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SOPA Images/LightRocket via Gett

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Estafetas são independentes ou trabalhadores das plataformas? Como a lei tem conduzido tribunais a respostas opostas

A mesma lei, por vezes perante casos semelhantes de estafetas, tem levado a sentenças diferentes pelos tribunais. Processos começam a chegar à segunda instância.

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Os casos são aparentemente semelhantes: um estafeta que se liga e desliga à aplicação quando quer; cuja remuneração mínima e máxima é definida pela plataforma, que lhe dá alguma margem para definir o valor a partir do qual aceita uma entrega; que usa uma mochila identificativa da empresa mas que o próprio adquiriu; que depende de uma aplicação para exercer atividade. Mas as decisões não têm ido todas no mesmo sentido. Segundo dados do Governo, que são diferentes dos apresentados pelas plataformas, os tribunais reconheceram o vínculo de trabalho dependente a 15 estafetas e não o fizeram em relação a 52.

Em causa está um artigo — conhecido no meio como 12.ºA — que foi criado em maio do ano passado e que prevê uma lista de indícios que provam que o estafeta é, na verdade, trabalhador dependente da plataforma (como a Uber, a Bolt ou a Glovo, entre outras). A lei estabelece que se forem verificados, pelo menos, dois indícios (de uma lista de seis) deve ao estafeta ser reconhecido um contrato de trabalho dependente, o que obriga as plataformas a garantir direitos como o pagamento de férias ou subsídio de Natal, por exemplo.

Os tribunais têm sido inundados de processos para se pronunciarem, depois de uma mega operação levada a cabo pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), no final do ano passado, que levou a que fossem enviadas mais de 800 participações ao Ministério Público (MP). As decisões têm saído a conta-gotas, com sucessivos recursos interpostos ou pelo MP ou pelas plataformas.

Ao Observador, Teresa Coelho Moreira, jurista que ajudou a coordenar o livro verde sobre o futuro do trabalho e que acompanhou a elaboração da nova lei, diz que é preciso esperar pelas decisões em segunda instância para perceber a tendência. “Creio que, para se ter alguma sedimentação desta jurisprudência, que é o que se tem feito a nível de outros ordenamentos jurídicos, é preciso esperar pelas segundas instâncias e até pelo Supremo”, defende.

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Para a especialista, estando em causa uma presunção de laboralidade (para se verificar se deve ou não haver contrato) “tudo depende do que conseguir ser provado em tribunal“. As decisões baseiam-se em provas, que incluem testemunhos (dos trabalhadores, das plataformas ou, por vezes, dos próprios inspetores da ACT), pelo que nem todos os processos reúnem as mesmas evidências, logo, nem todos chegam às mesmas conclusões.

“Supostamente todos [os estafetas] têm a mesma forma de trabalhar, mas não. Segundo se vê nas várias decisões, e lendo a prova testemunhal ou a prova de facto, pode ser diferente. Ou até a própria interpretação dos factos pode variar“, observa. As plataformas e o Ministério Público têm recorrido quando as decisões vão no sentido do reconhecimento e não reconhecimento do vínculo, respetivamente.

Até ao momento, apenas terá sido decidido um recurso em segunda instância — pelo Tribunal da Relação de Évora, de maio, que reverteu a sentença do tribunal inferior ao reconhecer um contrato de trabalho sem termo a um estafeta da empresa responsável pela plataforma Comidas.pt (que funciona de forma diferente da Bolt, da Uber ou da Glovo, por exemplo).

A ministra do Trabalho, Rosário Palma Ramalho, defendeu no Parlamento que é preciso avaliar o “valor acrescentado” da presunção de laboralidade criada para os estafetas face à que já existia no Código do Trabalho para os falsos recibos verdes. A discussão tem sido atirada para a concertação social. Por enquanto, praticamente todas as semanas são conhecidas novas sentenças.

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho (D), intervém durante a sua audição na Comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, na Assembleia da República, em Lisboa, 10 de julho de 2024. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

A ministra do Trabalho, Rosário Palma Ramalho, defendeu no Parlamento que é preciso avaliar qual o “valor acrescentado” da presunção de laboralidade criada para os estafetas face à que já existia

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Segundo informação enviada pela Uber ao Observador, até ao momento há 23 decisões contra o reconhecimento de vínculos a envolver a plataforma e quatro a favor. Já a Glovo diz que tem 30 sentenças que abrangem 61 estafetas em que a empresa foi absolvida e dois casos em que o tribunal decidiu pelo reconhecimento de contrato de trabalho (mas em que a Glovo recorreu). “O modelo operacional da Glovo, além de único no mercado, permite aos estafetas flexibilidade, autonomia e independência inigualáveis. Os tribunais têm sido claros: a relação entre a Glovo e os estafetas aponta no sentido de estarmos perante apenas uma prestação de serviços”, afirmou a empresa, ao Observador.

