Olhos vermelhos, lágrimas e pele das mãos e da cara a descamar. Estes são os sintomas que o oligarca russo Roman Abramovich e dois negociadores ucranianos, que têm participado nas reuniões entre Ucrânia e Rússia para tentar chegar a um entendimento sobre a guerra, terão apresentado. As suspeitas são de envenenamento, avançou o Wall Street Journal, e o bilionário poderá ter sido envenenado no início de março, em Kiev, durante uma das reuniões de negociação. O governo ucraniano desvalorizou, falou em “especulação” e a agência Reuters cita uma fonte norte-americana, que indica que o oligarca russo se terá sentido mal. O Kremlin reagiu esta terça-feira à notícia das suspeitas de envenenamento, desmentindo as informações avançadas pelo Wall Street Journal. De acordo com a Reuters, a Rússia diz que a história de Abramovich faz parte de uma “guerra de informação”.
Mas as suspeitas de possível envenenamento apontam para um responsável — a Rússia. E, a confirmar-se, esta não é a primeira vez que Moscovo utiliza agentes tóxicos para colocar fim à vida daqueles que considera seus inimigos. Aliás, a Rússia foi o primeiro país a criar uma arma química: o novichok ou, em português, o recém-chegado. Esta substância terá sido usada na tentativa de envenenamento do opositor russo Alexei Navalny, mas nasceu na União Soviética.
As armas secretas russas para matar de forma silenciosa não ficam por aqui e há ainda o efeito das dioxinas ou do polónio-210 disfarçado no chá. E os últimos anos têm sido ricos em exemplos sobre a forma como a Rússia atua e como utiliza armas químicas para matar. Aliás, as duas investigadoras que analisaram durante quatro meses a tentativa de envenenamento de Navalny referiram que só uma organização estatal conseguiria ter acesso ao novichok e teria “o conhecimento necessário para manusear e desenvolver novas formas” desta substância. Este envenenamento “corresponde a uma tendência, observada há décadas, de assassínios ou tentativas de assassínio contra cidadãos russos e críticos do Governo, dentro ou fora do país”, acrescentaram.
Se Abramovich foi vítima de uma tentativa de envenenamento pelos russos, se foi um dano colateral de uma tentativa de atingir os negociadores ucranianos ou se houver, sequer, uma tentativa de envenenamento são ainda questões em aberto. Mas outros casos, de um passado mais ou menos recente, foram lançando suspeitas fortes de que, para a Rússia, essa é uma via válida para lidar com opositores e críticos do regime de Moscovo.
Alexander Litvinenko
Alexander Litvinenko, ex-espião do KGB, morreu em Londres, em 2006. Adoeceu e esteve internado durante três semanas. As análises laboratoriais feitas na altura indicaram envenenamento por polónio-210 — o primeiro envenenamento por radiação conhecido até agora. O antigo espião e opositor russo trabalhava para o MI6, os serviços secretos britânicos, e acredita-se que este tenha sido um dos motivos que levou a Rússia a envenenar Litvinenko, que estava exilado no Reino Unido.
Esta substância é facilmente identificada através de análises, mas é muito difícil perceber qual o momento e local em que a pessoa teve contacto com o polónio-210. João Braz Gonçalves, do Instituto de Investigação do Medicamento da Universidade de Lisboa, explica que a ação deste agente tóxico não é imediata, tendo uma ação gradual. “Existem algumas características, afeta sobretudo os órgãos que estão a produzir células, como a medula óssea”, explica o professor da Faculdade de Farmácia. É por isso que, nestes casos, um dos primeiros sintomas é a queda de cabelo. Outro sintoma poderá ser visível na pele, quando esta começa a descamar — tal como poderá ter acontecido com o oligarca russo Abramovich. No entanto, esta avaliação só poderá ser confirmada depois de análises laboratoriais.
O polónio pode ser inalado ou ingerido e “basta um ou dois contactos para afetar” os órgãos internos, continua a explicar João Braz Gonçalves. Neste caso, pode ser usada um spray ou um conta-gotas. Voltando à morte de Litvinenko, nunca foi apurada a forma como foi envenenado, sendo certo que Andrei Lugovoy e Dmitry Kovtum foram mandados ao Reino Unido, pelo Kremlin, para matar o ex-espião e o envenenamento terá ocorrido durante um encontro entre os três homens.
Viktor Iushchenko
Além do polónio, existem outras substâncias que podem ser entendidas como venenos silenciosos: as dioxinas. Aqui, está também em causa “um tipo de intoxicação em que não conseguimos saber a causa”, indica João Braz Gonçalves, acrescentando que quem as utiliza fica sempre protegido, porque não é possível saber quando e onde estas substâncias foram utilizadas.
