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As eleições do próximo domingo porão fim ao primeiro governo de coligação em mais de 40 anos de democracia. Em bom rigor, desde a década de 1930 que o país não é governado por mais de um partido. A estabilidade política, o crescimento económico e o desenvolvimento social estiveram associados a Executivos monocolores do Partido Popular (PP) e do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), forças políticas bem alinhadas na defesa dos sustentáculos do regime democrático, mas com projectos distintos e competitivos.
Porém, em Espanha, como em outros países europeus, o que nunca foi simples tornou-se mais complicado. Nos anos dourados do bipartidarismo, centro-direita e centro-esquerda representavam cerca de 80% do eleitorado; nas últimas legislativas, em novembro de 2019, não chegaram aos 50% dos votos contabilizados. O regresso ao passado é improvável, mesmo que se verifique um reforço do centro no domingo. A acontecer algo surpreendente e igualmente inverosímil, como uma maioria absoluta dos populares, será um fenómeno pontual.
Sendo certo que a alternância entre centros foi extinta por partidos hoje em fase de estertor final, o Podemos (esquerda radical populista) e o Ciudadanos (centro liberal), existem novas forças nos dois campos do espectro político, acompanhadas pelo crescimento de alguns partidos regionais, o que desenha um parlamento fragmentado. O fim do bipartidarismo faz com que centro-direita e centro-esquerda dependam hoje de terceiros para formar maiorias amplas. E os terceiros são partidos radicais. Este é o drama de Espanha.
As eleições legislativas do dia 23 de julho não decidirão um vencedor, mas as correlações de forças que permitirão arquitectar uma maioria extensa e estável de governo. Neste ensaio analisam-se as soluções possíveis, procurando explicar de onde vêm, ao mesmo tempo que se traça o percurso da campanha eleitoral.
As soluções à esquerda
O centro-esquerda testou as águas inóspitas do pós-bipartidarismo em 2019. Forçado pelos resultados eleitorais, o PSOE juntou-se a esquerda radical populista do Podemos no governo, mas, ainda assim, os dois partidos ficaram aquém dos 176 mandatos necessários para a maioria absoluta. Encontraram no parlamento o apoio da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), partido radical envolvido na conjura separatista de 2017 que prometia repetir actos ilegais com vista à independência, e do Euskal Herria Bildu (E.H. Bildu), coligação da extrema-esquerda nacionalista basca com reverência pública pela organização terrorista ETA. A estes juntou-se a direita católica do Partido Nacionalista Basco, éminence grise da política espanhola que há quase 130 anos cultiva um sentido de oportunidade que a deixa sempre ao lado do poder de turno.
Em comum, separatistas bascos e catalães subscrevem uma concepção étnica de nação, além de partilharem o desejo assumido de anular a Constituição democrática de 1978. Na corrida eleitoral ainda em curso estabeleceram uma espécie de frente comum para forçar referendos à independência do País Basco e da Catalunha em 2024. Neste e noutros casos, os parceiros de Pedro Sánchez criam-lhe mais dificuldades do que a oposição de direita.
Os aliados do PSOE são problemáticos, mas a relação do E.H. Bildu com a ETA ocupa um lugar cimeiro na lista de engulhos. Números redondos, a organização terrorista assassinou 850 pessoas, 95% das quais com Espanha a viver em democracia. Matou, mutilou e ameaçou militares e polícias, mas também taxistas, donas de casa, desempregados, empregados de mesa, empresários, políticos de esquerda e de direita, intelectuais, académicos, jornalistas, crianças, reformados, aos quais se juntam outras categorias que, em conjunto, refletem uma sociedade moderna e plural. Foram crimes com motivação política assentes em ideias de extrema-esquerda e ódio étnico postos ao serviço de um projecto totalitário.
