É um minhoto. Gente forte. Nasceu em Braga em 1944, estudou Direito em Coimbra sempre lado a lado com Lucas Pires (“ele era um expansivo, eu um retraído”), foi assistente universitário, fez um mestrado em Ciência Política, tem um doutoramento em Economia Internacional pela Universidade de Paris. José Luís da Cruz Vilaça tem 79 anos. Se perguntarem a alguém em Bruxelas e no Luxemburgo pelo seu nome, toda a gente sabe quem é: uma referência internacional no Direito Europeu, onde se notabilizou nas áreas do Direito da Concorrência e Direito Comunitário. Mas também lhe admiram a infatigável capacidade de trabalho, a cultura e as boas maneiras.
Esteve 16 anos no Tribunal de Justiça do Luxemburgo como juiz, mas antes disso houve a política: o 25 de Abril de 74, a fundação do CDS na qual colaborara empenhadamente, o trabalho com Lucas Pires e Adelino Amaro da Costa, as funções de deputado pelo CDS em Braga e Coimbra; e ainda o entusiasmo na formação da primeira Aliança Democrática (AD) criada por Francisco Sá Carneiro e, após a vitoria eleitoral de 1979, a entrada para os governos da AD. No primeiro, presidido por Sá Carneiro, como secretário de Estado da Administração Interna; nos seguintes, já com Balsemão, como secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e depois, da Integração Europeia.
Uma boa história sem fronteiras: conhece a Europa como a palma da mão, para onde continuam a requisitá-lo como consultor, conferencista ou simples “grande amigo”; e os Estados Unidos, onde lecionou em duas universidades norte-americanas. José Luís da Cruz Vilaça percebe com pena que tem havido um “down grading” na política portuguesa: não esconde a “profunda mágoa” pela agonia do “seu” CDS (“acredito porém que virá ao de cima”); lamenta profundamente a falta de visão para Portugal e assume com frieza a “falta de liderança no país”.
Felizmente para ele, a sua biblioteca está por estes dias a viajar de Lisboa para o Algarve, onde comprou uma casa. Uma alegria, apesar do escritório que fundou com o seu nome no regresso do Luxemburgo lhe deixar pouco tempo para arrumar milhares de livros nas novas estantes.
O seu nome é conhecido e reconhecido no Direito Europeu, onde se notabilizou em Direito Comunitário e da Concorrência, duas áreas de que se ocupou durante 16 anos no Luxemburgo. Para alguém menos informado ou sem formação jurídica, quer explicar porque ambas são indispensáveis ao Direito e à vida?
Vamos por partes. Começando pelo Direito Comunitário, hoje Direito da União Europeia, devemos aos Tratados das Comunidades Europeias, antes de mais, o período mais duradouro de paz e de prosperidade no continente europeu após o fim da II grande guerra. A construção da nova Europa começou pelo Mercado Comum, que permitiu abrir o comércio e o movimento de pessoas e serviços entre os Estados-membros. As sucessivas alterações dos Tratados a partir de 1986 (ano da nossa adesão) permitiram ir construindo uma Europa mais social, mais participativa. E apesar de muito mais ampla, também mais coesa, mais cidadã e mais política. Em particular, o euro e a Política Externa e de Segurança Comum permitem hoje à União afirmar-se como um dos três principais polos de poder na cena internacional.
O que exigiu a necessidade das áreas da sua especialidade?
Sim, porque entretanto se foi desenvolvendo um imenso corpo de legislação em domínios cada vez mais extensos, que constitui o corpo em permanente desenvolvimento do Direito Comunitário da União Europeia. O “milagre” é conseguir que este direito seja aplicado em todos os Estados-membros e a todos os cidadãos de maneira efetiva, uniforme e não discriminatória.
Quase uma “missão”?
É justamente essa a missão fundamental do Tribunal de Justiça que, em cooperação com os tribunais nacionais, constitui o “poder judicial” da UE. Ao contrário dos tratados internacionais clássicos, o direito da União não se aplica apenas aos Estados: cria direitos para os particulares, que estes podem invocar perante os “seus” tribunais nacionais (trata-se do efeito direto) e prevalece sobre o direito nacional em contrário (é o primado do direito da União). Os tratados constituem, hoje em dia, a verdadeira “Constituição” da UE.
