“Só um burro não muda de ideias.” Uma conversa com o professor José Pacheco é como ir dos 0 aos 100 quilómetros em 2,28 segundos. Velocidade supersónica, ao volante de um Ferrari, versão radical. E não é sequer numa autoestrada limpa de carros. É numa pista, com cones de sinalização laranja, que nos obrigam a andar aos esses e, por vezes, a voltar ao ponto de partida. Para depois arrancar outra vez. Suavemente ou aos solavancos.
“Acho engraçadíssimo quando vejo na Assembleia da República horas de reunião para ver qual é o número de alunos por turma. Aqui ainda há turmas? Isto é a pré-história da educação.” O professor ri-se com vontade. Há 40 anos, José Pacheco começou do zero: numa escola pública, nos anos 1970, e com Portugal acabado de sair da ditadura, idealizou uma escola que foi pioneira no mundo e que hoje outras tentam imitar. Centrou a educação no aluno, o chamado paradigma da aprendizagem, ensinou sem turmas e sem dar aulas. Não chumbou ninguém e conseguiu que todos aprendessem. Funcionaram quase na clandestinidade, a tentar seduzir os inspetores da Educação que por lá passavam, até que, em 2004, assinaram o primeiro contrato de autonomia. Hoje, a Escola da Ponte, em Santo Tirso, perto da cidade do Porto onde o professor nasceu em 1951, não passa de “turismo educacional”, mas continua a ser referência em Portugal e no mundo.
“A Ponte não progrediu. Deixou de estar, cristalizou.” E é em 2,28 segundos que passa de um tom arrogante, fanfarrão, para um estado que parece ser de genuíno arrependimento, em que diz admirar profundamente os professores que lá continuam. E comove-se. “Tenho muito medo de estar a ser presunçoso e arrogante, todo os dias luto contra a arrogância e perco.” E pede, várias vezes, desculpas por estar a ser vaidoso.
Falar do poder político, de sindicatos e corporações ou do “obsceno silêncio” dos seus colegas das Ciências da Educação sobre o que se passa no ensino, deixa-o a falar alto, a gesticular, claramente incomodado. “Valha-me Deus”, diz com um v que se torna b, a denunciar a sua origem nortenha. E repete a frase de cada vez que a realidade o deixa nervoso. Em 2007, autoexilou-se no Brasil, zangado com Portugal: “Fiz tudo o que podia, mas cheguei a um ponto em que pensei que nada ia mudar. Achei que ia ficar tudo igual, mas estava errado.” De lá, traz também pronúncia brasileira. Talvez por isso é que diz “dar aula”, sempre no singular, palavra que repete 72 vezes ao longo de uma entrevista que demorou o dobro do esperado.
O objetivo era falar do paradigma da aprendizagem, numa altura em que a maioria das escolas ainda não chegou lá, com o homem que diz que “dar aula é um escândalo epistemológico no século XXI”, ou que Rudolf Steiner, fundador da pedagogia Waldorf, e Maria Montessori, educadores do século XX, são “fósseis da educação”.
Chegámos tarde. José Pacheco já seguiu para outra, já rejeita que o centro seja o aluno, diz antes que centro é a relação entre professor e estudante, aquilo a que chama paradigma da comunicação. Veste o papel de entrevistador e não se inibe de responder a perguntas com outras perguntas, algumas que nem ele próprio sabe responder.
Hoje quer uma escola aberta 365 dias por ano — “Se um hospital e uma igreja não fecham… Será que a inteligência pára de funcionar em junho e volta a funcionar em setembro?” — e com horários diferenciados para alunos. “Porque é que todos têm de entrar à mesma hora? Porque gostam de engarrafamentos, é?” Acaba a dizer que está pronto para dar aulas, o tal escândalo epistemológico do século XXI, com o objetivo claro de acabar com elas.
Numa conversa futura, já estará noutra fase. O seu atual projeto é sobre paradigma de comunicação e comunidades de aprendizagem. A seguir? “Faço outro projeto para acabar com as comunidade de aprendizagem, deve haver uma coisa melhor.” E ri-se. Muito. “Todo o mundo é composto de mudança. Sou um ser incompleto, tenho sede de aprender.”
Como é que conseguiam ter a Escola da Ponte a funcionar como funcionava, sem o poder político ir lá chatear?
Foi lá chatear e muito. Mas aceito isso, o poder político tinha toda a razão em ir chatear: lei é lei. A Escola da Ponte tem 43 anos de existência e teve três grandes períodos. Antes da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, fazíamos tudo de uma forma bem discreta para que ninguém percebesse. A partir daí, agarrámos-nos ao artigo 45.º — que agora é o 48.º — que diz que, nas decisões de políticas educativas, devem prevalecer critérios de natureza pedagógica. Depois veio a lei de autonomia das escolas, em 1996, e agíamos até um pouco arrogantemente — eu era um vaidoso, tínhamos conseguido, contra tudo e contra todos, fazer algo pela primeira vez no mundo. Passar do paradigma da instrução, da aula, do centro no professor, no currículo por escrito, para o centro na aprendizagem, o centro no aluno, o aluno que é autónomo, o chamado protagonismo juvenil. Foi a primeira vez e numa escola pública. Só me apercebi disto depois, quando comecei a percorrer o mundo. Depois, em 2004, foi assinado o contrato de autonomia e é terceiro período.
Na altura não tinha noção do que estava a fazer? De que estava a ser pioneiro?
Nada. O que fazíamos era partir daquilo que todo o professor tem, amor pelos alunos. Percebíamos que dando aula estávamos a negar o direito a educação a muita gente. Tomámos uma decisão ética. Não foi técnica, nem metodológica. Se do modo que trabalhávamos, com aula, turma, trimestre, não ensinávamos todos, precisávamos de procurar outra forma e agimos por amor e intuição. Naquele tempo ninguém falava dos Piagets e dos Vygotsky deste mundo… Mais tarde, compreendi que fomos os primeiros. Quando visitava escolas Waldorf, na Alemanha, eles diziam que praticavam o centro no aluno. Mas não. Davam aula. Tinham várias atividades em que, de facto, o centro era o aluno, mas davam aula. Era uma espécie de esquizofrenia: diziam que o centro é o aluno, mas centravam no professor. Não tenho nada contra Waldorf e acho admirável a proposta de Steiner. Quando mudámos para o paradigma da aprendizagem, precisámos de uma lei que nos permitisse modificar as coisas e ela surgiu na forma da lei da autonomia das escolas. Mas mais adiante houve dois ministros que prejudicaram muito.