Nada disto é uma memória distante. A ETA extinguiu-se – “dissolveu-se no povo basco”, nas palavras da organização – há tão somente 5 anos. Ora, o E.H. Bildu apresenta-se como continuador orgulhoso do passado e do ideário etarras. Integra ex-membros da organização, entre os quais David Pla, o último líder do ‘aparelho militar’ da ETA (a estrutura responsável por atentados e homicídios). Nenhum mostrou sério arrependimento. E nenhum esteve até ao momento disponível para ajudar a Justiça a esclarecer os mais de 300 homicídios ainda por resolver.
No País Basco, como na Irlanda do Norte, são dezenas os antigos terroristas que cumpriram pena de prisão, denunciaram a violência e pediram perdão às vítimas. Têm direitos políticos plenos e, por muito doloroso que seja para algumas vítimas, devem ser reintegrados na sociedade. Contudo, quando olhamos para os ex-etarras do E.H. Bildu não encontramos este tipo de perfis, mas indivíduos que permanecem fiéis à causa. E aqui reside o problema: no plano ideológico, trata-se de um partido com um escassíssimo compromisso com o Estado de Direito democrático vigente; no plano da acção política, embora rejeite formalmente a violência, celebra em público os gudaris (palavra basca para ‘guerreiros patriotas’) que perpetraram os atentados, descrevendo homens e mulheres condenados por múltiplos homicídios como “presos políticos” – sem surpresa, a redução de penas para etarras e a transferência de membros da organização para presídios bascos figuram entre as principais reivindicações do partido.
Ao aliar-se à esquerda radical do Podemos e aos separatistas catalães da ERC, Pedro Sánchez atropelou os pactos centristas que fundaram a democracia espanhola e afastou-se por completo da tradição social-democrata do PSOE. Trouxe pela primeira vez radicais para o poder, o que abriu precedentes danosos. Já ao apoiar-se no E.H. Bildu, além de exacerbar a gravidade dos erros anteriores, normalizou um partido contrário à concepção europeia de democracia liberal que, por vontade própria, mantém abertas feridas profundas na sociedade espanhola.
À esquerda, as sondagens – mesmo as mais lisonjeiras para o PSOE – revelam que o único caminho possível para que os socialistas se mantenham no poder passa por reeditar a aliança com extremistas e separatistas. O que constitui uma dificuldade de monta para o Presidente de Governo, já que ERC, E.H. Bildu e Podemos figuram entre as principais razões para a hecatombe socialista nas eleições municipais e autonómicas do passado dia 28 de Maio. Mais grave, são a principal explicação para que, segundo alguns estudos de opinião, quase 10% do eleitorado do PSOE pense agora votar no PP e outro tanto não considere sair de casa no domingo.
A esperança de Sánchez reside no SUMAR, a única novidade na paisagem política espanhola, uma federação de partidos de esquerda radical que deu um abraço mortífero ao já muito desgastado Podemos. Liderado por Yolanda Díaz, militante comunista de longa data que ascendeu aos cargos de Vice-presidente do Governo e Ministra do Trabalho com Pedro Sánchez, o SUMAR almeja ser o rosto amável da esquerda radical. O roteiro ideológico é em tudo igual ao do Podemos, muito embora adopte uma postura pública diferente, assente em discursos conciliadores e propostas de diálogo, corrigindo assim os erros cometidos pelo radicalismo de esquerda nos últimos cinco anos. Com isto, espera somar mandatos aos 35 deputados que o Podemos tem actualmente no parlamento. Caso não o faça, a derrota será indisfarçável.
Para o secretário-geral do PSOE, o SUMAR permite sonhar com uma sequência cumulativa de ‘ses’: se o SUMAR for o terceiro partido mais votado, se conseguir eleger mais de 40 deputados e se os socialistas não forem muito castigados nas urnas, o PSOE, mesmo ficando em segundo lugar, poderá ter condições para se manter no Executivo. Isto se repetir as alianças com os separatismos, claro.