E o Direito da Concorrência?
É a chave da competitividade e da prosperidade das economias europeias e o esteio do próprio mercado interno (como hoje se designa o mercado comum). Cada Estado-membro tem também as suas próprias regras de concorrência nacionais, baseadas no direito da concorrência da União, com o qual não podem entrar em conflito.
Vamos concretizar para clarificar: nos últimos anos vivemos cinco crises que, embora de natureza diferentes, nos bateram à porta com estrondo: a de 2008; a do euro; a da Covid; a da guerra da Ucrânia e a crise energética. Pergunto: qual a importância e a relevância que tiveram as “suas” áreas — Direito Comunitário e da Concorrência — no aplanar das dificuldades provocadas por essas crises? Ajudaram Portugal a lidar melhor com elas?
Nos anos recentes foram de facto as crises mais violentas, inéditas e mesmo, como a guerra na Ucrânia, inimagináveis na nossa Europa moderna. Portugal só conseguiu fazer face à crise financeira internacional e à do euro graças à ajuda internacional e dos seus parceiros no Conselho Europeu e, no momento crucial, à ação decisiva do Banco Central Europeu, liderado por Mário Draghi. E também com o apoio do Tribunal de Justiça, em acórdãos históricos nos quais confirmou a legalidade das medidas de apoio tomadas no plano da União. Custou-nos, é certo, um esforço brutal de austeridade…
Brutal, de facto…
… a severidade com que algumas regras foram aplicadas foi porventura excessiva e a necessária flexibilidade tardou a chegar. Mas isso foi também o resultado da leviandade com que alguns pensaram que o euro nos permitiria deixar de ser remediados de um dia para o outro e ignorar as disciplinas que estavam associadas à partilha de uma moeda única.
Alguém aprendeu alguma coisa?
A União Europeia mostrou ter aprendido a lição e está a trabalhar no ajustamento das regras que se revelaram demasiado rígidas. E quando se desencadeou a pandemia da Covid-19, montou, por iniciativa da Comissão Von der Leyen, uma operação de ataque conjunto a mais essa crise de dimensões mundiais, operação da qual os portugueses beneficiaram em momento oportuno e sem a qual teríamos sofrido muito mais e mais longamente. Devo dizer, aliás, que foi necessário encontrar uma base jurídica no Tratado, já que a União não tem, em princípio, competências em matéria de política de saúde. A necessidade faz o engenho!
Oxalá o engenho chegasse para a guerra da Ucrânia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou uma imediata resposta conjunta e um verdadeiro sobressalto regenerador das democracias ocidentais, associando a União e os seus membros aos Estados Unidos e à NATO. Apesar de não dispor ainda de uma verdadeira política comum de defesa, a União ergueu-se para fazer face ao maior dos desafios militares que o nosso continente teve (e tem) de enfrentar desde a II Guerra. De certo modo esta guerra obrigou a União a regressar às suas origens, ao seu ADN: baluarte da paz e da segurança no nosso continente. Estou convencido de que de tudo isto não pode deixar de resultar num reforço da política comum de defesa da União e, portanto, da sua posição de pilar europeu da NATO.
E a crise energética?
Para além de estar associada às mudanças climáticas e aos desastres ambientais, é um produto agravado da guerra desencadeada pela Rússia. Vai contribuir para o reforço da política comum de energia da União. E ainda bem. Não poderíamos fazer-lhe frente sozinhos. A política de concorrência da União e o direito que lhe serve de suporte têm, em matéria de energia, um importante papel para evitar situações de abuso e tentações de voltar atrás trinta anos na liberalização dos mercados…
Não é pouco…
… mas têm-no também em outros setores, como os transportes, de que a situação da TAP é apenas um exemplo de desnorte nacional em termos de auxílios de Estado, ou a revolução digital, onde é necessário encontrar um equilíbrio adequado entre o poder das novas plataformas, com a sua capacidade de inovação, e os interesses dos consumidores e de outros operadores económicos. Neste último setor, o “direito comunitário” acaba de se enriquecer com dois novos actos de regulação “não-ortodoxa” – o Digital Markets Act e o Digital Services Act.