Quem foram esses ministros e porquê?
Não vou dizer quem foram os ministros, peço desculpa. O nosso contrato de autonomia previa que de três em três anos se fizesse uma avaliação externa — veja quantas houve — e que, se não fosse satisfatória, o Governo poderia terminar o contrato ou alterá-lo. Tenho todos os relatórios e todos são excelentes.
Sempre avaliação externa?
Sempre. Comissões nomeadas pelo Ministério da Educação. Agora uma inconfidência, mas tenho de dizer isto. Recordo-me da primeira equipa de avaliação: foi encomendada para acabar com o projeto.
Encomendada por qual ministro?
Não vou dizer, não devo. Mas vou dizer quem admiro: as três pessoas da Universidade de Coimbra que fizeram a avaliação — o mais velho já deve ter morrido, era bastante idoso, as outras professoras devem ser vivas. Quando ele acabou, descobriu, num estudo comparativo, que, ao longo dos 20 anos que a Ponte mandou alunos para a EB2/3, os nossos alunos tiveram sempre melhores notas em todas as disciplinas. Mas o que constava por aí era o contrário. Sabe o que ele me disse no fim? ‘Professor, nós fomos industriados para acabar com isto. Mas se precisar de nós em qualquer lugar, para prestar depoimento, conte connosco. Vamos a qualquer lugar dizer que este é um projeto de excelência académica.’ Foi lindo, quase chorei naquela altura, fiquei muito emocionado pela franqueza daquele homem.
Quando fala de ministérios a prejudicar a escola refere-se a quê?
O período, que vem até hoje, foi marcado por muito prejuízo. Em 1996, Ana Benavente, quando estava na secretaria de Estado, entendeu que entre os muitos professores que poderíamos contratar, dois ou três poderiam ser diretamente escolhidos pela escola por concurso universal. Assim fizemos. Mais tarde, houve ministérios que, mesmo perante avaliações externas extraordinárias, me proibiram de contratar professores para o projeto. Punham lá professores que não sabiam o que iam fazer, só queriam dar aula. Acho muito bem que deem aula, mas noutro lugar. Aula é um escândalo epistemológico no século XXI. É inadmissível que se continue a trabalhar daquele modo. A Ponte acabou por se remeter para uma posição, como costumo dizer a brincar, de turismo educacional. Não progrediu. Um projeto deve estar sempre em fase instituinte, é um dos critérios de inovação. Deixou de estar, cristalizou. Tenho muito respeito por aquela gente, saí da escola há 15 anos, mas ainda penso muito neles. A história da Ponte é uma história de sofrimento e resiliência. Um dia vou escrever sobre isso.
Esse sofrimento tem muito a ver com os primeiros anos? Funcionavam quase na clandestinidade?
Sempre. Só que fomos descobertos.
Quem é que vos descobriu?
Um inspetor. Depois ficou meu amigo.
Inspetor da Direção Geral de Educação?
Sim, era o Nelson. Depois veio outro, também maravilhoso, mas já não me lembro do nome. E um outro, o inspetor Aiveca, que homem extraordinário. O que aprendi com ele… Quando os inspetores se despojavam do seu autoritarismo e passavam a ser pessoas, entendia-me com eles. Sou muito teimoso.
Mas como foi esse episódio com o inspetor? Como é que foram descobertos?
Acho que vou cometer uma imprudência… Conto-lhe aquilo que posso contar, há coisas que só poderei contar a título póstumo. São coisas em que ninguém acredita… Bom, mas quando vinham os mapas para preencher, quantas turmas, quantos alunos reprovaram, nós não tínhamos nada disso. Então, inventávamos. ‘Põe aí 190 no 1.º ano, 200 e tal no 2.º ano. Põe metade rapazes, metade raparigas’, dizia eu. Um dia fomos apanhados com a boca na botija, só que tivemos sorte porque era um inspetor extraordinário. Ele só dizia: ‘Isto admite-se? Tenho aqui os vossos mapas e não vejo nada disto.’ Foi muito interessante. Primeiro, o inspetor foi muito ostensivo. Entrou na nossa sala, nem pediu licença. Pediu-me para parar o trabalho e eu disse-lhe para esperar. Ficou bravo. E perguntou-me pela planificação da aula. E eu disse que ali não havia aula. ‘Como não? Então que ano é este?’, disse ele. ‘Nenhum. São todos misturados’, respondi. Ele viu que estava tudo fora. Depois disse-me que a planificação era obrigatória. E eu mandei-o ir de aluno a aluno para ver a planificação que estavam a fazer. Ao fim de três alunos, vem ter comigo e diz que cada aluno tem um plano diferente. Eu respondi: ‘Pois é, então acha que posso fazer um plano igual para 160 estudantes?”. Ele sorriu e disse: “Vamos tomar um cafézinho?” (Risos) Foi muito bom. Isto foi em 1982.
Ou seja, acabava por conseguir seduzir quem lá ia com os resultados obtidos?
Nem sempre, foram lá três inspetores que fizeram o contrário, mas acabou bem. É uma questão de sorte ou azar. Não digo que a Ponte seja um trabalho perfeito, longe disso. Hoje já nem tenho a Ponte como referência. Hoje trabalho dentro de escolas, que não são prédios, são pessoas, onde trabalho com referência ao paradigma da comunicação no Brasil, na Argentina, no Chile. Estive há pouco tempo na Índia, onde estava Singapura ????, o primeiro lugar no PISA, Austrália, o mundo inteiro… E aquilo que eu mostrei foi o melhor. Peço desculpa pela arrogância, mas foi. O resto era gente muito boa, muito inteligente, mas ainda estão na Escola Nova e em Montessori.