As soluções à direita
Também o centro-direita parece obrigado a apoiar-se em radicais. No caso, no VOX. Presidido por Santiago Abascal, agita todas as bandeiras dos populismos de direita radical em ascensão na Europa: guerras culturais, intransigência com a imigração, combate à agenda LGBT, defesa de valores tradicionais e nacionalismo colérico. Não surpreende que seja com frequência inserido numa vaga internacional de reacionarismo, visto como mais ou menos indistinguível de partidos análogos em Portugal, França, Itália, Alemanha, Holanda ou Áustria.
Mas o VOX é um produto com denominação de origem. Durante anos um partido sem futuro, deve muito da sua existência à pulsão separatista catalã. De resto, o elemento mais saliente nos seus programas políticos – e o mais eficaz na mobilização do eleitorado – é o combate aos nacionalismos periféricos catalão e basco, apontados como as principais causas da decadência de Espanha. São convicções, mas também conveniência eleitoral: uma vez que a manutenção da integridade territorial do país é assunto caro ao eleitorado de esquerda e de direita, o tema dá maior amplitude ao campo onde o VOX pode conseguir votantes.
A proposta de acabar com o elevado grau de autonomia das regiões espanholas, velha ambição que mereceu especial destaque na campanha para estas legislativas, mais não é do que uma readaptação da mensagem destinada a eleitores de direita e de esquerda, combinando-a com as obsessões do partido. Primeiro, castiga os separatismos basco e catalão, destituindo-os dos poderes regionais que nas últimas décadas favoreceram o crescimento de separatismos. Segundo, relembra o quão ineficiente e pouco solidária foi a regionalização espanhola no combate à COVID-19, com cada região a adoptar medidas próprias, o que provocou incerteza adicional no quotidiano dos cidadãos e na actividade das empresas, a par da escassa disponibilidade de muitos governos regionais para partilhar recursos e competências que permitissem um combate integrado à pandemia.
Outro aspecto que distingue o VOX da direita radical europeia é o facto pouco notado de estar em queda acentuada. Ter-se tornado um partido determinante para a governação de municípios e regiões nas eleições do dia 28 de maio disfarçou a perda de mais de dois milhões de votos. Nas últimas legislativas obteve cerca de três milhões e seiscentos mil de votos, mas nas eleições locais ficou-se pelo milhão e meio. Acresce que as sondagens para as legislativas situam o VOX à volta dos 35 deputados, quando tem actualmente 52.
A debilidade do VOX aliada aos enormes precedentes abertos pelo PSOE facilitam um acordo entre o PP e a direita radical. Nem o VOX terá capacidade para exigir grandes contrapartidas pelo seu apoio, nem o centro-esquerda tem especial autoridade denunciar a presença de radicais no governo ou perto dele. Evidentemente, isto oferece algum conforto estratégico a Alberto Núñez Feijóo, presidente dos populares.
Contudo, o PP enveredou pelo caminho que parece menos óbvio. Ciente do cansaço social com a presença – e as consequências – de radicalismos populistas no poder, propôs-se recentrar a governação em Espanha. Com gestos e sugestões pontuais, começou por sinalizar a vontade de não depender do VOX. No plano local, ofereceu os seus votos ao PSOE em Barcelona e na cidade basca de Vitória para evitar que estes municípios ficassem nas mãos de partidos fora do centro. No plano nacional, ainda no período de pré-campanha, propôs a Pedro Sánchez um acordo segundo o qual ambos se comprometeriam a deixar governar o partido mais votado, isentando desta forma centro-direita e centro-esquerda de alianças com radicais. Feijóo insistiu nesta proposta no único frente-a-frente que teve com Sánchez, encenando o momento com cuidado para que desse um bom espetáculo televisivo. Claro que a proposta não é inocente, pois todas as sondagens válidas dão o PP como o partido mais votado. Porém, bem vistas as coisas, num contexto pós-bipartidarismo é a única forma de manter radicais longe do poder.