Quanto à Bolt, não são conhecidos publicamente processos que a envolvam e a plataforma não se tem pronunciado sobre o assunto. O Observador pediu acesso aos acórdãos e solicitou um balanço das decisões, mas a empresa respondeu apenas que, “por respeito à justiça e aos processos em curso”, “não se pronunciará de momento sobre o assunto”.

Estafetas têm liberdade para definir retribuição? E se o fizerem perdem pedidos?

O primeiro indício que, à luz da lei, ajuda a provar que existe um contrato de trabalho dependente é se a plataforma “fixa a retribuição para o trabalho efetuado” pelo estafeta “ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”. Neste campo, as plataformas têm regras diferentes. A Uber Eats, por exemplo, segundo um acórdão do Tribunal de Castelo Branco, permite ao estafeta determinar a sua taxa mínima por quilómetro (ou seja, o valor abaixo do qual não está disposto a receber entregas). A Glovo, por sua vez, tem a figura do “multiplicador” que é acionado pelo próprio uma vez por dia e que multiplica o valor que recebe por pedido. Há outros fatores a influenciar a retribuição paga ao estafeta.

Uma decisão do Tribunal de Portalegre, que contrariou as plataformas e reconheceu vínculo a cinco estafetas, indica que a Uber paga uma quantia pré-definida, que varia em função da distância percorrida, o horário e o número de entregas. Mais: o tribunal averiguou que a plataforma implementa “promoções” que “mais não são que verdadeiros bónus de produtividade e se destinam a incentivar os estafetas a realizarem mais entregas, desse modo contribuindo para o aumento da atividade lucrativa” da empresa.

Uma outra decisão, neste caso do Tribunal de Castelo Branco, que também foi favorável ao reconhecimento de vínculos (a quatro estafetas), considera que a Uber estabelece os limites máximo e mínimo da retribuição dos estafetas e acrescenta que estes podem determinar livremente a sua taxa mínima por quilómetro (o valor abaixo do qual não está disposto a trabalhar, pelo que não recebe entregas abaixo desse limite). Mas o Tribunal considera que “daí não resulta que o estafeta possa efetivamente determinar o valor a receber”.

Desde logo porque, segundo se lê no contrato, o valor da taxa por quilómetro está dependente do valor da taxa de entrega (cujos mínimos e máximos são pré-definidos) e porque, segundo prova testemunhal, “se os estafetas aumentarem o valor da taxa de quilómetro não receberão naturalmente pedidos, ou tantos pedidos, quando estejam a concorrer com outros estafetas que não o façam”. Diz, aliás, que o argumento da plataforma de que não existem, virtualmente, limites mínimo e máximo para a retribuição é “falaciosa” e que não há “qualquer negociação” entre as partes.

Mas há decisões que vão noutro sentido. Uma delas vê na possibilidade de o estafeta rejeitar os pedidos um indício de negociação. Trata-se de uma decisão do Tribunal de Portimão favorável à Glovo, que salienta que os estafetas podem alterar o tal “multiplicador” uma vez por dia, que aumenta o valor a receber, e que podem recusar as entregas, pelo que entende que a retribuição não é fixada unilateralmente pela plataforma — mas é proposta por esta “ao estafeta antes de o mesmo aceitar ou não o serviço”. Como o estafeta pode recusar a entrega, “já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se prova que a ré fixa a retribuição”.

O Tribunal vai mais longe: “Não vale o argumento de que o estafeta estará condicionado a aceitar forçosamente o preço indicado pois que outros estafetas o aceitarão. Aí valem as regras do mercado concorrencial (nesta como noutras atividades)”. Além disso, rejeita o argumento de que o estafeta está condicionado a aceitar o pedido para não perder outros pedidos, “pois tal não resulta dos factos provados (pelo contrário, resulta que não há penalização nesta plataforma pela rejeição dos serviços propostos)”.

Noutra decisão relativa a dois estafetas da Glovo, pelo Tribunal de Viseu — e noticiada pelo Público — já se entendeu que a empresa fixa a remuneração com base em limites mínimo e máximo.

A aplicação (obrigatória) é um instrumento de trabalho?

