Assim que foi publicado nos Estados Unidos da América, no verão de 2020, A Outra Metade tornou-se imediatamente um bestseller. A autora, Brit Bennett, não era nenhuma desconhecida — três anos antes, tinha alcançado a fama com o seu romance de estreia, The Mothers, sobre Nadia, uma jovem mulher que se vê obrigada a regressar à sua cidade natal no sul da Califórnia e enfrentar o passado. As ligações afetivas e a importância da história familiar são temas que Bennett recuperou em A Outra Metade, mas o segundo livro da escritora é um passo em frente em termos de alcance e complexidade.
O romance é uma saga familiar passada entre o final dos anos 60 e o início dos anos 90. O enredo gira em torno de duas personagens principais, as gémeas Stellla e Desiree Vignes, nascidas e criadas em Mallard, uma localidade no estado do Louisiana onde os habitantes negros, todos de pele clara, vivem obcecados com o tom da pele. Saturadas de um meio que as asfixia, as irmãs decidem fugir e tentar a sorte numa grande cidade. Outrora inseparáveis, a súbita decisão de Stella deixar Desiree faz com que as gémeas, semelhantes em aparência mas tão diferentes em personalidade, sigam caminhos muito diferentes: Desiree assume a sua identidade e casa com um homem com a pele mais escura do que a sua; Stella nega-a, fazendo-se passar por branca.
A história de Stella e Desiree é o ponto de partida para uma saga que as ultrapassa. São muitas as personagens e muitas as histórias, todas com um aspeto em comum: a procura por uma identidade e por um lugar no mundo. A identidade, no seu aspeto mas amplo e não apenas racial, é o grande tema de A Outra Metade, onde, dada a complexidade narrativa, cabem muitos outros assuntos, como o racismo e o preconceito, a importância do passado, da história (familiar e não só), os limites e as consequências da reinvenção pessoal ou a liberdade individual. Temas que preocuparam Stella e Desiree nos anos 60 e continuaram a preocupar as suas filhas, nos anos 80 e 90. Temas que, como admitiu Brit Bennett ao Observador, são intemporais e sempre preocuparam os escritores.
“São perguntas que os escritores sempre colocaram, mas estamos constantemente a criar formas mais complexas de pensar e falar sobre identidade”, afirmou a autora, durante uma entrevista feita por videochamada a propósito da publicação do romance em Portugal, pela Alfaguara. “Este livro deu-me uma forma de explorar essas questões intemporais, mas de um ponto de vista contemporâneo. A identidade é muito mais complicada do que a forma como a temos vindo a reconhecer ou do que a forma como a quisemos reconhecer no passado.”
A Outra Metade tem como personagens principais duas gémeas, Stella e Desiree, nascidas e criadas numa pequena localidade do Louisiana chamada Mallard, onde os habitantes negros vivem obcecados com a cor da pele. De onde é que surgiu a ideia para Mallard?
A minha mãe é do Louisiana. Ela falou-me de lugares como esses, de que ouviu falar enquanto crescia, onde as pessoas eram muito obcecadas com a cor da pele. Essa foi a minha porta de entrada para o mundo da história [do livro], a ideia de uma localidade assim e como seria crescer num lugar assim, sair ou regressar. A partir daí comecei a pensar em gémeos de um lugar assim, que tinham decidido viver as suas vidas de forma muito diferente.
Mas porquê gémeos? Porque é que decidiu explorar esse tipo de ligação?
Acho que é uma forma muito interessante de pensar a identidade, sobre natureza versus cuidar de alguém, sobre escolha. De pensar essas duas mulheres que parecem exatamente iguais, mas que experienciam dois mundos totalmente diferentes com base na forma como se identificam e como são identificadas em relação à raça. Pareceu-me muito interessante explorar isso através de gémeas idênticas, porque me permitia mergulhar nessas perguntas sobre identidade e escolha.
A identidade é central no livro. Não apenas a identidade racial, mas a identidade num sentido mais amplo. Muitas personagens lidam com esse tipo de problema, não apenas as gémeas. Porquê este interesse pelas questões identitárias?
Acho que sempre me interessei por essas questões, como é que nos tornamos as pessoas que somos, quais são as partes de mim que escolhi e quais são as partes que foram escolhidas por mim. Sempre tive essa curiosidade. Acho que muitos romancistas a têm. São questões universais acerca do que é necessário para uma pessoa se tornar naquilo que é. Há algo de muito universal nisso. Sempre tive interesse nisso enquanto leitora e escritora, mas penso que este livro me deu uma forma de explorar essas questões de uma maneira que senti que era muito interessante. Senti que era uma forma muito interessante de mergulhar na História, mas também que estava a colocar questões que ainda hoje em dia colocamos.
Sobretudo hoje em dia. As questões relacionadas com identidade estão no centro das preocupações das gerações mais novas.
Acho que sim. São perguntas que os escritores sempre colocaram, mas estamos constantemente a criar formas mais complexas de pensar e falar sobre identidade. Este livro deu-me uma forma de explorar essas questões intemporais, mas de um ponto de vista contemporâneo. A identidade é muito mais complicada do que a forma como a temos vindo a reconhecer ou do que a forma como a quisemos reconhecer no passado.
