do Novo Banco e a hipótese de novas injeções de capital merece “total desacordo” do partido e poderá mesmo ser decisiva no sentido de voto.