Outro indício que pode provar que há uma relação de trabalho dependente é se os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem à plataforma ou “são por esta explorados através de contrato de locação”.

Várias das decisões concluem que a mochila, o telemóvel e a bicicleta/mota que o estafeta usa para se deslocar são suas e não da plataforma: embora precise destas ferramentas para trabalhar (a própria Uber argumenta, citada num acórdão, que a mochila térmica é “uma necessidade de boas práticas de higiene e segurança alimentar”), é o estafeta que as compra, detém e é o responsável pela manutenção. Especificamente sobre a mochila, geralmente não há uma obrigatoriedade para que seja de uma ou outra plataforma. Mas quanto à aplicação há dúvidas.

Um estafeta de uma plataforma de entrega de comida (bolt, uber eats), pedala na Avenida da Liberdade, em Lisboa, 23 de janeiro de 2024. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Decisões começam a chegar à Relação

JOSE SENA GOULAO/LUSA

Em várias decisões, a aplicação é vista como um instrumento de trabalho. Na decisão do Tribunal de Portalegre, desfavorável à Uber, sustenta-se que o software “é desenvolvido e suportado pela ré” e sem ele “não lhes seria possível [aos estafetas] desempenharem a sua atividade”. Na decisão contra a Glovo do Tribunal de Viseu, a aplicação informática é entendida como um “verdadeiro instrumento de trabalho do estafeta”. Neste caso, a aplicação “está sujeita ao pagamento de uma taxa quinzenal que permite o acesso à criação do perfil, o acesso à plataforma, a cobertura do seguro pela duração da ligação à plataforma, o acesso ao serviço de apoio técnico e à gestão e à intermediação de pagamentos”.

Já a decisão favorável à Glovo do Tribunal de Portimão entende que, “apesar de desenvolvida pela ré e a esta caber o direito de autoria ou de produção da mesma, não se pode dizer que [a aplicação] seja um instrumento ou equipamento para estes efeitos – ou seja, um elemento físico – como será o telemóvel”.

Um acórdão favorável à Uber pelo Tribunal de Matosinhos (que sublinha, no caso das mochilas, que “podem até ostentar marcas de empresas concorrentes”) defende, em relação à aplicação digital, que “não poderá ser considerada, por si só, um instrumento de trabalho, seja porque não funciona sem um elemento físico, o smartphone, sendo este pertença do próprio estafeta, seja porque é comummente utilizada, não só por todos os estafetas, como também pelos restaurantes parceiros e mesmo pelos clientes finais”.

A plataforma dá ou não ordens? E avalia o estafeta?

Outro dos indícios é que a plataforma exerça o “poder de direção” e determina “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação” do estafeta, à sua conduta perante o utilizador ou à prestação da atividade.

Na visão do acórdão do Tribunal de Castelo Branco, este indício está provado e o juiz diz mesmo que a Uber “estabelece todos os passos que os estafetas devem seguir“. Dá, aliás, como “amplamente demonstrado” que os estafetas para poderem prestar a sua atividade têm de se registar no site, entregar a documentação necessária, declarar o meio de transportes que usam, diligenciar pelo seguro e assinar o contrato”. Só depois podem aceder à aplicação e aí também há regras: se aceitarem os pedidos, devem recolher e entregá-los nas moradas que lhe forem fornecidas, devem acondicionar a comida numa mochila térmica, que têm de comprar, não podem partilhar a sua conta com terceiros não autorizados (pelo que são pedidas selfies aleatoriamente para verificar a sua identidade).

Se é certo que os estafetas podem aceitar ou não o pedido, e até alterar o percurso atribuído e indicado pelo GPS, “essas são as únicas liberdades que têm” uma vez que o “procedimento de entrega da Uber encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do local onde é prestado” e do estafeta, que “se limitará a seguir todo um esquema previamente definido” pela plataforma.

Já na decisão do Tribunal de Portimão relativa à Glovo, o juiz recusa a verificação deste indício: as “únicas regras” de apresentação, como o reconhecimento facial ou a geolocalização, “existem para acesso à aplicação”. Por um lado, reconhece que existem regras para que os estafetas iniciem o relacionamento com as plataformas, como os procedimentos para a inscrição na plataforma — que incluem visualização de vídeos, adesão aos termos e condições, escolha da localização, etc. — mas “nessa fase não se pode falar em qualquer prestação de atividade“. Por outro lado, essas regras (reconhecimento facial e geolocalização) existem para que os estafetas possam estar prontos a receber pedidos, argumenta. A partir daí podem desligar a aplicação quando querem.