Ainda hoje estão na Escola Nova, em 2019, o sítio onde a Escola da Ponte estava nos anos 1970?
Exato. Tenho muito medo de estar a ser presunçoso e arrogante, todo os dias luto contra a arrogância e perco. Quando digo estas coisas é com toda a consideração por quem dá aula e por quem está no paradigma da aprendizagem. Quando falo do paradigma da comunicação, de Paulo Freire, Lauro de Oliveira Lima, digo sempre que aproveito tudo do paradigma da aprendizagem e até do paradigma de instrução. Não sou maniqueísta. Aproveito tudo o que for útil e proporcione melhores aprendizagens. E sobretudo que crie uma nova construção social, que deixemos de ter um sistema de ensino, para ter um sistema de aprendizagem. Quando os professores me perguntam como é ensinam os alunos a fazer roteiros de estudo do currículo da subjetividade, respondo: ‘Dando aula.’ ‘Dando aula?’, perguntam-me. ‘Não é o que sabeis fazer? Então tenho de valorizar o que sabeis fazer’, digo eu. E perguntam-me se eu dou aulas. E respondo que há 40 e tal anos que não dou aula. ‘Então vai dar aula connosco?’, perguntam. E vou. Tenho dado muita aula. Adoro dar aula.
A sua posição está a baralhar-me. Então em que é que ficamos? Acha que se deve dar aula ou não dar aula?
Pode dar-se aula para acabar com a aula. Uma criança não nasce ensinada. Quando falo em dar aula, não falo do professor sozinho na sala de aula, falo em equipa. Um professor não transmite aquilo que diz, transmite aquilo que é. A aprendizagem é antropofágica: não aprendo o que o outro diz, aprendo o outro, pelo exemplo e pela imitação. Quando vou trabalhar numa sala de aula, trabalho com alguém, e trabalho perguntando. O que queres fazer? O que queres saber? O que queres ser? Não é o queres ser quando fores grande, isso é um insulto para as crianças. Depois parto das perguntas que cada um leva, da necessidade da própria comunidade para projetos. Deixa de ser uma aula tradicional, para ser uma aula onde se aprende a escutar, a pedir a palavra, onde se aprende a trabalhar em equipa. Como é que vou ensinar as pessoas a fazer roteiros de estudo ou portfólios digitais? Dando aula. Só que ao fim de meia dúzia de semanas já não há aula, porque os professores são todos inteligentes e amam os seus alunos. Acredito nos professores, quando deixar de acreditar neles, deixo de andar por aí. O que tenho visto é que são os professores mais renitentes, os que sabem dar melhor aula, aqueles que mais rapidamente aderem quando percebem que, do modo em que trabalham, não garantem a todos o direito à educação.
Portanto, já abandonou o paradigma da aprendizagem, de que a Escola da Ponte foi pioneira e que, pensava eu, era sobre aquilo que íamos conversar hoje, já que é aí que maioria das escolas está a chegar. Mas, afinal, já está noutro nível? No paradigma da comunicação?
E não hei-de ficar por aí. Aqui há dias perguntaram-me se não estava aposentado. Disse que sim. ‘Então porque é que anda por aí?’, perguntaram-me. Porque gosto de aprender e tento ser útil, disse eu. ‘O que é que está a fazer agora?’ ‘Um projeto.’ ‘Que projeto?’ ‘Estou a tentar criar no Brasil uma rede de comunidades de aprendizagem e agora também em Portugal.’ E a pessoa continuou a fazer perguntas: ‘Quando acabar esse, pára de fazer projetos?’ ‘Certamente que farei outro’, respondi. ‘Para quê?’ ‘Para acabar com as comunidade de aprendizagem, deve haver uma coisa melhor’, disse-lhe eu. (Risos) Todo o mundo é composto de mudança. Sou um ser incompleto, tenho sede de aprender. Na Educação, está tudo por fazer, ainda estamos na proto-história da aprendizagem. Estamos na fase do ensino, da primeira Revolução Industrial. Tenho trabalhado muito no paradigma da comunicação: aprendemos na intersubjetividade.
Explique lá o que é o paradigma da comunicação.
Para a aprendizagem acontecer, ela tem de ser significativa, integradora, diversificada, ativa e socializadora. Não vou falar das teorias… Mas a aprendizagem só acontece quando há criação de vínculo. Numa aula, a criação de vínculo é com um todo, um frontal anónimo. Precisamos de instituir uma forma de organização, aquilo que chamo uma nova forma de construção social de aprendizagem, criando vínculos afetivos, emocionais, éticos, estéticos, espirituais, até. Se quando estudava teve um professor de quem não gostou, não aprendeu nada. É na qualidade da relação pedagógica que se aprende ou não se aprende. Na qualidade da relação, na intersubjetividade.
No paradigma da comunicação o professor e o aluno são amigos?
Não, não, não, não. Os estatutos são diferentes, cuidado com isso. O professor companheiro é uma coisa dos libertários ingénuos. Criança não faz o que quer, criança quer aquilo que faz. É muito diferente, isto dá significado às coisas. Sentido. Mas já fui um não diretivo ingénuo e, durante 30 anos, acreditei que o centro fosse o aluno. Só os burros é que não mudam de ideias.
Já não acha que o centro seja o aluno?
Também é. Mas o professor também é, mas noutra qualidade.
Na escola tradicional, que critica, o centro era o professor. Na escola que ajudou a criar, o centro era o aluno. Qual é o centro agora no paradigma da comunicação? É uma simbiose?