Tanto desafio, quanto trabalho.
Sim muitos desafios juntos, mas deixo mais um, que apela aos riscos que podem correr — e correm — as democracias liberais: o da preservação e do reforço do Estado de Direito na União Europeia. Tem conhecido, nos últimos anos, ameaças sérias em alguns Estados-membros, sobretudo entre aqueles que aderiram à União no grande alargamento de 2004-2007. Mesmo na ausência de instrumentos eficazes no Tratado ao nível do Conselho e do Conselho Europeu, a Comissão e o Tribunal de Justiça têm cumprido a sua missão!
Todo esse trabalho de quem tem vindo a falar foi concretizado nos 16 anos que passou no Tribunal do Luxemburgo. Mas como se arrumaram, nesse período de tempo, as funções que lá desempenhou e os diferentes cargos que assumiu?
Em poucas palavras: cheguei ao Luxemburgo em janeiro de 1986, com a entrada em vigor do Tratado de Adesão, para tomar posse como advogado-geral: é uma das duas categorias de membros do Tribunal de Justiça, a outra é a dos juízes. Foi uma estreia estimulante, formadora e desafiante. Fiquei perto de três anos. Em 1989, por designação dos governos dos então 12 Estados-membros, tive a honra da presidência do novo Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias, instituído na sequência do Acto Único Europeu (hoje Tribunal Geral da União Europeia). Três anos depois, fui eleito pelos meus pares para um segundo mandato, até setembro de 1995.
Envaidecido?
Como imagina. Aos 44 anos foi uma extraordinária experiência de “institution building”! No final dos anos noventa decidi voltar a Lisboa em 1996, porque além da Universidade queria encetar uma nova carreira como advogado nas áreas de Direito Europeu e da Concorrência, o que me levou, após alguns anos de “abstinência” por razões deontológicas, a pleitear várias vezes perante os dois Tribunais.
Mas houve mais um regresso ao Luxemburgo?
Houve: dezasseis ou dezassete anos depois, em 2012, voltei para um mandato de seis anos como Juiz no Tribunal de Justiça. Foi o regresso a uma casa onde tinha sido feliz, embora uma casa muito maior — tinha havido já os últimos alargamentos — com novos colegas e novas e impressionantes instalações. E ao fim de três anos, fui eleito para presidir a uma das cinco grandes secções, o que, naturalmente, acarretou novas responsabilidades.
Sabe-se muito de Bruxelas, pouco sobre o Luxemburgo. Saiu das suas funções europeias coberto de elogios profissionais e pessoais. Como era o ambiente no Tribunal, as relações humanas, o trabalhar ali?
A verdade é que foram dos anos mais estimulantes e mais felizes da minha carreira. Num país onde passei várias fases da minha vida e onde nasceu a minha filha mais nova. E numa instituição que me recebeu sempre muito bem, com colegas de grande envergadura e excecional qualidade e onde fiz grandes amigos para toda a vida. As tarefas em qualquer dos dois Tribunais foram duras e exigentes, face a um constante aumento do contencioso, que requeria esforços crescentes para evitar atrasos nos processos e ainda por cima num ambiente multinacional, com pluralidade de línguas e onde se encontravam culturas e tradições jurídicas distintas. Apesar do multilinguismo nos processos, adotou-se logo uma língua de trabalho, o francês; os juízes que não a dominam têm de a aperfeiçoar, uma vez que nas reuniões e deliberações — secretas e confidenciais — não são admitidos assessores, nem intérpretes.
Mas como era a vida propriamente dita, o quotidiano, num lugar europeu tão pequenino?