No entanto, incorrendo num aparente paradoxo, não fez um cordão sanitário ao VOX. Ao contrário do seu antecessor na presidência do PP, Feijóo manteve pontes com a direita radical. Sem remorsos visíveis, aliou-se a ela para governar municípios e regiões autónomas. E, se necessário, admite um entendimento pós-legislativas que viabilize um governo de direita. No fundo, trata-se de não alienar o eleitorado do VOX. Em particular, de mostrar a estes eleitores que os partidos de direita coincidem no objetivo prioritário: tirar do poder a aliança das esquerdas com os separatismos. A mensagem terá passado, pois boa parte das sondagens sugerem uma dinâmica de voto útil no PP. O equilíbrio é difícil porque o esvaziamento em demasia do VOX, em competição com o SUMAR pelo lugar de terceiro partido mais votado, comprometerá uma maioria absoluta de direita.
Uma vez iniciada a campanha, presidente e porta-vozes populares não desperdiçaram uma oportunidade para vincar em público as diferenças que mantêm e prometem manter com o VOX. Feijóo propôs reeditar os célebres Pactos de Moncloa, os acordos de Estado feitos ao centro que fundaram a democracia espanhola – e que a solução governativa de Sánchez pôs em causa. Foi ainda explícito ao afirmar que o partido de Santiago Abascal é um parceiro indesejado. Fê-lo, contudo, transferindo o ónus da responsabilidade por uma eventual aliança com o VOX para a esquerda: se a direita radical é tão inadmissível como PSOE e seus parceiros afirmam, então permitam que governe o partido mais votado. O presidente do PP passou as últimas semanas a jogar em dois tabuleiros – a favor e contra a direita radical – com aparente êxito, o que desmente a imagem de um líder insosso sem especial talento político. O próximo domingo mostrará se a dimensão e o alcance desse êxito são suficientes.
O antisanchismo sequestrou a campanha
As soluções estreitas e os equilíbrios difíceis à esquerda e à direita levaram a arena política a novos patamares de polarização. Todavia, importa ter presente que a acrimónia entre partidos não é inovadora em Espanha. Não apareceu com a ascensão dos nacionalismos nem resulta da chegada de partidos radicais ao quotidiano da vida pública. Aliás, basta recordar o ambiente vivido na legislatura de la crispación, entre 1993 e 1996, que marcou o fim da hegemonia socialista de Felipe González e o início da refundação do centro-direita pela mão de José María Aznar, ou os anos de 2005 e 2006, época em que José Luis Rodríguez Zapatero promoveu uma negociação muito controversa com a organização terrorista ETA.
O caminho para as legislativas de 23 de julho não trouxe, portanto, nenhuma novidade de tom. Apenas de tema: Pedro Sánchez é o homem a abater. O antisanchismo foi o princípio e o fim de qualquer debate sobre economia, saúde ou educação, marcando até a sempiterna discussão sobre a arquitectura territorial do país. Mais do que críticas dirigidas ao Chefe do Executivo em funções, normais em qualquer contenda eleitoral, houve um repúdio espaventoso e irredento que condicionou as semanas de preparação para as eleições do próximo domingo.
O termo foi, de resto, assumido pelas partes: o PSOE queixou-se da “bolha de antisanchismo” insuflada pela direita, uma campanha ad hominem sem pudor nem piedade que aparelho socialista se esforçou por combater em todas as acções de campanha; já o PP e o VOX estabeleceram como objectivo derrotar o sanchismo e denunciar as graves consequências que trouxe ao país.
Muitos observadores internacionais atribuíram esta fulanização da hostilidade à mitificada tendência espanhola para confrontos fratricidas, havendo ainda quem, com igual preguiça analítica, encontrasse nela a enésima prova de um franquismo endémico à direita. No fundo, a mais recente encarnação do Duelo a Garrotazos imortalizado por Goya nas Pinturas Negras.
Acontece, porém, que o êxito do antisanchismo se deve ao facto de ter nascido há quase uma década no seio do próprio PSOE. Alfredo Pérez Rubalcaba, antecessor de Sánchez na secretaria-geral socialista, tudo fez para que o partido não caísse nas mãos do actual Presidente de Governo. Temia que a ambição do então candidato a líder esvaziasse o legado social-democrata do partido. Mais grave, suspeitava que a falta de compromisso com os ideais do socialismo democrático o levassem para espaços políticos pouco consentâneos com a Constituição de 1978.