Religam-se. O que tem de haver é uma reelaboração de cultura profissional. Sobre isso, a formação de professores está muito mal, porque reproduz o modelo tradicional. O professor deixa de preparar projetos para os alunos, para construir projetos com os alunos. Com. Na relação, a partir de necessidades, de desejos. Todos têm vocações e talentos para o seu projeto de vida. Posso dar-lhe um exemplo: ele chama-se André e tem síndrome de Down. Quando foi para a minha escola, já vinha de duas escolas com um relatório de psicologia que dizia que o aluno não ia aprender a ler nem a escrever. Já muitas tentativas tinham sido feitas. Não lhe perguntei o que queria aprender, perguntei-lhe o que queria ser. Respondeu que queria ser guarda-redes. Fiz um projeto de vida com ele, onde aprendeu a ler, a escrever, a contar, tudo. Fez um curso profissional e, se for à internet e escrever no Google ‘final do campeonato europeu de futebol de salão Portugal-Itália’, o guarda-redes é o André. É um ser realizado socialmente. E não conto mais porque me emociono muito. Temos de ajudar a construir vidas, a desenvolver talentos. Quantos génios são desviados daquilo que poderiam ser? Esse é o currículo da subjetividade. A educação é um direito público e subjetivo. Tenho de garantir que cada um é aquilo que quer ser.
Portugal sagra-se campeão europeu de futsal para atletas com síndrome de Down
E, como professor, consegue fazer isso numa sala cheia de alunos?
Sozinho, nunca. Por isso é que nós mudámos, o professor deixa de planificar aula e vai ensinar o outro a planificar, vai ensinar os alunos a serem autónomos, a saberem gerir o tempo e o espaço… Vai autonomizar o outro, não vai planificar a vida do outro. Aí está a manipular, está a impedir que o outro aprenda a gerir a sua própria vida. O professor não dá aula, aula é inútil, prejudicial. O que o professor tem é fazer é ajudar o aluno a construir roteiros de estudo, de currículo de subjetividade, de comunidade e de sustentabilidade ou consciência universal ou planetária. Quando professor constrói com ele, o aluno acompanha os processos de descoberta, encontra informação nos livros, nas bibliotecas, nas pessoas, na natureza, na internet. Onde é que se aprende? Pode ser numa escola, mas a escola não é um prédio, são pessoas. Quando? Quando se sente necessidade e se dirige para a informação. O professor tem de ensinar o aluno a desenvolver processos complexos de pensamento, pensar sobre pensar, metacognição. Vai ter de ajudar o aluno a saber selecionar informação na internet, se não perde-se. Tem de saber criticar a informação, saber se é aquela que precisa. Saber comparar informação, saber analisar, avaliá-las, saber sintetizar em palavras suas, saber comunicá-las. Mas… Posso fazer-lhe umas perguntinhas?
Claro.
Sabe fazer a raiz quadrada?
Com calculadora, sei.
Sem calculadora, não. Segunda pergunta: quantas vezes precisou de usar a raiz quadrada na tua vida?
Provavelmente, nenhuma.
Quando pergunto isto a mil professores num auditório, ninguém sabe. Por que é que a raiz quadrada faz parte das aprendizagens essenciais se ela não é utilizada por milhares? Quando precisar dela, vai à internet e aprende em cinco minutos. Procura porque precisa desse instrumento, desse algoritmo. Aprendeu a raiz quadrada? Sim. Fez testes sobre isso? Sim. Aprendeu? Não. Um teste nada avalia, ou melhor, avalia a capacidade de retenção na memória de curto prazo de determinada informação para debitar num papel e esquecer. A memória é esperta. Pergunto porque é que o currículo é prescrito? Porque é que tem de haver metas? Porque é que tem de haver aquilo tudo? Coisa curiosa: quando trabalhamos de outra maneira, no paradigma da aprendizagem, da comunicação, os alunos aprendem toda a matriz curricular. É curioso, não é?
Aprendem tudo mesmo sem existir um currículo obrigatório?
Exatamente. O currículo obrigatório diz que determinado objetivo tem de ser aprendido em determinado momento, de determinado ano, de determinado ciclo. Porquê? Se alguém me souber explicar, aceito. Vi crianças de 6 anos que trabalhavam a tabela periódica, vi crianças de 5 anos que trabalhavam a raiz quadrada, mas porque precisavam dela.
Na sua opinião, não é necessário haver um Ministério da Educação que define um currículo básico para todas as escolas?
(Risos) Usou a palavra ‘opinião’. Estou proibido de dar opinião, quando me perguntam o que acho, respondo que não acho. Sou formado em Ciências da Educação, e peço desculpa desta arrogância: não, não é preciso um currículo. Tem de haver uma série de aprendizagens essenciais.
Eles têm de aprender alguma coisa?
Sim, não digo o mínimo, digo o essencial. A partir daí, os currículos têm de ser tridimensionais. Um exemplo de currículo tridimensional dentro da área da consciência planetária: uma jovem de 9 anos pergunta à tutora se é verdade que corremos risco de extinção enquanto ser humano. Sabemos que sim, que a catástrofe está iminente. É olhar para as alterações climáticas, o buraco do ozono, o desmatamento, a elevação do nível da água do mar… Essa jovem tinha lido numa revista que a NASA estava à procura de planetas onde pudesse haver vida humana. Essa menina, aos 14 anos, foi convidada pela NASA e está em Washington. Desenvolveu um projeto, aos 10 anos, de vida humana noutro planeta. Trabalhou os objetivos todos: da Física, da Ciência, da Matemática, da Geografia, coisas do secundário, do ensino superior. Porque não?
Deixar ir a criança até onde ela pode ir, é isso que defende, sem metas?
Evidente. Essa história de falar de sobredotado é profundamente errado. O que ele tem é uma vocação bem explícita e um talento que tem de ser desenvolvido. O professor coitado, sozinho… Eu dei aula. Sei bem a minha angústia quando perguntei a tantos jovens analfabetos por que é que não tinham aprendido a ler. Tinham 15 anos, estavam na escola há 7 e continuavam na primeira classe, no tempo do Veiga Simão [Ministro da Educação Nacional (1970-1974) no Governo de Marcello Caetano]. Explicaram-me que a professora ensinava sempre da mesma maneira. Quando me disseram aquilo, tive uma sensação muito estranha, porque eu ensinava assim. Percebi que, se continuasse a fazer o mesmo, eles iam continuar a não saber ler. Estava proibido de fazer isso. Tive de ir aprender de outra maneira e eles aprenderam a ler nesse ano. Um dos grandes problemas é uma criança com 6 anos entrar numa sala onde a professora ensina todos ao mesmo tempo, da mesma forma, ignorando que têm diferentes ritmos. Ao fim de quatro meses, dizem que aquele aluno não acompanha os outros e que vai precisar de apoio. Até nas escolas particulares. Escolas que têm professores para dar explicação aos alunos, alunos esses que acabam nos centros de explicação. Isto é absurdo, é a cegueira branca do Saramago. Por falar nele, ele dizia que só se começa a ser velho quando se deixa de interrogar. A criança, quando vai para a escola, faz perguntas. Quando sai, já não faz. Essa perda, o deixar de se interrogar, quem sou eu, de elementar filosofia, é uma tragédia. Esse jovem chega ao fim do secundário a ouvir tantas respostas a perguntas que nunca fez, que desiste de perguntar.
