Dois deputados, dois membros da Comissão Executiva, duas escolhas de João Cotrim Figueiredo. Carla Castro e Rui Rocha são os candidatos a ocupar o lugar que o atual líder da Iniciativa Liberal vai deixar livre na próxima Convenção. A decisão do presidente liberal transformou-se numa luta interna que deixa no ar uma pergunta: o partido está perante uma escolha entre a continuidade (com apoio de Cotrim) e a rutura?
Recuando ao momento em que se tornaram candidatos à Assembleia da República, depois da queda do Governo ter levado a eleições antecipadas, as vidas dos dois liberais estavam em momentos profissionais bem diferentes: Carla Castro já estava de pedra e cal na IL e fazia parte do gabinete parlamentar de João Cotrim Figueiredo; já Rui Rocha trabalhava como diretor de recursos humanos das marcas de têxtil da Sonae, em Braga, e ganhava espaço entre os liberais com uma presença forte nas redes sociais.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a Iniciativa Liberal.
Carla Castro foi a segunda escolha dos liberais por Lisboa, logo depois de João Cotrim Figueiredo — e num lugar em que era praticamente certa a eleição. Quem se cruzou com ela a nível profissional descrevia-a como uma “formiga de trabalho”, uma “espécie de operacional” capaz de seguir “todos os dossiês”. Coordenava o gabinete de estudos (o que deixou de acontecer pouco tempo depois da eleição) e foi a responsável pelos documentos de trabalho elaborados pelos liberais nos últimos anos.
Este trabalho com as bases permitiu-lhe conhecer bem a realidade interna do partido e contactar com muita gente, gerindo quem fazia o quê dentro do gabinete e escolhendo as pessoas para cada função. Carla Castro está consciente do tal “trabalho de formiga” dos últimos anos, da relação que construiu com as bases, nomeadamente com elementos de vários núcleos, e acredita que são estes membros que podem estar ao seu lado nesta corrida.
Aliás, na última Convenção da IL Carla Castro arrancou da plateia um dos maiores aplausos dos liberais, só comparável com aquele que recebeu o líder João Cotrim Figueiredo.
Pela mesma altura, Rui Rocha — que se destacou nas redes sociais, no blogue O Insurgente e como colunista — passava do ecrã para as ruas para protagonizar uma campanha muito elogiada que levou a IL a conquistar um lugar na Assembleia da República pelo distrito de Braga. A par disso, e ainda antes de se tornar deputado, ia aparecendo, aos poucos, como porta-voz dos liberais em várias circunstâncias.
Antes de assinar essa conquista para os liberais, Rui Rocha já era descrito como alguém “muito eficaz”, com “raciocínio rápido” e “capaz de perceber o que é preciso fazer em cada ocasião”. A capacidade de comunicação é apontada como uma das suas maiores qualidades: “Transmitir coisas complicadas de forma simples.”
Pouco tempo depois de o deputado confirmar que será candidato à liderança da IL, João Cotrim Figueiredo saiu em defesa de Rui Rocha, sublinhando que “é a pessoa certa” para o cargo numa fase de “crescimento e afirmação” .
Fontes próximas de Rui Rocha admitem que a substituição do presidente da IL seria mais fácil noutra fase e que o deputado tinha preferência por um momento mais longínquo. “O Rui Rocha sabe que é muito mais complicado agora do que seria daqui a dois anos, sabe que vai passar dificuldades porque o partido tinha um líder popular, com boas sondagens e o Rui vai começar por ser um líder pouco conhecido e não tão popular como o João Cotrim Figueiredo”, realçou um liberal ouvido pelo Observador que não tem dúvidas de que, ainda assim, Carla Castro parte em desvantagem.
Não é só João Cotrim Figueiredo que apoia Rui Rocha. O Observador sabe que, além dos deputados que já declararam apoio, o deputado eleito por Braga tem grande parte dos membros dos órgãos nacionais ao seu lado. É a candidatura da continuidade, do plano que tem vindo a ser cumprido até aqui, o seguimento da linha de Cotrim.
Carla Castro representa o oposto: a mudança, a rutura, a busca por um caminho diferente. E é isso que os insatisfeitos do partido veem na deputada liberal — a possibilidade de se afastarem do que tem sido o caminho seguido pelo núcleo duro de Cotrim Figueiredo.