Em 2019, quando Sánchez formou o governo ainda em funções, coligando o PSOE à esquerda radical populista e apoiando esta dupla em acordos de incidência parlamentar com separatistas bascos e catalães, o socialismo tradicional viu confirmados os seus piores temores. O PSOE aliara-se a partidos que, com uma sinceridade desarmante, pretendiam acabar com os equilíbrios institucionais e com os pactos que estruturam o Estado de Direito democrático.
Ainda em 2016, perante a hipótese de um PSOE aliado às esquerdas radicais e ao separatismo, Rubalcaba cunhou o termo ‘governo Frankenstein’, mostrando aqui uma das grandes diferenças entre Portugal e Espanha na actualidade: o epíteto ‘geringonça’ nasceu como uma crítica da direita – saída da pena de Vasco Pulido Valente e, depois, popularizada por Paulo Portas – enquanto o rótulo depreciativo ‘Frankenstein’ saiu do próprio PSOE. Revela, entre outras coisas, a gravidade do passo inédito dado por Sánchez, mas também que uma parte importante dos socialistas espanhóis nunca aceitaria este esquema de poder.
E, de facto, não aceitaram. Históricos, barões, militantes e simpatizantes notáveis de várias gerações desfilaram críticas na imprensa durante todo o mandato. A parada teve dois pontos altos. Primeiro, na campanha para as eleições municipais e autonómicas do passado 28 de maio. Foram vários os candidatos a procurar distância de Sánchez, visto como um activo tóxico para o eleitorado de centro e para os votantes socialistas tradicionais. Destacaram-se Emiliano García-Page, candidato à reeleição como presidente da comunidade autónoma de Castela–La Mancha, e Javier Lambán, secretário-geral do PSOE em Aragão, comunidade autónoma à qual se candidatava novamente como presidente, duas figuras de proa que sempre se opuseram aos acordos com a esquerda radical e, em particular, com o E.H. Bildu e com a ERC.
Felipe González juntou-se aos dissidentes. Mais sibilino e, também por isso, mais danoso, fê-lo em diferido e por interposta pessoa: a imprensa deu nota que González e a mulher receberam na sua quinta na Estremadura o casal Feijóo durante um fim de semana; o encontro ocorreu em novembro de 2021, mas apenas foi noticiado poucas semanas antes das eleições municipais e autonómicas de 28 de maio deste ano. Os jornais fizeram saber da admiração mútua entre González e Feijóo, referindo igualmente que o antigo presidente de Governo vê no popular um homem sensato que dará um bom chefe do Executivo. Tudo isto em vésperas de um acto eleitoral que Pedro Sánchez converteu em plebiscito ao governo.
O segundo momento desenrolou-se nas semanas de pré-campanha e campanha para as legislativas do próximo domingo. Juan Alberto Belloch (ministro da Justiça e do Interior entre 1993 e 1996, conhecido como o ‘superministro’ de Felipe González), Nicolás Redondo (antigo secretário-geral do PSOE no País Basco, filho de um histórico dirigente da intersindical UGT), Joaquín Leguina (primeiro presidente da comunidade de Madrid em democracia, região autónoma que governou 12 anos), José Luis Corcuera (ministro do Interior entre 1988 e 1993), Javier Rojo (presidente do Senado entre 2004 e 2011) e Juan Carlos Rodríguez Ibarra (presidente da Extremadura entre 1983 e 2007) foram alguns dos pesos-pesados do PSOE – muitos com pergaminhos de resistência ao Franquismo – a expressar em público discordâncias profundas com Pedro Sánchez. Houve até quem o considerasse o pior presidente de governo na história da democracia e, portanto, recomendasse ao eleitorado social-democrata o voto no PP.