Então vamos esquecer o currículo?
Vamos esquecer o currículo.
Vamos deixar que cada criança aprenda aquilo para que tem mais apetência? Não corremos o risco de ter crianças que são especialistas numa área e sabem muito pouco sobre outras?
Sim, mas um músico não tem de saber a lei de Boyle-Mariotte [relaciona a pressão e o volume de um gás], não precisa disso para nada. E, se um dia precisar, tem a internet. O que ele precisa é de aprofundar o conhecimento que tem na área da música para se realizar. Mas nós concluímos todo o currículo, como disse há pouco, coisa que não acontece nas escolas tradicionais.
As escolas não conseguem dar o currículo?
Tomei consciência disso quando fizemos a primeira prova de aferição, no ano 2000, ainda estava na Ponte. Fui indigitado para ser aplicador das provas. No manual dizia uma coisa que não entendi: colocar os alunos a uma distância prudente uns dos outros. O que é isso? No dia a seguir, como os meus alunos não sabiam o que era um teste, pedi-lhes que fizessem um. Na Ponte fazíamos o que diz a lei: avaliação formativa, contínua e sistemática. Arranjei um teste e mostrei-lhes. Foi muito engraçado, não sei se isto serve para uma entrevista… Tinha de ser feito em 50 minutos e, quando os alunos me perguntaram porquê, respondi que não sabia. Depois, queriam saber se acabassem antes dos 50 minutos se se podiam ir embora, e expliquei que não. Estava a ser tudo muito complicado. Chamaram-me: ‘Este texto é da Sophia de Mello Breyner, o Cavaleiro da Dinamarca, não é?’ Eles não tinham manuais, liam obras de autor completas. ‘Esta pergunta, o que é que o cavaleiro viu ao longe… Não vou copiar tudo o que está escrito no parágrafo, vou antes fazer uma setinha e o professor lê o que está escrito no texto.’ O aluno estava correto. Então, expliquei-lhe o que era uma transcrição, uma pergunta aberta, fechada… Começaram a fazer o teste e eu fiquei na sala, eles mandaram-me embora, diziam que estava ali a perder tempo. E há um aluno que diz: ‘Na minha escola antiga, quando havia teste, o professor ficava na sala para evitar que se copiasse.’ E um dos outros perguntou: “O que é copiar?” Aí caí em mim. Estava calado, mas o não verbal falava mais alto. Estava a agir no pressuposto de que os alunos são desonestos e os meus alunos não sabiam o que era copiar. Estava a transmitir valores errados, da mentira, da desconfiança, da corrupção. Temos que perceber que os valores que temos são passados no mínimo pormenor e que a reprodução social acontece — a escola é um instrumento de reprodução social, quando devia ser um instrumento de produção de conhecimento. Não tenho soluções, nem quero convencer ninguém. Quero que as pessoas pensem. E que não tenham medo de falhar. Sei que há muitos obstáculos, e o maior sou eu e a minha cultura profissional. Fui preparado para dar aula.
Mas é compreensível que um professor que só aprendeu a dar aula, dê aula. Se lhe perguntar como vai passar conhecimento, responde que é dando uma aula. Consegue responder outra coisa?
Não, e respeito essa resposta. O que não posso respeitar é o obsceno silêncio das Ciências da Educação. Fui o primeiro licenciado em Ciências da Educação e segundo mestre, mas isso não quer dizer nada. Quando fui para o primeiro curso de Ciências da Educação, levava 20 anos de Escola da Ponte. E compreendi que a formação inicial estava mal. Os colegas que tinha, hoje são todos professores universitários, escrevem livros sobre paradigma da comunicação, mas dão aula centrada no professor. O que fica? É a aula. A formação é isomórfica, o modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Na formação inicial, a maioria dos professores diz que o centro deve ser o aluno, mas eles dão aula centrada no professor. Não é esquizofrénico? A flexibilidade curricular quando a vejo ser entendida como acrescentar uma disciplina, ou juntar um professor do 1.º com o 2.º ciclo, ou por uma hora a mais ou menos de Matemática… Não é isso. Gestão flexível é uma nova construção social da educação, não é o que estão para aí a fazer. Fico muito espantado com o obsceno silêncio. É paliativo o que se está a fazer.
Então o que era preciso fazer? Repensar os cursos de formação de professores? Deixar de dar aulas aos professores? O que é que se faz?
Também fiz formação inicial de professores e, quando cheguei, perguntei aos meus alunos que estavam no final de curso de professor o que é que queriam saber. Responderam-me que não era assim, que o professor entrava, projetava uns acetatos e ia lendo o que lá estava escrito sobre Piaget e tal. Perguntei-lhes por que não liam em casa. Não sabiam. Não havia um propósito, não havia nada. O trabalho final era escrever o que dizia Piaget e Vygotsky. Isso não é produção de conhecimento, é cópia, não serve para nada. Quando chegarem a uma sala de aula, Piaget e Vygotsky não estão lá, eles estão entregues ao que vivenciaram. Fizeram 12 anos de estágio antes do curso, estiveram 12 anos a ouvir aula, levam mais quatro anos de curso a ouvir aula de alguém que diz que o centro deve ser o aluno.
Como é que alguém que foi assim formado pode chegar à sala de aula e fazer diferente? É isso que precisamos de fazer? Mudar tudo?
