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Entre todas as dúvidas, uma certeza: dancemos com Ana Lua Caiano

Entre José Afonso e Portishead, do jazz à clássica, precisamos escutá-la com atenção. "Se Dançar é Só Depois" é o novo EP e maio é mês maduro de concertos. Em entrevista, apresenta-se.

Ana Lua Caiano vivia desfasada do tempo. O relógio, implacável, ditava-lhe que já era tarde para chegar a ontem, a cabeça fugia-lhe para onde o corpo não estava — e o corpo, não sabendo entrar nesta dança, tentava, em vão, acompanhar a corrida. Talvez as coisas tenham mudado um pouco no momento em que começou a escrever e a compor o seu projeto em nome próprio. Ao deixar as suas letras pregadas na folha em branco, os ritmos e as melodias flutuando numa linguagem híbrida, Ana fez-se presente, cantando as inquietações do agora.

A Garota Não, no final do ano passado, já nos tinha chamado a atenção para esta intérprete e compositora de 23 anos, que além do mais é designer. A seu ver, ela era uma daquelas miúdas da nova geração que chegam ao mundo armadas com ferramentas e conhecimento. Um nome a seguir, portanto. E Ana Lua Caiano aqui está, ganhando justamente o seu espaço. Ao seu primeiro EP, Cheguei Tarde a Ontem (2022), junta-se esta sexta-feira, 5 de maio, um novo – Se Dançar é Só Depois – e a promessa de um LP para o final do ano.

“Nunca pensei que pudesse fazer mesmo isto”, diz-nos do seu estúdio, falando da carreira musical, amor paralelo de uma vida inteira que, de há um ano para cá, se tornou principal, muito por culpa da pandemia: “Compor sozinha tornou-se naquilo que me ajudou a lidar com a quarentena, que foi muito difícil. Percebi que isto era mesmo algo que eu gostava de fazer”.

[o vídeo para o tema que dá título ao EP, “Se Dançar é Só Depois”:]

Até lá, faltava a Ana, que tem um passado na clássica e no jazz, a confiança para acreditar que a música se podia fazer caminho para ela. As suas composições, confidencia-nos, estavam aquém daquilo que ela gostaria de alcançar e isso mesmo enchia-a de receios, tal como os receios que enchem a personagem de “Mão na Mão”, canção primeira do novo EP, que só quer sentir a mão na mão, mão no pé, pão na boca, pé no chão e nem pensar em entrar em águas desconhecidas: “Eu daqui não saio / Ai vai tu morder o rio”.

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Porém, Ana Lua Caiano já andava a mordiscar o rio há muito tempo, mesmo que de forma inconsciente. No Hot Club formou vários grupos, uns de vertente tradicional, outros virados para a música do mundo e no curso de design da comunicação experimentou a eletrónica e as sonoridades ambientais para as incorporar nas suas instalações. “Já explorava estas vontades de forma independente, mas no momento em que as duas coisas se encontraram, foi inevitável.” Ela tornou-se, então, inteira na sua identidade musical e, paradoxalmente, mais fluída também. “Sinto que finalmente encontrei um espaço no qual gosto de estar e quero continuar.”

Das cassetes de José Afonso aos álbuns de Björk e Portishead

A portugalidade está na base das suas composições, com o bombo a marcar o ritmo e a voz dobrada lembrando um coro de maçadeiras, à qual se aliam os sintetizadores, as beat machines e outros sons do quotidiano que Ana vai colecionando no seu telemóvel. “Na ‘Adormeço sem Dizer Para Onde Vou’ há sons de gritos de uma montanha russa. Na ‘Casa Abandonada’ há sons de patos e de pratos”, diz sobre duas das seis faixas de Se Dançar é Só Depois. “Estou sempre à procura de sons esquisitos. Depois há muitas coisas com passos e com sons vindos do corpo. Gosto muito de explorar e enquadrar sons diferentes, como se fossem instrumentos.”