Foi por essa razão que escolheu explorar esse tema através de tantas personagens diferentes e não apenas a partir de Stella e Desiree?
Sim, há muitas personagens no livro que estão a passar por períodos de transformação ou que estão a performatizar a identidade de uma maneira ou de outra. No início, pensei que seria apenas sobre as gémeas, mas, à medida que fui escrevendo, apercebi-me que era maior do que elas. Interessei-me por todas essas personagens que gravitam em torno delas e queria pensar na questão da identidade além da raça. Queria pensar sobre todas essas formas diferentes de ser que essas personagens experienciam e que todos nós experienciamos nas nossas vidas.
Aborda muitos outros temas no livro, como as ligações familiares e a importância da história familiar, questões LGBTQI… Foi também algo que foi surgindo durante o processo de escrita?
Tudo surgiu de forma orgânica à medida que ia escrevendo. Novamente, pensava que o livro ia ser apenas sobre as gémeas e mais nada, mas depois interessei-me pelos os homens nas vidas delas, nas suas filhas e nas suas vidas. Interessei-me por todas essas personagens que se movem para dentro e para fora deste mundo. Tornou-se muito mais complexo. Queria sobretudo escrever sobre as vidas interessantes das personagens em que tropecei e pensar sobre as maneiras como estão a atravessar esses momentos de transformação em relação a elas próprias.
Os lugares parecem ser muito importantes. Há Mallard, onde tudo começa, e depois Los Angeles, onde todas as personagens se cruzam em busca da sua própria identidade. Los Angeles é a cidade dos atores, de Hollywood. Teve isso em mente quando a escolheu como localidade central na sua história?
Não sei o que surgiu primeiro, mas foi em parte uma questão pessoal. A minha mãe é do Louisiana e o meu pai é de Los Angeles. Tornou-se uma forma de unir os dois lados da minha família, ter essas personagens a ocuparem esses lugares tão diferentes. Essa poderá ter sido a primeira razão para parte do livro se passar aí. Mas, à medida que fui trabalhando nisso, cheguei a isso que estava a dizer, à ideia de que Los Angeles é conhecida pela atuação, pela performance. Dependendo com quem se fala, é uma cidade de falsidade ou fingimento. Há algo nisso que parece surreal para as personagens que lá estão. Isso tornou-se interessante [para mim], mas também a Califórnia de uma maneira geral. Cresci na Califórnia e a mitologia do Oeste é algo que me interessa muito. Essa ideia de que se vai para o Oeste para se reinventar. O Oeste é quase um lugar mitológico, para onde as pessoas vão para se encontrarem, para se libertarem das coisas do passado. Claro que é uma realidade muito mais complicada do que isso, mas acho que a secção de Los Angeles me permitiu mergulhar nisso.
O seu pai contou-lhe alguma história de Los Angeles que a tenha inspirado como aconteceu com a sua mãe?
Não muito, mas houve alguns detalhes, algumas coisas que o meu pai contava [que passaram para o livro]. Como ir ao Cinerama Dome [um cinema em Hollywood] ver filmes. Detalhes assim do seu crescimento entraram no livro, mas não tanto [como os da minha mãe]. Eu própria vivi em Los Angeles durante uns anos e, enquanto escritora, havia menos mitologia em relação a essa cidade do que em relação ao Louisiana, onde nunca vivi e que nunca visitei. Estava mais interessada na infância da minha mãe porque foi tão diferente da minha. Ela cresceu numa quinta… É uma infância tão diferente. Não é para ofender o meu pai [risos], mas Los Angeles não foi uma inspiração tão grande como as histórias da minha mãe. Mas acho que as histórias de ambas as famílias entraram no livro de uma maneira ou outra.
Os temas que aborda são todos bastante atuais e fazem parte da discussão pública. Toda a gente os discute e toda a gente tem uma opinião sobre eles. Contudo, fala neles sem qualquer tipo de moralismo. Achei muito interessante que nenhuma personagem condene o que Stella fez [passar-se por branca]. Ninguém diz se foi certo ou errado. Estão apenas focados no facto de que ela desapareceu.
Não gosto de ler autores moralistas. E como escritora não gosto de escrever dessa maneira, porque não acho que seja interessante. Não leio livros para determinar se uma personagem estava certa ou errada. Acho que essa é a pergunta menos interessante. Sabia que não queria escrever sobre a Stella dessa maneira. E quem sou eu para determinar se essa mulher, que estava a escapar de tanto terror, está certa ou errada. Cresci num tempo e num lugar tão diferente… Também me senti inadequada ou incapaz de a julgar mesmo que quisesse, o que não queria. Queria apenas pensar acerca das suas experiências emocionais e psicológicas. Acho que é sempre a pergunta mais interessante quando lemos ficção — como é ser aquela pessoa. Para mim, isso é muito mais interessante do que [perceber] se essa pessoa está errada ou certa.