Não tenho soluções, tenho uma prática, uma praxis, e mais de 40 livros publicados (não tenho direitos de autor) em dez línguas. Escrevi um livro sobre inovação — agora tudo é inovação, apropriam-se do termo e fazem projetinhos para enfeitar a escola como uma árvore de natal. A formação não pode ser considerar que o outro é objeto a quem vou dar conhecimento. Professor não é objeto, é sujeito de autoformação. Na formação inicial de professores dá-se montes de teoria ou didática. Didática é inútil. Aula não ensina nada. O que o professor tem de fazer é consciencializar-se das suas dificuldades: não há dificuldades de aprendizagem, há dificuldades de ensinagem [Ensino é o ato de ensinar, ensinagem é o processo pelo qual ocorre a aprendizagem]. Não há alunos com necessidades educativas especiais, há professores com necessidades educativas especiais. Não há alunos deficientes, há práticas deficientes.
O professor também tem de fazer o seu próprio caminho como o aluno, individual?
Com outros. Ninguém aprende sozinho. Essa é a grande panaceia que está na moda: os computadores, as plataformas onde o aluno vai para consumir currículo. Currículo não é para consumir, é para produzir. Isso vai substituir o professor. Estamos no tempo da inteligência artificial, da globalização esquisita, da robótica, o wi-fi universal está aí a chegar, a internet das coisas….
Os alunos podem aprender com o computador e esquecer o professor?
Não só. Nas escolas que acompanho, todos trabalham com computadores. Mas também com livros, com pessoas, com natureza, fazem pesquisa em todo o lado.
Usam a internet como enciclopédia gigantesca?
Usam como fonte de informação, sabem pesquisar. E como comunicação com outros que estão a fazer os mesmos projetos.
E o professor?
O professor é uma pessoa que ajuda o aluno a autonomizar-se, pode ser um mentor… Ainda não sei como chamar a isto, ando à procura do termo… Não é coaching, não é orientador educativo, não é tutor… diria que é um designer educacional. O professor ajuda o outro, dos 0 aos 99 anos, 365 dias por ano, a construir projetos de vida. Vou contar como despertei. Um dia uma criança levantou o braço e disse que tinha uma dúvida. Estava a estudar como se faz a seda e tinha de estudar o bicho da seda. E qual era a dúvida? Num livro, leu que o ser vivo é o que nasce, cresce, reproduz-se e morre. Fiquei feliz, ele tinha aprendido e eu não tinha ensinado. E insisti: ‘Mas qual é a dúvida?’ ‘É que eu não concordo.’ Valha-me Deus, pensei, um fedelho destes… E ele disse-me: ‘Pense um pouco professor, se um ser vivo é o que nasce, cresce, reproduz-se e morre, então eu não sou um ser vivo, ainda não me reproduzi nem morri.’ Valha-me Deus, como é que não pensei isto?, questionei-me. Então, com um professor de Ciências, construímos um projeto e eu, adulto, com 29 anos, aprendi o que era um ser vivo e que não é nada daquilo que está nos livros. Todos os dias aprendia com aqueles miúdos. Aprendíamos na relação, na intersubjetividade. Foi aí que comecei a duvidar que o centro fosse o aluno, o não iluminado aluno.
Foi aí que chegou ao paradigma da comunicação?
Um pouco, foi quando comecei a ler autores brasileiros. Percebi que quem falou pela primeira vez sobre comunidades de aprendizagem foi Lauro de Oliveira Lima, de que ninguém fala, que escreveu, em 1966, um livro chamado “Escola da Comunidade”, onde falava de ócio criativo. Quem fala dele? Henry Giroux, da sociologia da Educação, que por sua vez foi companheiro de Paulo Freire, que escreve que nós aprendemos uns com os outros. Comecei a ligar tudo. Depois li Seymour Papert… Comecei a entrar no domínio das novas tecnologias e a perceber que aquilo que as escolas estavam a fazer era criar lixo digital e a fazer do computador um altar onde o aluno está preso, um monstrinho do ecrã, solitário.
A ama eletrónica?
Hoje já não é preciso chupeta, quando a criança chora dá-se uma consola de jogos. O que temos de fazer é dar ao jovem autonomia moral, intelectual. Fazê-lo perceber que a liberdade dele não acaba onde começa a liberdade do outro. A liberdade dele começa onde começa a liberdade do outro. Se o outro não é feliz, ele não tem direito de ser feliz. Ele existe porque o outro existe. Hoje trabalho onde trabalhou o mestre Agostinho da Silva, na Universidade de Brasília, e não posso falar muito porque me comovo. Agostinho era um ser extraordinário e fora do seu tempo. Dizia tudo o que estou a dizer. Eu não invento nada, tudo está inventado. Agostinho era um iluminado e, quando leio o que ele escreveu, vejo que sou um pretensioso. Há 50 anos, ele já dizia o que eu digo. E fazia. Agostinho dizia que a vida deve ser gratuita, o governo de criança e o homem não foi feito para trabalhar, mas para criar. Hoje diria cocriar. Agostinho falava do novo papel da universidade. Admiro-me, com alguma mágoa, que os meus colegas da Ciência da Comunicação permitam a farsa que está a ser a flexibilidade curricular.
A flexibilidade curricular foi uma das mudanças legislativas pelo atual Governo. Mas, apesar da publicação do decreto lei da Flexibilidade e da Autonomia Curricular, nem sempre as escolas usaram esses instrumentos. É essa a farsa?
Estou muito grato ao João Costa [secretário de Estado da Educação]. Pela primeira vez, tenho admiração por um governante. Se publicar isto que estou a dizer, não quer dizer que seja um adulador ou puxa-saco, é o que sinto em relação a esse homem. Criou, pela primeira vez, legislação que permite que uma nova construção social aconteça, desde que não seja deturpada, nem regulamentada de forma a ficar tudo na mesma. Esta portaria número 181/2019 é uma preciosidade normativa [define os termos e condições da autonomia e flexibilidade curricular]. Dá para fazer tudo. Peço desculpa pela minha emoção, por estar a falar mais alto e a gesticular, não consigo conter-me. Nós temos a última oportunidade. Espero que, se a geringonça ganhar, João Costa venha a ser ministro. Ele sabe. Imagino as dificuldades que ele tem tido. Estive no Conselho Nacional de Educação quando foi feita a reorganização curricular, sei bem o que aconteceu, o jogo político de bastidores que estragou tudo. Quando diziam que tinha de haver duas aulas semanais para a Cidadania, eu perguntava: ‘Só duas horas? No resto do tempo, o aluno não é cidadão?’ Depois diziam que temos de fazer aula projeto. E eu perguntava se o projeto não é todos os dias. Quando se meteram as organizações corporativas, as associações disciplinares, os sindicatos, os editores livreiros… Estragaram tudo. É difícil lidar com a política, imagino as dificuldades que João Costa tem tido. Tenho uma grande admiração por esse homem.