De duas, passou a ter 12 canções no reportório, que vão ser apresentadas na íntegra na digressão que se avizinha. “Ainda estou em fase de finalização para que resultem bem em palco.” Os concertos de maio em Setúbal (dia 5), Lisboa (dia 6), Coimbra (dia 12), Porto (dia 19), Vigo (dia 20) e Torres Vedras (dia 27) serão boas oportunidades para um primeiro encontro com o mundo desta artesã dos sons e da escrita.

Como num tapete de Arraiolos, as suas canções são peças artesanais de atenção ao detalhe, que no seu bordado incorporam o experimentalismo de uma Björk, de uns Portishead ou de uns Silver Apples, de quem Caiano é confessa fã. Clã, Manel Cruz, Cesária Évora e Chico Buarque também fazem parte das suas obsessões, ela que admite ficar presa aos discos como se eles fossem o seu opiáceo: “Às vezes fico dois meses a ouvir repetidamente o mesmo álbum”.

A infância passou-a a escutar cassetes de José Afonso, Sérgio Godinho e Fausto, cantautores de quem se tornou íntima no seu imaginário. “Às vezes reencontro um álbum do Zeca Afonso que não ouço há imenso tempo e de repente percebo que está tudo na minha memória. Lembro-me de tudo!” Mais tarde, esgaravatou nos arquivos do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que lhe permitiu mergulhar a fundo na cultura popular.

Já com 19 anos decidiu desafiar-se por campos exploratórios nunca antes navegados, inscrevendo-se em workshops de música concreta, de música brasileira e de tudo o que a levasse a habitar universos mutantes. “Isso abriu-me os horizontes e ajudou-me a expandir a minha ideia do que era a música.” O resultado deste processo encontra-se agora explanado com uma maturidade rara, que nos faz antever voos maiores para esta artista natural de Lisboa, que se faz coração mole quando o assunto é Aveiro. Afinal, parte da sua família é de lá.

Impulso para tentar, Womex para confirmar

O reconhecimento foi-o ganhando aos poucos, muito por culpa de Nuno Monteiro, diretor do festival Impulso que acreditou em Ana Lua Caiano quando Ana era apenas duas canções. “O Nuno teve muita confiança em mim, porque eu só tinha duas músicas online”, conta-nos sobre o convite que recebeu para tocar no festival, em abril de 2022. Antes disso, em 2021, já tinha participado nas SDB Sessions, a iniciativa dos estúdios portuenses Arda Records que deu palco aos artistas no preciso momento em que eles se viram interditados de tocar ao vivo.

"Por nos sentirmos pessoas fortes, não quer dizer que não tenhamos medos. Podemos ser fortes e dependentes. Uma coisa não invalida a outra"

TeresaComCerteza

Aos poucos, as salas de Lisboa foram-lhe prestando atenção e Ana foi enriquecendo o seu alinhamento, até que em outubro de 2022 chegou o Womex: “Foi o outro momento em que a coisa cresceu um bocadinho mais. Abriu-me possibilidades para outras aventuras”, revela. Por essa altura, Ana Lua Caiano já tinha cá fora o seu primeiro EP, lançado em setembro. Com Cheguei Tarde a Ontem ela ordenou que saíssemos da frente. Ela tinha que montar um futuro só para si, canta em “Sai da Frente, Vou Passar”, um futuro que agora se torna mais nítido com “Se Dançar é Só Depois”.

De duas, passou a ter 12 canções no reportório, que vão ser apresentadas na íntegra na digressão que se avizinha. “Ainda estou em fase de finalização para que resultem bem em palco.” Os concertos de maio em Setúbal (dia 5), Lisboa (dia 6), Coimbra (dia 12), Porto (dia 19), Vigo (dia 20) e Torres Vedras (dia 27) serão boas oportunidades para um primeiro encontro com o mundo desta artesã dos sons e da escrita.