A Outra Metade começa no final dos anos 60 e vai até ao início dos anos 90. São vários os momentos históricos referidos — a morte de Martin Luther King, os Kennedys ou a epidemia da sida, nos anos 80. Há quem tenha considerado o seu livro um romance histórico por causa disso. Concorda com essa categorização?
Nesse sentido, acho que é [um romance histórico]. Há alguns romances que, quando os lemos, temos a sensação de que o autor pesquisou cada pormenorzinho daquele mundo. Não escrevi o livro dessa forma. Estava mais focada em recriar a realidade daquele período e em usar a História como ponto de partida para explorar a vida das personagens. Diria que sim, que é um romance histórico no sentido mais restrito do termo, mas, para mim, é um livro em muitas formas mitológico. Quando o estava a escrever, nunca senti que fosse um livro histórico estritamente realista. Senti sempre que havia um bocadinho dele que era épico, que era quase uma fábula. É uma forma de contar histórias sobre a qual me queria debruçar. Queria debruçar-me sobre o facto de a localidade no centro do livro [Mallard] ser um local que é real e que também não é real. Queria explorar isso, mas também queria que houvesse algo de realista e histórico.
Não é possível encontrar Mallard no mapa. É por isso? Porque queria criar um local que existisse e que ao mesmo tempo não existisse?
Acho que sim. E também porque muitos dos lugares que eram assim já não existem. É sempre interessante falar com pessoas que cresceram numa cidade que já não existe. Isso aconteceu em todo o lado, mas acho a ideia fascinante — vir de um lugar que tecnicamente já não existe. Queria debruçar-me sobre isso e sobre a mitologia que isso cria em torno da história.
Se uma pessoa vem de um lugar que já não existe, essa pessoa pode ser o que quiser. Não tem passado.
Sim. A ideia de vir de um lugar que já não existe é potencialmente libertadora, porque sentimos que fomos libertados de qualquer história ou passado. De um certo ponto de vista, há algo nisso que pode ser muito libertador.
Nos agradecimentos finais, diz que este foi um livro difícil de escrever. Porquê? Foi por causa da complexidade da trama? São tantas as personagens, os períodos, os temas…
Sim, sem dúvida. Acho que foi o livro em si. A forma, o alcance, a escala. Nunca tinha escrito um livro assim. É mais complexo e ambicioso. O livro em si, num vácuo, foi difícil. E também escrever um segundo livro, pelo menos para muitos dos escritores com quem falei, é uma espécie de pesadelo. Escrever um primeiro livro é muito libertador. Não existem expectativas, não há atenção. Escrevemos de forma livre. Com o segundo, torna-se mais difícil. Há pessoas que estão à espera dele. Não queremos desapontar as pessoas que gostaram do primeiro, mas não o queremos escrever outra vez. É psicologicamente desafiante. Foi desafiante dessas duas perspetivas: psicologicamente e criativamente. Mas tive muita sorte em ter um grande editor e agente, família e amigos que me apoiaram enquanto lutava com os muitos rascunhos do livro.
Sentiu a pressão?
Tive consciência disso. Nunca chegou ao ponto de não conseguir avançar [na história], mas era algo de que tinha noção e em que tinha de tentar ativamente não pensar. Não quero escrever de uma forma autoconsciente, no sentido de escrever em direção àquilo que as pessoas gostaram no livro anterior ou contra aquilo que não gostaram. De qualquer forma, isso empurra-nos para um canto, escrever para fazer a coisa de que gostaram ou para não fazer a coisa de que não gostaram. São ambos problemas quando estamos a tentar criar alguma coisa. Estava certamente consciente de que havia alguma pressão em relação a um segundo livro, mas, novamente, tive sorte de estar rodeada de pessoas que me ajudaram e afastaram alguma dessa pressão para que pudesse baixar a cabeça e acabar o livro.
E agora? A pressão é ainda maior.
Tento não pensar sobre isso. Tento mesmo não pensar sobre isso [risos]. Felizmente, não existe nenhuma urgência para [concluir] este novo projeto. Isso dá-me tempo e espaço para trabalhar nele. Mas é o mesmo sentimento: quero fazer uma coisa diferente do que fiz antes, não quero escrever A Outra Metade outra vez. A situação é semelhante. E espero que agora, que escrevi o segundo livro, o terceiro seja mais fácil. Mas vamos ver.
A Outra Metade foi nomeado para vários prémios literários e encontra-se agora entre os livros que compõem a shortlist do Women’s Prize for Fiction, que celebra a literatura escrita por mulheres.
É uma honra estar nomeada para o prémio. Houve vários livros interessantes que ganharam e que foram nomeados anteriormente e existem ótimos livros na lista em que estou nomeada. Acho que é um grande prémio e sinto-me honrada por estar na shortlist.
Tem sido comparada a importantes autores norte-americanos, como James Baldwin ou Toni Morrison. O que é que sente quando houve esse tipo de comparações?
São dois escritores que adoro. É obviamente uma honra enorme ser de algum modo comparada com eles. São escritores que cresci a ler e que continuei a ler e a identificar-me. Acho que são dois dos maiores escritores norte-americanos. É uma honra, e é muito surreal ser sequer mencionada na mesma frase que eles.