Acha que esta legislação da Flexibilidade Curricular é um passo em frente?
É a legislação possível. Ela diz que os critérios de natureza científica ou pedagógica se devem sobrepor aos critérios de natureza administrativa. Isto é evidente, está no artigo 48.º da Lei de Bases, mas nunca foi feito. Cortar uma hora aqui ou ali é cosmética. Não tem nada a ver com a portaria 181. Tenho muito medo da interpretação da lei.
Há escolas que estão a funcionar já de forma completamente diferente. A EB da Várzea de Sintra, por exemplo, onde não há turmas nem anos de escolaridade. Essa é uma verdadeira autonomia?
É o meu amigo António Quaresma. É um professor de 1.º ciclo que, com toda a diplomacia, conseguiu levar água ao seu moinho. Não quis convencer ninguém. É muito avisado e bom professor. Mas Portugal tem centenas de professores como o António, que têm de sair do armário, como costumo dizer a brincar. E é agora ou nunca. Foi a portaria 181 que me fez voltar a Portugal. Volto em outubro, para ir para o chão das escolas, trabalhar com professores como o António — e são tantos — criando núcleos de projeto. Uma escola não muda toda ao mesmo tempo e não podemos impor nada a ninguém, temos de respeitar aqueles que não querem mudar. Uma crença não se discute, mas aqueles que querem têm agora o 181. Aproveitem! Não enfeitem as escolas com projetinhos de novas tecnologias, de meditações, de hortazinhas… Não é assim. Não é por aí, também são importantes, mas não é por aí. É uma nova construção social que tem de acontecer.
Na Várzea de Sintra, há uma escola pública sem turmas, sem anos e sem testes
Acha que essa nova construção social pode acontecer em Portugal?
Perfeitamente, é viável. Para mim, é o último esforço. Estou quase com 70 anos, quero é ir plantar árvores. Estou cansado, muito cansado. O João Costa devolveu-me alguma esperança. E professores como o António, e outros como ele, deram-me um novo ânimo. É o meu último fôlego. E mato-me nestas viagens porque o corpo ressente-se. Enquanto houver professores que querem ser éticos, que saibam dar aula, mas que percebam que têm de dar aula para serem éticos, eu vou dar aula com eles. Respeito-os muito. Tenho um filho que dá aula, um extraordinário professor, e a sua escola é a que vai ter mais núcleos de projeto. Estou orgulhoso dele, mas não posso falar muito, comovo-me.
Foi-se embora de Portugal zangado e disse-me, antes da entrevista começar, que agora tinha motivos para voltar. É por causa destas mudanças legislativas? As escolas estão diferentes?
Fiz tudo o que podia, mas cheguei a um ponto em que pensei que nada ia mudar. Achei que ia ficar tudo igual, mas estava errado. Agora estou encantado, voltei este ano e volto em outubro. Se não aproveitarem isto que está agora aí como lei, tão cedo não vamos ter outra oportunidade. Se não aproveitarem, aí vou-me embora definitivamente.
Nesta escola, as salas de aulas não têm paredes. E os alunos não se queixam
Hoje discutimos se é possível ter uma escola portuguesa a funcionar com o método Montessori e o que a Várzea de Sintra faz é visto como uma grande inovação, mas a Ponte já o fazia em 1976.
Acho engraçadíssimo quando vejo na Assembleia da República horas de reunião para ver qual é o número de alunos por turma. Ainda há turmas? Isto é a pré-história da educação. Agora discutem se vão passar de trimestre para semestre. Valha-me Deus. O que é que é isto? Porquê semestre? Ou trimestre? Ou bimestre? Aprendemos 365 dias, 24 horas por dia.
Porque temos de nos organizar de alguma forma, não é?
Administrativamente, mas os critérios têm de ser de natureza científica. O que digo é que corremos o risco de continuar com panaceias e paliativos. Porque é que há ciclos? Na Ponte percebemos que não tem nada de haver ciclos. Nem tem nada de haver ensino secundário, nem ensino superior. Nem ensino inferior. Valha-me Deus.
Como é que íamos fazer isso?
Dando aula.
Sem semestres, nem trimestres, como fazíamos?
Porque é que há trimestre?
Não sei.
Ninguém sabe.
Mas como é que fazia? O ano letivo tem de ter um dia de início e um dia de fim, não é?
Quem disse? Porque é que todos têm de entrar à mesma hora? Porque gostam de engarrafamentos, é? Porque é que todos saem à mesma hora? Porque é que há intervalo? Porque é que a casa de banho do aluno é separada da do professor? Porquê?
Porque as escolas têm de se organizar de alguma forma, e esta é, para já, a única que conhecemos? Talvez por isso?
Em casa, há casa de banho do pai e do filho? Esquece. Eu faço perguntas a que ninguém responde. E quando as pessoas que não respondem continuam a insistir no absurdo, condenando muita gente ao abandono intelectual, ao analfabetismo, isso é um crime.
Mas conseguíamos…
Conseguíamos. Eu mostro-lhe, quer vir ao Brasil? E daqui a três anos eles vão mostrar como é possível que a escola funcione 365 dias. As escolas são pessoas.
Não há dúvidas que aprendemos em todo o lado, mas o que está a dizer não ter hora de entrada, hora de saída…
Não tem nada de ter.
Deixe-me acabar. Temos de saber se temos, ou pelo menos os governos têm sempre de pensar nisso, se há dinheiro e orçamento para pagar essas coisas.