O desalinhamento, a fricção e o plano
O aparecimento de dois deputados como candidatos à liderança da IL não cria propriamente uma surpresa entre os membros da comissão executiva e do grupo parlamentar. Não era certo que aconteceria, mas Carla Castro tinha vindo a construir um caminho paralelo a Cotrim que poderia espoletar esta decisão.
A grande questão da saída de Cotrim Figueiredo e das candidaturas de Rui Rocha e Carla Castro está no timing, mas a junção das premissas é a prova de que há um desalinhamento dentro do partido. E não é de hoje. Depois das legislativas, a relação que parecia robusta entre quem vinha do gabinete parlamentar do deputado único da IL (João Cotrim Figueiredo, Rodrigo Saraiva e Carla Castro) começou a deteriorar-se.
Fontes do núcleo duro da IL contam ao Observador que a “fricção” entre Rodrigo Saraiva, um dos braços direitos de Cotrim Figueiredo, e Carla Castro era muitas vezes notória e que essa atitude se notava em diversas situações e discussões dentro do grupo parlamentar. A tensão dentro do grupo foi assumindo níveis mais elevados em momentos específicos e um dirigente da IL considera que a deputada liberal “começou a fazer oposição interna logo depois das eleições”.
O desconforto interno aumentou quando surgiram rumores de várias movimentações para listas do Conselho Nacional — dentro e fora da Comissão Executiva; dentro e fora da oposição pública — e que Carla Castro estaria a trabalhar para adquirir apoios, não propriamente para as eleições para este órgão, mas para conquistar a liderança liberal em batalhas futuras.
Apesar de os atuais dirigentes não considerarem que esta foi a causa da decisão de Cotrim Figueiredo, há quem acredite que pode ter antecipado o cenário. Olhando para as contas do líder do partido: se apenas deixasse a liderança no final de 2023 (quando estava prevista a Convenção eletiva), o novo presidente entraria já após as regionais da Madeira e mais perto das europeias. Pior, aos olhos de Cotrim: se realmente Carla Castro estivesse um ano a reunir apoios era possível que o partido entrasse em ebulição em pleno ciclo eleitoral.
Da continuidade à rutura (ou de Rui a Carla)
É exatamente na procura de um equilíbrio que surge o apoio a Rui Rocha numa candidatura concertada. Segundo um dirigente liberal, João Cotrim Figueiredo não teria saído se não houvesse uma solução de continuidade, principalmente sabendo que estava a “sair a meio” e de uma forma que “não é normal”. “Se fosse levantar um escândalo no partido, não o faria”, assegura.
Com a decisão de Cotrim Figueiredo, Carla Castro viu uma oportunidade para avançar e a candidatura está a funcionar como uma união de descontentes — alguns que se têm queixado de falta de democracia interna. O grande desafio da deputada será mesmo posicionar-se relativamente aos liberais mais conservadores, sendo que esta tem sido a posição mais vocal nas críticas à atual direção.
A lista B, cujo candidato ao Conselho Nacional é Nuno Simões de Melo, já se mostrou disponível para procurar uma “plataforma de entendimento” e nas redes sociais têm surgido vários apoios da linha mais conservadora da IL. Porém, até ao momento, nenhum dos posicionamentos de Carla Castro se alinham com o pensamento da ala conservadora — pelo contrário —, mas o apoio destes membros pode mesmo levar ao afastamento de progressistas que, à partida, poderiam apoiar a deputada liberal.
No momento do anúncio da candidatura, na TSF, a deputada liberal, questionada sobre o crescimento de um liberalismo mais conservador no seio do partido, foi perentória: “Pela minha parte não, não creio que esteja em cima da mesa.”
Ao Observador, numa entrevista nas jornadas parlamentares, defendeu que “na IL há espaço para diversidade”. “Num Portugal mais liberal cabem diversas valorizações de liberalismo, bandeiras mais importantes para uns e menos importante para outros, mas há um traço comum que é um Portugal mais liberal. E há muito espaço de crescimento, de coexistência, de pluralidade e diversidade, é um processo tranquilo”, acrescentou, frisando que desconhece um “limite” para os liberais mais conservadores.
As contas começam a ser feitas, pouco a pouco, e as opiniões divergem entre quem acredita que Carla Castro tem a capacidade de recrutar apoio principalmente nas bases — tendo em conta o contacto que teve com muitos liberais à boleia do gabinete de estudos — e quem considera que João Cotrim Figueiredo é que tem os votos das bases e que estes serão transferidos para Rui Rocha.