As semanas eram passadas em audiências, deliberações de plenário e de secção, reuniões sobre o andamento dos processos, questões de administração e por vezes missões oficiais no exterior, dentro ou fora da União. O estudo dos processos era apoiado pelos assessores, mas exigia roubar muitas horas à família e ao descanso! Devo dizer porém que o Luxemburgo oferece o quadro ideal para uma instituição como o Tribunal de Justiça: um país pequeno, bonito, organizado, com um Riesling excelente, belos restaurantes em castelos antigos ou velhas quintas e uma alta qualidade de vida, habituado a acolher estrangeiros que lá trabalham e, muitas vezes, se radicam, incluindo uma grande percentagem de portugueses. E chegava-me ainda tempo para os concertos na Philarmonia — mesmo em frente ao Tribunal! — ou para dar um salto a Bruxelas e visitar os amigos que lá estavam, ver uma exposição ou participar nos encontros do Clube Português do Benelux, a que cheguei a presidir.
Fala com indisfarçável saudade desse tempo. E do Luxemburgo!
Ah, mas o regresso a Portugal esteve longe de implicar um corte com o Luxemburgo, ao qual fiquei ligado por laços afetivos profundos. Não admira: cheguei a ter la casa de família durante seis anos num sitio encantador e volto lá de vez em quando, para cerimónias, audiências no Tribunal, conferências. Como acontecerá dentro de dias para para um colóquio universitário sobre o projeto em de criar uma Super Liga Europeia de futebol fora do sistema da FIFA e da UEFA. Não posso alias esquecer que devo ao Grão-Duque Jean a atribuição e entrega pessoal de uma importante condecoração, a Grand Croix de l’Ordre Gran-Ducal de la Couronne de Chêne. E ainda por cima fui há dois meses eleito presidente da Associação dos Antigos Membros do Tribunal de Justiça da UE, o que me mantém próximo dos meus bons amigos do Tribunal e do mundo jurídico da UE.
Olhando para trás, nesses 16 anos, qual é a sua melhor, mais grata recordação? O trabalho feito?
Sim. Nós norteamo-nos por objetivos. O Tribunal de Justiça tem neste momento mais de mil processos novos a chegar a cada ano.
E ao fim do ano estão concluídos?
Não há um único processo em atraso. O que explica que a primeira coisa que mais me agradou foi trabalhar num tribunal capaz de apresentar aos cidadãos europeus este resultado. Que é o fruto do esforço e da capacidade de organização com milhares de funcionários. Temos o nosso património comum, o nosso tesouro, que é a nossa jurisprudência – mas às vezes afastamo-nos dela. Outra das coisas que sempre muito apreciei é que quer o Tribunal de Justiça, quer o Tribunal Geral a que presidi em tempos estão sempre, como dizem os franceses, “à l’écoute du monde”.
À escuta do mundo?
A ouvir e a ver o que se passa. Não se decide no vazio. Nunca decidimos assim.
Um belo dia, teve saudades da advocacia e voltou. Um dos “motores” do regresso foi o facto de saber por antecipação que trabalharia numa área em que iria ser pioneiro, justamente o Direito da Concorrência e o Direito da UE?
Podia ter continuado, optei por uma experiência profissional que verdadeiramente nunca tinha feito: a vontade de experimentar a advocacia na minha área — e que pouca gente fazia. Havia um punhado de especialistas, colegas por quem tenho muita estima e consideração, mas queria fazer esse tipo de advocacia.
Como olha hoje a Europa? Com o céu coberto de nuvens de incerteza ou há boas abertas?
Sempre tivemos nuvens, mesmo nos momentos melhores. Tivemos anos fantásticos na Europa, de paz, devido, em larga medida, à obra que se fez a seguir à guerra, com a criação de uma Comunidade Europeia. Foram anos de grande desenvolvimento, estabilidade económica e financeira. E desafios: o do euro, as tais crises financeiras, um alargamento imenso. Hoje as crises são novas e as sombras muito negras.
Refere-se à inimaginável guerra na Europa?
Era inimaginável, tornou-se realidade. A Europa está a dar resposta. A UE não tem competências em matéria de Defesa —compete a cada Estado-membro. Não obstante, a resposta dada pelos vários Estados europeus dentro da União Europeia tem sido acertada em conjunto na UE. Sim, há sempre vozes dissonantes, mas a resposta tem sido conjunta.
Não o preocupou a hesitação do chanceler alemão Scholz a propósito do envio de tanques para a Ucrânia? Ou a posição, no mínimo, um bocadinho ambígua da Alemanha face à Rússia?