Felipe González voltou a terreiro. Talvez por considerar o momento de especial gravidade e importância, desta feita dispensou emissários: em prólogo a uma edição da Nueva Revista, editada pela Universidade Internacional de La Rioja, defendeu “pactos de centralidade” para proteger um país condicionado por polarização extrema. Apresentou o regresso ao centro como a solução para a “perda de força e de credibilidade, tanto interna como internacionalmente”. Como tal, González subscreve a proposta do Partido Popular, segundo a qual deve governar o partido mais votado, cabendo à força política que lidera a oposição criar condições de estabilidade. Ou seja, olhando para as sondagens, deve governar o PP com o apoio parlamentar do PSOE. “Que pedimos em troca de permitir governar? Não pedir nada. Se não pedirmos nada, terão de chegar a acordos em cada projecto-lei e em cada orçamento”, escreveu González, para depois rematar com um “Ponham-se de acordo”.
Ao trazer radicais, extremistas e separatistas para a esfera do poder, Pedro Sánchez operou uma ruptura sem precedentes no trajecto da Espanha pós-1978, mas também em mais de um século de correntes democráticas no socialismo espanhol. Rompendo com a tradição do PSOE vinculado às instituições, ofereceu aos separatistas mudanças à la carte ao Código Penal, indultos, o controlo de organismos do Estado e até a cabeça da directora dos Serviços de Informações. Permitiu que a extrema-esquerda propalasse a partir das instituições públicas teses que encontram em Espanha uma democracia falsificada, a mera continuação do Franquismo por outros meios – o que, entre outras coisas, menospreza todos os esforços e riscos corridos pelo PSOE no processo de democratização do país. Sánchez foi leniente com iniciativas legislativas que, cegas pelo radicalismo, culminaram na redução de penas de prisão a mais de 1000 condenados por crimes sexuais e na libertação antecipada de quase uma centena de abusadores. Percebe-se que seja um homem só – em bom rigor, abandonado – no espaço do socialismo espanhol.
Reconheça-se, no entanto, o apoio dado pelo ex-presidente de Governo José Luis Rodríguez Zapatero, que em inúmeras entrevistas compensou com lealdade, zelo e energia o facto de ser o único socialista de relevo ao lado do actual secretário-geral. Para desgraça de Sánchez, o apoio de Zapatero não equivale à aprovação geral do zapaterismo (assumindo que tal coisa existe): o professor universitário, poeta e ensaísta César Antonio Molina, ministro da Cultura com Zapatero, considera que Pedro Sánchez está no “caminho do autoritarismo e do intervencionismo”. Alerta para uma colonização do Estado sem precedentes, bem como para decisões que violaram a separação de poderes. Sem meias palavras, afirma que a derrota de Sánchez é essencial para a reconstrução e sobrevivência do PSOE.
A predominância do antisanchismo na campanha não se deve, portanto, ao êxito da propaganda da direita. Deve-se, sim, ao facto da solução governativa criada por Pedro Sánchez ter enveredado por caminhos inadmissíveis para segmentos importantes do PSOE, que cedo manifestaram preocupação e repúdio. PP e VOX limitaram-se a apanhar um comboio há muito em andamento.
Camilo José Cela deixou por escrito a suspeita de que as ideias religiosas, morais, sociais e políticas mais não são do que manifestações de um desequilíbrio no sistema nervoso. Ora, o moralismo e a engenharia social que os radicais de esquerda e de direita propõem com fervor religioso, tal como a perda de convicções políticas de um centro dependente de radicais, evidenciam um desequilíbrio profundo, porventura definitivo, no bipartidarismo espanhol. Assumindo que o passado não volta, partidos e eleitores terão de aprender a viver num contexto marcado por incerteza e caminhos estreitos. É provável que o próximo domingo coloque a direita perante desafios semelhantes aos já enfrentados pelo PSOE. O resultado à esquerda não foi positivo para o país nem para o próprio partido socialista, factos que Alberto Nuñez Feijóo deve sopesar nas decisões a tomar – e na forma como as tomará – uma vez conhecidos os resultados das legislativas.