Têm, com certeza.
Como se pagam equipas nas escolas que garantem portas abertas 365 dias?
Pagam menos até. E férias quando quiserem e quanto tempo quiserem. A pergunta é: a igreja faz férias?
Diria que não.
Então, a entidade a quem compete a saúde espiritual não faz férias. Um hospital faz férias? Não. Se chegar a um hospital com uma apendicite, estiver fechado, e voltar em setembro, o que é que acontece? Morre. Estou a falar a sério. Se aquela instituição que trata da saúde física e a que trata da saúde espiritual não fazem férias… Será que a inteligência pára de funcionar em junho e volta a funcionar em setembro? Nada se aprende em dois meses? Valha-me Deus.
Se essa sua ideia fosse para a frente, não poderia mesmo ter uma escola que ensinasse todos como se fossem só um.
Claro que não. Isso é impossível. Isso foi o que Comenius disse no século XVII. Comenius foi um monge, não sabia nada de educação. Ele disse que era possível ensinar a todos como um só e a revolução industrial do século XIX utilizou isso na Prússia, na Alemanha, na Inglaterra. Mas estamos no século XXI, não sei se já entenderam… Como costumo dizer, temos alunos do século XXI, professores do século XX a trabalhar como no século XIX. É um escândalo.
Neste seu livro mais recente, lembra que a arquitetura das escolas imita a das cadeias, com os seus pátios interiores e muros altos.
É. Soltam os prisioneiros no intervalo e eles soltam as energias. Têm as celas de aulas, como nos conventos de França, depois têm a disciplina, a hierarquia… Será que as pessoas são cegas? Será que aqueles indivíduos que fizeram Sociologia da Educação não estudaram Pierre Bourdieu? Valha-me Deus. Estudaram na aula, responderam no teste, mas esqueceram, porque não aprenderam. E continuam, como professores universitários, a ensinar o que não aprenderam, para que os seus alunos, que também não vão aprender, o ponham num teste, passem e tenham um diploma e sejam professores.
Um ciclo vicioso?
Pois é. E é isso que eu não perdoo, que continuem a pactuar com esta farsa. É preciso aproveitar a legislação, o decreto lei 54, o decreto lei 55, a portaria 181, para fazer o que é preciso: criar uma nova construção social de educação. Porque é que a educação familiar não está ligada à educação escolar? E social? E aos 2 anos a criança vai para o jardim de infância e a avó fica a vegetar em frente à televisão? Porque se quebra esta ligação geracional? O que é isto? Pensa um pouco professor, disse-me uma criança. Temos uma cabeça para pensar e um coração para sentir, e é preciso que o sentimento seja coerente com a palavra. E que a palavra seja coerente com a ação. E não é. Não sou moralista. Não sou ético. Tento ser, todos os dias tento. Cada dia ponho em causa as minhas crenças e duvido das minhas verdades. Um educador é um ser incompleto, que tem de aprender com os outros, na relação, em qualquer lugar.
Existe para si uma escola perfeita, ideal?
Há 47 anos estudei dois livros fundamentais para mim: ‘O Personalismo’, de Emmanuel Mounier, e o ‘Ensino Individualizado’, de Robert Dottrens. Depois estudei Maria Montessori, estudei Ovide Declory, estudei John Dewey, William Heard Kilpatrick, tudo o que é metodologia de projeto. Estudei Steiner. Estudei e foi membro do Movimento Escola Moderna, com muito orgulho. Só que o Movimento Escola Moderna está na Escola Nova, ou seja, o centro é o aluno — e não é porque se continua dentro da sala de aula — com todo o respeito que tenho por toda essa gente e esse genial Sérgio Niza, maravilhosa criatura com quem aprendi tanto. Mas também aprendi com António Sérgio, com Bento Jesus Caraça, com Agostinho da Silva, que dizem outra coisa. Depois foi para a taxonomia de Bloom, para tudo o que era novas tecnologias. E toda a gente dizia que o centro deve ser o aluno. Eu era um indefectível da Escola Moderna. O centro é o aluno. Não é! E isto vale-me um estigma: agora os meus amigos Waldorfianos, os meus amigos Montessorianos, que são as tribos, estão zangados comigo. Compreendo.
Estão zangados porquê?
Porque são Montessorianos e não são outra coisa. São Waldorfianos e não são outra coisa. E, que eu saiba, Waldorf não é inovação, foi há 100 anos. É um fóssil. Montessori foi em 1907, é um fóssil. Tudo o que Steiner escreveu é atual. Certo… Espero que, nos próximos 50 anos, a escola consiga recuperar o atraso que tem, para que seja um locus de aprendizagem, de produção de conhecimento, porque não é. Isso vai acontecer, certamente, já não no meu tempo. Faço a minha parte e faço um convite àqueles que sabem dar aula: deixem-me ir dar aula com eles. Não quero convencer nada, nem ninguém. Quero apelar ao sentido de responsabilidade perante os seres humanos que temos à nossa frente.
Costuma contar que, quando era mais novo, os críticos diziam-lhe que, quando fosse mais velho, ia ter juízo. O que lhes diz agora?
É desconfortável. Há 40 e tal anos, já sabia que dar aula não valia a pena, e dizia: ‘Colegas, eu sei que dando aula não ensino’. A resposta era a mesma: ‘Ah, você é jovem, é utópico, quando for velho vai ter juízo.’ Hoje, em congressos, pergunto: ‘Colegas continuam a dar aula? Numa aula não se aprende nada’. Ninguém diz que sou jovem, que sou utópico, por uma razão muito simples: provei que dando aula não se aprende e que deixando de dar aula, dando aula para deixar de dar aula, toda a gente aprende tudo. E respeito o direito à educação. Ou seja, estou velho, estou utópico, permanecerei utópico, porque eu não sei nada — sei algumas coisinhas —, mas o que sei daqui por alguns anos já não é conhecimento. Ninguém contesta. Quando contestam, eu faço duas ou três perguntas e tudo se desfaz. Não estou velho, estou idoso. Velho é aquele que deixa de perguntar. José Saramago.