Por minha vontade os tanques já lá estariam. Não esqueçamos porém a história da Alemanha no século XX. Sou casado com uma alemã cujo pai foi mobilizado forçadamente — fez um discurso a dizer mal do Hitler e mandaram-no para a frente russa, onde foi ferido. Os alemães têm esse trauma, embora capazes de o ultrapassar como ocorreu com a questão do envio dos tanques.
Mas é notório que tais ultrapassagens são por vezes seguidas de uma espécie de hesitação. Mesmo sabendo que o chanceler Scholtz tem o seu SPD dividido, parece que assistimos a uma valsa entre o avançar e o recuar.
Eu era fã da Angela Merkel. Acho que entrou muito bem, logo na crise do euro, foi fundamental. Mas teve fragilidades: acreditou que aquele homem que ela conhecia (Putin) podia transformar-se num líder palatável, e que a Rússia podia fazer parte deste conjunto de países que partilham dos valores da civilização ocidental.
Mas isso era não conhecer a história da Rússia.
Enganou-se, foi um erro de apreciação. Um “erro manifesto de apreciação” é uma figura que conhecemos bem da jurisprudência do Tribunal de Justiça.
A propósito da Europa referiu que apesar da Defesa competir aos Estados-membros, a UE está a agir bem, em “conjunto”. Vê com pessimismo as reticências de alguns nas ajudas à Ucrânia ou acha que o que deve ser feito na perspetiva da defesa dos valores ocidentais, do Estado de Direito e da liberdade está a ser cumprido?
Está a ser feito. Nunca teria havido resultados, nem nunca teria sido possível fazer recuar os russos — que não conseguiram chegar a Kiev — sem a resposta dada no quadro das instituições da União Europeia. Apesar de a UE não ter o seu exército nem os seus tanques, teve de coordenar isso tudo, e fê-lo, a meu ver, muito bem. Como na luta contra a Covid: não tem competências em matéria de Saúde, mas foi capaz de atuar com base no Tratado. E o Tribunal de Justiça teve esse grande mérito: deu a sua cobertura porque encontrou no Tratado a base para as intervenções que foram feitas.
Em 2022 foi protagonista de uma homenagem nacional e internacional que reuniu o melhor do direito europeu e das áreas onde trabalhou. Vieram expressamente a Lisboa felicitá-lo, oferecendo-lhe um “Livro de Amigos” escrito por eles. O Presidente da República fez uma intervenção e Paulo Portas, speaker da cerimónia, disse que “há domínios em Portugal que não seriam os mesmos sem a contribuição de José Luís da Cruz Vilaça”. De vaidoso passou a vaidosão?
Fiquei sensibilizadíssimo, fiquei comovidíssimo. Foi um grande momento! Uma das coisas que me enriqueceram ao longo deste percurso no Tribunal de Justiça e na UE foram as amizades que lá fiz. Fiquei com grandes amigos, e os grandes amigos aparecem sempre. Disseram coisas bonitas, que vivi com a minha família. E a minha filha mais velha discursou em nome da família.
Terceiro ato: a política. Ajudou a fundar o CDS e foi deputado duas vezes — por Braga e Coimbra — pelos centristas. Trabalhou muito de perto com Adelino Amaro da Costa e depois com Lucas Pires. Como eram ambos humanamente, intelectualmente, culturalmente, civilizacionalmente e politicamente?
Nunca falo deles sem me comover. Eram dois grandes amigos e dois grandes homens. O Francisco foi meu colega do primeiro até ao quinto ano da faculdade, em Coimbra. Formámo-nos ao mesmo tempo e ficámos como assistentes.
Nesses longínquos anos sessenta do século passado sentiam já a necessidade de intervenção, partilhavam do descontentamento com o regime, ou ainda não?
Éramos ambos insubmissos. Nunca tive ligações com o Antigo Regime – e sou de uma família conservadora, nasci em Braga, isso imprime caráter. Mas sentia grande desconforto com o panorama da sociedade portuguesa nessa altura. Havia um peso. Se calhar é por isso que fui para a Europa. O Francisco era mais expansivo, eu mais reflexivo. Ele escreveu livros magníficos numa altura em que era difícil fazê-lo, ainda no tempo do dr. Salazar.