Um dos casos em que se recorreu a dioxinas teve como alvo Viktor Iushchenko, opositor do governo ucraniano pró-Moscovo de Viktor Ianukovich, que teve de fazer várias cirurgias ao rosto e ainda hoje tem as marcas de uma substância que pode começar por afetar o fígado ou mesmo o cérebro. Cansaço e falta de força nos músculos são outros dos sintomas, explica o especialista em farmacologia.
Mais uma vez, a Rússia afastou qualquer envolvimento no caso, mas o modus operandi é semelhante nos vários casos já conhecidos. O caso de Viktor Iushchenko aconteceu em 2004 e terá sido envenenado durante refeições que juntaram este candidato e vários funcionários dos serviços de segurança ucranianos. O candidato foi internado em Viena, onde foram detetados elevados níveis de dioxinas no organismo.
Alexei Navalny
Um dos grandes opositores russos foi envenenado com o gás nervoso novichok, em 2020. Alexei Navalny esteve em coma induzido perto de um mês e, mais uma vez, a Rússia sempre negou o seu envolvimento nesta tentativa de homicídio. No entanto, além da ONU, já antes a Alemanha tinha exigido explicações a Putin, alegando o seu envolvimento neste caso.
Navalny adoeceu durante um voo que ligava Tomsk a Moscovo, tendo o avião sido obrigado a aterrar com urgência. Este russo com raízes ucranianas juntou-se, há cerca de 20 anos, ao Partido Democrático Unido Russo, o Yabloko, conhecido pela vincada oposição a Putin. Durante anos, organizou protestos contra o Kremlin e denunciou corrupção no governo russo.
De acordo com as informações avançadas pela imprensa internacional, em 2020, a propósito do seu envenenamento, esta tentativa de homicídio terá sido feita através de um chá — poderá ser semelhante à de Iushchenko, que aconteceu durante as refeições.
O hospital de Berlim, onde Navalny estava internado, confirmou a presença de uma substância radioativa chamada novichok. Este envenenamento aconteceu em pleno século XXI, mas o agente tóxico foi mesmo desenvolvido no século passado, pela ainda União Soviética, nas décadas de 70 e 80, no âmbito do projeto cujo nome de código era “Foliant”, no Instituto de Investigação de Estado para a Química e as Tecnologias Orgânicas.
Sergei Skripal
Tal como Navalny, Sergei Skripal e a sua filha, Yulia Skripal, estiverem em contacto com a substância criada pela União Soviética. E aconteceu exatamente o mesmo: a Rússia sempre negou qualquer ligação a este envenenamento. Skripal foi um agente duplo russo, que enviava informações confidenciais do Kremlin aos serviços secretos britânicos. Aliás, este antigo espião vivia no Reino Unido desde 2010.
Na altura do envenenamento, estavam no Reino Unido cidadãos que estariam a trabalhar para os serviços secretos militares russos. Estes cidadãos terão chegado ao Reino Unido e deslocaram-se até Salisbury, onde vivia Skripal. O ex-espião e a filha foram encontrados inconscientes num banco que ficava à frente de um centro comercial daquela cidade.
Neste caso, a substância terá sido pulverizada na maçaneta da porta de casa de Skripal e poderá ter sido nesta altura que o ex-espião e a filha tiveram contacto com o novichok.
Anna Politkovskaya
Jornalista da Novaya Gazeta, Anna Politkovskaya foi assassinada em 2004 — altura em que o jornal de oposição ao Kremlin atravessava um dos pontos altos do seu braço de ferro com Putin. Esta jornalista não morreu, no entanto, vítima de envenenamento. Foi morta com quatro tiros dentro da casa onde vivia, na capital russa.
Dois anos antes da sua morte, Anna Politkovskaya denunciou crimes contra os direitos humanos praticados pela Rússia na Chechénia. Nessa altura, as ameaças passaram à ação e a jornalista foi mesmo envenenada, enquanto viajava para Beslan, na sequência das suas investigações. Aqui, a substância tóxica terá sido colocada no chá que Politkovskaya bebeu durante a viagem de avião.
Vladimir Kara-Murza
A história repete-se: Rússia recusa qualquer acusação. Vladimir Kara-Murza foi vítima de duas tentativas de envenenamento, tendo um laboratório alemão, segundo a Reuters, encontrado elevados níveis de cobre, zinco e mercúrio no seu corpo.
Artigo atualizado às 11h20 com a reação do Kremlin.