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“Só queria ir ter com elas. É o meu maior desejo.” Quanto tinha dez anos, Tayssir Chikhaoui disse aquela frase num centro educativo ao lado da irmã dois anos mais velha, Eya. As duas menores tunisinas pernoitavam pela primeira vez naquele sítio, rodeada de desconhecidos, porque as autoridades do país temiam que as suas duas outras irmãs mais velhas — Ghofrane e Rahma — as raptassem e as levassem para Sabratha, na Líbia, onde se juntariam ao autoproclamado Estado Islâmico.
Mesmo assim, naquela noite de 2015, Tayssir queria ir para a Líbia. Queria juntar-se ao Estado Islâmico. As duas irmãs mais velhas, Ghofrane e Rahma, tinham passado os meses anteriores a doutrinarem a família sobre os ideais de um califado, adotando uma postura ultraconservadora baseada na sharia no dia-a-dia, em que se inclui o uso do niqab, uma vestimenta em que apenas os olhos são visíveis. No docudrama que estreia em Portugal a 22 de fevereiro As Quatro Filhas — vencedor do prémio Melhor Documentário no Festival de Cannes e nomeado para a mesma categoria nos Óscares — é possível entender o que levou duas adolescentes tunisinas a juntar-se ao Daesh.
Pelo contrário, Tayssir nunca foi raptada, nem nunca se juntou ao Daesh. Em 2016, as duas irmãs mais velhas foram detidas, na sequência de um bombardeamento norte-americano que destruiu a base do Daesh em Sabratha. A justiça líbia condenou, em 2023, Ghofrane e Rahma Chikhaoui a 16 anos de prisão. Estão detidas, neste momento, num estabelecimento prisional de Tripoli, na capital da Líbia, juntamente com a filha de Ghofrane, Fatma, que tem sete anos. Mas a família espera que as duas mulheres, agora com 25 e 24 anos, e a criança sejam deportadas para a Tunísia.
A história da família Chikhaoui confunde-se com a de muitas outras mulheres que se juntaram ao autoproclamado Estado Islâmico durante a década passada. Depois de um acentuado declínio por conta do desmantelamento de várias células do Daesh, vários países depararam-se com uma nova realidade: o que fazer com mulheres, que tinham um papel mais na retaguarda face aos homens, que pertenceram ao Daesh?
A presença de ex-membros de uma organização considerada terrorista é indesejada para muitos países, que receiam a propagação de ideias mais radicais. Ficam, portanto, num limbo diplomático e todas as jurisdições optam por soluções distintas: umas preferem a deportação e prendem-nas no países natais, enquanto outras optam por deixá-las em prisões de Estados como a Síria ou a Líbia. E muitas vezes ainda há um fator que complica o cenário: a existência de filhos.
No caso de Ghofrane e Rahma, apesar da insistência da família para que regressem à Tunísia, as mulheres continuam presas na Líbia. Não obstante, na situação de Ângela Barreto — uma cidadã luso-holandesa que se juntou ao autoproclamado Estado Islâmico em 2014, cuja história foi revelada pelo jornal Expresso —, a mesma foi deportada para os Países Baixos, tendo sido condenada pelos tribunais neerlandeses em 2022 a quatro anos e meio de prisão por participação em organização terrorista e preparação e promoção de crimes terroristas. Foi, em dezembro de 2023, segundo o Expresso, libertada.
Apesar de sociedade patriarcal, papel da mulher no autoproclamado califado era complexo
A sociedade construída no seio de um alegado Estado Islâmico era altamente patriarcal. Como realça Dilken Çelebi, doutorada na Universidade de Direito Penal Internacional na Universidade de Münster, contrariamente “aos grupos marxistas que procuraram uma reforma na ordem social tradicional incluindo a liberalização do papel da mulher, os grupos islâmico-jihadistas aderem a ideias tradicionais, hierárquicas e discriminatórias relativamente ao género”.
Sendo assim, esperar-se-ia que as mulheres ocupassem um lugar com pouco relevo num autoproclamado califado, focando-se mais em tarefas domésticas. Mas não é bem assim, ressalva Dilken Çelebi, que destaca as “complexidades” daquele papel. “Ironicamente, a educação das crianças era decisiva para a sobrevivência do Daesh”, um elemento essencial para garantir a “continuidade e longevidade” do grupo.
As mulheres no autoproclamado do Estado Islâmico “agiam” também fora de casa. “Recrutavam outras mulheres, disseminavam propaganda, tentavam angariar dinheiro e arranjavam casamentos”, enumera Dilken Çelebi, acrescentando que, ao longo dos anos, foram também desempenhando cargos “militares”. Por exemplo, o Ministério Público neerlandês avançou que Ângela Barreto “tinha uma arma de fogo própria, uma AK-47” e também “vendeu granadas” na altura em que esteve na Síria.
A jornalista Azadeh Moaveni, que escreveu o livro Guest House for Young Widows [sem edição em português, pode ser traduzido como Casa de Hóspedes para Jovens Viúvas] em que acompanhou a história de 13 mulheres que se juntaram ao Daesh, realçou, numa entrevista, que as mulheres eram recrutadas — principalmente na Europa — por outras mulheres. “As redes de recrutamento costumavam ser femininas. As propagandistas online muito qualificadas eram mulheres.”