O que é que um jovem deve lembrar de Lucas Pires e Amaro da Costa?
O Francisco Lucas Pires tinha gosto pela política. Pelo teatro também, fizera teatro em Coimbra, lembrava isso de vez em quando, sentia-se na política como peixe na água. E o Adelino era outro um peixe na água. Estou a falar de duas pessoas de enorme inteligência, mas também de grande inteligência afetiva e grande empatia. Eram bons políticos justamente porque eram também políticos empáticos. Dava gosto gostar deles. O Adelino de facto era um génio a lidar com as pessoas, quer da sua idade, quer de gerações mais novas.
Trabalhou com ambos?
O Lucas Pires era coordenador da Aliança Democrática (AD) fundada por Francisco Sá Carneiro em 1979, com o CDS, o PPM e o Grupo dos Reformadores. O Adelino era o pivô da atuação dos membros do governo que estavam no CDS, no primeiro governo da AD em 1980, liderado por Sá Carneiro. Nessa altura eu era secretário de Estado da Administração Interna — tinha por missão fazer aquilo que hoje em dia se chamaria a reforma do Estado. Agi com espírito reformista e com a vontade de reformar o Estado nos seus fundamentos, sem mudar as características do país, sem mudar as características da sociedade, nem moldar uma cultura centenária ou milenar. Agi movido pela vontade de reformar instituições que não estavam à altura dos desafios da era moderna.
E reformou? Deixou uma marca?
Estamos a falar de um período de menos de um ano, em 1980, em que tinha um mapa para seguir e um calendário de produção de atos legislativos muito importantes, desde a lei do recenseamento às leis eleitorais, até colaborar também na reforma da Constituição. Fez-se aquilo que foi possível fazer. Infelizmente não se fez mais também porque, desde logo, foi brutalmente interrompido pelo acidente de Camarate.
Pois foi. Mas do que dependia de si, alguma coisa melhorou ou desencalhou?
Começaram a reverter-se os efeitos da reforma agrária e a preparar-se a autonomização da economia e da sociedade relativamente ao Estado. Foi, sobretudo, com o ímpeto desta ideia de autonomizar a sociedade e a economia em relação ao Estado que atuou o governo de 1980. Infelizmente, tivemos um dissabor logo na primeira proposta apresentada, onde a oposição — em maioria na altura da votação — deu cabo do proposta, o que teve obviamente algum impacto na governação. Mesmo assim, deixaram-se preparadas uma revisão da lei eleitoral da Presidência da República e uma revisão da lei da nacionalidade; fez-se aprovar o estatuto dos estrangeiros em Portugal e o estatuto do refugiado. E deixou-se preparada também uma revisão da Constituição.
Para dez meses não parece mau.
E não é. Foram dez meses de trabalho extraordinário, muito intenso.
Lembro-me de alguns colegas seus desse tempo falarem da capacidade de liderança de Sá Carneiro e do espírito de equipa que havia no governo. Numa altura em que há muitos queixumes e desalentos no espaço à direita do PS, como era o fundador do PSD e líder da AD? Foi diversas vezes ao Conselho de Ministros: como é que Sá Carneiro o dirigia?
Sim, fui muitas vezes ao Conselho de Ministros, tive uma excelente relação com o dr. Francisco Sá Carneiro. Só intervinha quando era preciso: dava autonomia aos ministros, embora soubesse muito bem, e sempre, o que queria e o que considerava melhor para o país. O governo era um executivo de mudança, era preciso agir. E quando um debate começava a derrapar ou a empastelar-se, metia o assunto no bolso e passava-o para outra reunião. Nunca ficávamos o dia inteiro a discutir coisas impossíveis. Era alguém que tinha isto de notável: sabia ser líder e, ao mesmo tempo, sabia trabalhar com os outros. Trabalhei com ele nesses dossiês a que me referi, o primeiro-ministro ouvia, por vezes dava-me contributos, discutíamos as opções a tomar. Sempre tive provas suas de grande confiança e grande estima. Se tivesse continuado naquela senda, Portugal teria sido diferente e a história política portuguesa também muito diferente.