No seu métier cabem as palavras de alguém que se diz sensível ao que a rodeia e que absorve tudo como uma esponja. Ana conta histórias de personagens inventadas que refletem tantas outras histórias nas quais, por vezes, se revê. “Gosto muito de ampliar aquilo que já senti ou aquilo pelas quais as pessoas ao meu redor já passaram. Sou muito observadora.”

Nada nela tem uma narrativa certa, quer do ponto de vista musical como lírico. Ouvimos uma mulher de 23 anos que está cheia de dúvidas e que, ao não as esconder, nos coloca diante da nossa complexidade e das nossas contradições.

Custa-lhe ver que alguém tenha que ter dois ou três trabalhos para pagar um quarto, que uma pessoa tenha receio de partilhar as suas angústias ou que o fluxo de informação seja de tal forma avassalador que não nos permita sequer lidar com os nossos próprios problemas. “Se Dançar é só Depois é uma espécie de reflexão sobre a sociedade e sobre uma personagem que não tem tempo para dançar”. É a voracidade da vida, o canibalismo do mercado, a aflição da incerteza do amanhã num desabafo cuspido em forma de canção.

A dúvida que se faz música

Ainda que Ana Lua Caiano distinga conceptualmente os dois EPs – o primeiro mais versado em si e na sensação de “ter demasiadas coisas para fazer e não conseguir aproveitar o presente”, o segundo focado em preocupações coletivas – é mais aquilo que une os dois trabalhos do que o que os separa.

Quando canta em “Cheguei Tarde a Ontem” que “Andamos sempre um dia atrás de nós / Atrás de um outro dia”, antevê o fátuo caminho de “Se Dançar é Só Depois”, também tema título de disco:

“Se dançar é só depois
Para já, já estou morta
Morta para ir dormir
Dormir pr’a amanhã voltar
Voltar a acordar
Com ideias mal cozidas
Mal cozidas pr’a empratar

Numa folha de papel”

Ouve-se aqui a angústia e a cadência vertiginosa de uma “Construção”, feita tijolo por tijolo com a ajuda da flauta, das percussões e do som maquinal de uma “Machine Gun”.

[o vídeo de “Mão na Mão”:]

Ana Lua Caiano tem o fino condão de nos tirar o fôlego e de nos causar suores frios. O peito sai-lhe pela boca, vomitando as suas dores e as dores alheias, porque a ela (ou será a nós?) tudo lhe dói. “Ai, dói-me / A perna de quem passa / A cabeça de quem vejo / Ai, oh senhor doutor / Dói-me tudo senhor”, canta em “Dói-me a Cabeça e o Juízo”. Em “Vou Abaixo, Volto Acima” fala de uma cabeça coxa e embaciada e de um corpo que, quando para, fica feito estátua, embalsamado, “desmaiado / pouco achado”. “É bom falar sobre as coisas relacionadas com as angústias internas e começar a libertá-las”, refere.

“Casa Abandonada”, casa em que ninguém vive, nem mesmo o vazio, apresenta-se com uma melodia singela de piano, que parece tirada de uma caixinha de música cheia de pó. Já em “Mão na Mão”, Ana lembra-nos que somos seres simultaneamente fortes e frágeis, que temos tanto medo de ficar sozinhos como certezas do nosso caminho: “Essa é uma canção que não tem uma narrativa certa. Por nos sentirmos pessoas fortes, não quer dizer que não tenhamos medos. Podemos ser fortes e dependentes. Uma coisa não invalida a outra.”

É precisamente aqui que a sensibilidade de Caiano se torna na sua maior força: nada nela tem uma narrativa certa, quer do ponto de vista musical como lírico. Ouvimos uma mulher de 23 anos que está cheia de dúvidas e que, ao não as esconder, nos coloca diante da nossa complexidade e das nossas contradições. Não será a assunção da dúvida uma prova maior da humilde força humana? Enquanto ela continuar a duvidar, estaremos sempre bem mais perto de voltar a dançar.

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