Ainda que maioritariamente longe do campo de batalha, as mulheres desempenhavam um papel ativo em várias células do autoproclamado Estado Islâmico, se bem que essa não fosse a situação de todas. Segundo Azadeh Moaveni, algumas foram “levadas por homens” e foram “coagidas” a pertencer ao Daesh “por namorados ou membros da família que tinham um papel dominante nas suas vidas”. “Outras eram muito jovens numa situação vulnerável e algumas tinham problemas de saúde mental.”
Os julgamentos. Entre a “falsa vítima” e a “narrativa de monstro”
O julgamento destas mulheres ocorre normalmente em contextos bastante complexos. Muitos dos crimes de que são acusadas são difíceis de provar, especialmente os relacionados com as redes de recrutamento. Adicionalmente, Dilken Çelebi aponta: “Nem todos aquelas que se associaram ao Daesh internalizaram necessariamente a ideologia. Existem outros fatores a ter em consideração, como o amor pela família, a pressão, a coerção e o facto de que a sua família mais próxima possuir essa ideologia.”
Dilken Çelebi defende que é necessário apurar quais foram as motivações e verificar as ações das mulheres que fizeram parte do Daesh, evitando-se “generalizações e simplificações”. Assim, é importante não se deixar convencer pela “narrativa da falsa vítima” — a história de que a mulher foi levada ao engano para uma célula do autoproclamado Estado Islâmico —, nem por uma mera “diabolização” da pessoa.
Relativamente à “narrativa da falsa vítima”, Tareena Shakil, uma cidadã com nacionalidade britânica que partiu juntamente com o filho para a Síria, mentiu no tribunal, alegando que tinha sido enganada por membros do Daesh e que, assim que teve noção do “grave erro” que cometeu, voltou para o Reino Unido. Citado pelo Guardian, o juiz Melbourne Inman acusou-a diretamente, durante a audiência, de “contar mentiras atrás de mentiras à polícia e ao tribunal”.
Ao mesmo tempo, refere Dilken Çelebi, “a narrativa da falsa vítima” não deve converter-se da “narrativa do monstro”, em que as mulheres “são consideradas radicalizadas, bombas relógio e uma ameaça à segurança”. Deve-se portanto, prossegue a especialista, adotar uma “análise caso a caso ciente das circunstâncias atenuantes ou agravantes e que não seja motivada pela demonização e estigmatização associada ao contexto do terrorismo que obscurece as realidades complexas de cada caso individual”.
Tareena Shakil pic.twitter.com/wrj8o79CVZ
— Ben Torahson ????☩ (@Bengegenislam) August 18, 2023
Um meio familiar conturbado, uma adolescência difícil e a prisão: a vida de Ghofrane e Rahma
Numa entrevista à National Public Radio (NPR) de 2016, Olfa Hamrouni, uma empregada de limpeza, confessou que nem sempre foi uma boa mãe, recordando episódios em que lhes batia e sublinhando a falta de dinheiro. O pai das quatro raparigas tornou-se praticamente ausente da vida delas e, durante o documentário Quatro Filhas, que contou com a interpretação de Olfa, Eya e Tayssir Chikhaoui, são várias as cenas em que é visível a infância pobre e difícil das jovens.
Ghofrane e Rahma atravessaram uma fase difícil na adolescência, chegando a adotar um estilo gótico, quando a mãe, por conta de dificuldades económicas, foi trabalhar para a Líbia. De regresso à Tunísia, Olfa Hamrouni passou a controlar de perto as filhas mais velhas, que mudaram por completo e passaram a dedicar-se à religião. Isso agradou-a inicialmente: “Pensava que as minhas filhas estavam apenas a seguir conselhos religiosos numa tenda de oração” do bairro.
Por volta de 2012, numa altura em que circulava pouca informação relativamente ao autoproclamado Estado Islâmico na Tunísia, as duas adolescentes estavam a ser convertidas ao jihadismo — e mãe nunca se deu conta disso. Só se apercebeu da gravidade, quando viu que a rotina das filhas apenas se baseava em “rezas” e quando elas contavam que, na tenda da oração, lhe diziam que deviam ir para locais como a Síria para lutar pela formação de um califado.
Pobres e abandonando a escola relativamente cedo para se dedicarem à religião, Olfa Hamrouni levou as filhas para a Líbia. As mais velhas limpavam casas tal como ela. Sem contar nada à mãe, Ghofrane desaparece um dia sem deixar rasto. Mais tarde, foi Rahma quem desapareceu. As duas foram para Sabratha, sendo que Ghofrane chegou a casar com Noureddine Chouchane, um dos principais dirigentes do Daesh em território tunisino e que terá sido um dos principais mentores do ataque terrorista de 2015 numa estância balnear em Sousse, que fez 39 vítimas mortais, uma da quais a portuguesa Maria da Glória, uma professora reformada.
A vida de Ghofrane e Rahma — e por arrasto da sua família — mudou radicalmente. O documentário realizado por Kaouther Ben Hania serviu para a mãe das jovens “deixar para trás o passado” conturbado. Mas Olfa Hamrouni não está descansada. Diz que agora é tempo de se “preocupar com o futuro”, principalmente das filhas mais velhas e da neta de sete anos.