Mas a AD continuou e José Luís da Cruz Vilaça integrou os governos seguintes.
A AD continuou e continuou a fazer coisas muito boas. Sim, fiz parte também dos governos seguintes presididos pelo dr. Francisco Pinto Balsemão onde indubitavelmente se fizeram coisas. Basta pensar por exemplo nas negociações de Portugal com a Comunidade Europeia, para a nossa adesão.
Se alguém de fora, estrangeiro, lhe pedisse “Diz-me lá como é que está Portugal hoje”, o que é que dizia?
Falta aqui qualquer coisa, falta-nos qualquer coisa. Portugal sempre olhou muito para o governo para saber para onde vai. E, com todo o respeito que tenho pelas instituições e pelas pessoas, falta-nos um governo que saiba para onde quer ir e que depois seja capaz de transmitir essa ideia e esse ímpeto aos portugueses. É uma questão de visão, e era isso que o Francisco Sá Carneiro tinha e que o Francisco Lucas Pires e o Adelino Amaro da Costa também tinham: uma visão de futuro. Ao mesmo tempo que conseguiam fazer os portugueses partilharem dessa visão, fazendo-os compreender que valia a pena fazer esforços para colaborar numa ideia de futuro para Portugal. Além de que o país merece. Portugal tem-se portado muito bem no meio das dificuldades. Os portugueses merecem.
São melhores que a sua classe política?
Portam-se melhor que a sua classe política, têm mostrado isso na prática. Profissionalmente, têm demonstrado ser capazes de fazer o que quer que seja em qualquer parte do mundo, tão bem ou melhor do que os outros. Aproveitemos as vantagens de que dispomos: a vantagem de termos 10 milhões de portugueses em Portugal, a vantagem de termos humanos que temos de valorizar, temos coisas fantásticas para explorar. Pensemos no mar por exemplo — fiz o meu serviço militar na Marinha, ainda hoje conservo grandes amigos na hierarquia da Marinha: temos o mar, temos coisas fantásticas para explorar, e temos recursos humanos que temos de valorizar.
O que nos falta é liderança política com visão?
Falta-nos liderança. Compreendo que o primeiro-ministro tenha de estar muitas vezes lá fora, mas não pode nem deve deixar a retaguarda descoberta. Não podemos ficar ao sabor de bons ou maus feitios, ambições e estados de alma.
E o seu CDS? Apesar de ter apoiado publicamente a Iniciativa Liberal nas últimas eleições, o CDS é a sua casa?
Bem, tenho um espírito liberal e simpatia pelos liberais, mas o CDS… Ah, é uma mágoa. Não ver o CDS [representado na AR], que sempre foi o meu partido, é uma grande tristeza.
Se Rui Rio tivesse concorrido há um ano em listas conjuntas com o CDS, os centristas não se teriam sumido.
É verdade. Nem mais. Não perdi essa mágoa. Espero sinceramente que nem tudo esteja perdido. O CDS tem quadros excelentes, tem experiência política, tem ideias.
Esses quadros devem esperar que o CDS ressuscite ou o PSD devia propor-lhes qualquer coisa?
Sou especialista em concorrência, acredito na concorrência e acredito sobretudo no pluralismo. Precisamos de ter forças políticas que saibam o que querem para discutirem os seus projetos umas com as outras e para que os portugueses possam, com transparência e com conhecimento de causa, escolher entre elas.
Mas se o CDS não conseguir voltar à tona e se extinguir, o PSD devia ir buscar esses “quadros-sem-partido”? Não é a mesma coisa, mas já que falámos de Francisco Sá Carneiro ele também foi buscar os “Reformadores”, um grupo de gente fora dos partidos.
Respondo de outra maneira. É preciso alguém que represente, no Parlamento e no governo, aquilo em que o CDS acredita, e aquilo que possa representar o programa do CDS. Não vejo, exatamente, quem o faça neste momento. Por isso é que prefiro que o CDS tenha, agora, uma segunda chance.