Por sua vez, o Tribunal de Vila Nova de Gaia (que decidiu contra o reconhecimento de um vínculo a um estafeta da Uber Eats) entende que contribui como indício para este “poder de direção” o facto de a plataforma impor o uso de equipamentos para o exercício de atividade do estafeta, “com uma mochila com determinadas dimensões, e telemóvel com geolocalização ativa para recolha e entrega dos produtos”.

Diferentes visões também existem para o indício segundo o qual a plataforma “controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica”.

Para dar alguns exemplos, o Tribunal de Viseu considera que a Glovo controla e supervisiona o trabalho em tempo real, verificando a qualidade do trabalho prestado “seja através do sistema de reputação, seja através dos critérios que utiliza na gestão algorítmica de atribuição de pedidos, a qual é da inteira responsabilidade da ré e cujo conhecimento a mesma não faculta aos estafetas”.

Já o Tribunal de Portimão, também em relação à Glovo, deu como provado que a empresa não usa a avaliação feita pelos clientes finais para determinar a qualidade da atividade ou a forma como é executada e que isso não influencia a oferta de novos pedidos. Diz ainda que a plataforma não controla a atividade — durante as entregas não é preciso que os estafetas tenham a aplicação ligada.

Estafeta pode ligar-se e desligar-se quando quer vs. tem de estar sujeitos ao horário da aplicação

Outro indício que pode levar ao reconhecimento de contratos é se a plataforma “restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma”. E, de facto, um dos argumentos comummente usados — quer nas decisões favoráveis quer nas contrárias ao reconhecimento de contratos — é que o estafeta pode ligar-se e desligar-se da aplicação quando quer e entende e a possibilidade de recusar pedidos.

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, fala perante a Comissão de Orçamento e Finanças na Assembleia da República, em Lisboa, 14 de novembro de 2023. TIAGO PETINGA/LUSA

Lei sobre reconhecimento de vínculo a estafetas foi preparada e aprovada quando Ana Mendes Godinho foi ministra do Trabalho

TIAGO PETINGA/LUSA

Mas para o Tribunal de Castelo Branco, por exemplo, não é bem assim e a plataforma “restringe a autonomia dos estafetas quanto à escolha do horário de trabalho, pois só poderão prestar atividade durante o horário de funcionamento da app”, que não funcionava, pelo menos na altura da decisão, 24 horas por dia naquela cidade. Noutras cidades, esta questão não se coloca (há restaurantes abertos todo o dia e noite).

Uma decisão do Tribunal de Portalegre vai mais longe na argumentação: “não é apenas a prestação de uma atividade per si que é passível de remuneração, como também o deve ser a simples disponibilidade do trabalhador para a prestar, desde que efetiva e não meramente aparente”. Para o juiz, a partir do momento em que se ligam à plataforma até à altura em que se desligam, os estafetas prestam a sua atividade para a ré, “compreendendo o conteúdo funcional da sua atividade não apenas a tarefa de entregar as encomendas de acordo com as diretrizes e instruções da plataforma digital mas também a sua disponibilidade temporal para o fazer, durante a qual, na presente configuração jurídica de mera prestação de serviços, não beneficiam de qualquer retribuição, conduzindo pois a uma colossal desigualdade nas prestações”.

Além disso, constitui um indício se a plataforma “exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta”.

Num acórdão do Tribunal de Santa Maria da Feira (que deu razão à Uber contra o reconhecimento do vínculo a um estafeta), “não resultaram demonstrados quaisquer factos que demonstrem a existência de qualquer poder disciplinar exercido por via da exclusão de atividades ou de desativação da conta, ou por via do mecanismo da avaliação, que tem um cariz facultativo”.

Já no caso do Tribunal de Portimão, conclui-se que “há a possibilidade de exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta” e que a plataforma pode aliás excluir “a seu critério exclusivo”. Este foi o único indício admitido por este tribunal.

A conclusão do  Tribunal de Vila Nova de Gaia foi no mesmo sentido: “a mera circunstância, aceite pela própria ré, de que a mesma pode determinar uma exclusão do uso da app por [nome do estafeta], acaso considere que o mesmo violou os termos contratuais de forma a justificar tal exclusão, é suficiente para concluirmos que a plataforma digital pode aplicar uma sanção, e, nessa medida, restringe a autonomia” do estafeta.

A decisão de segunda instância que determinou o reconhecimento de um contrato de trabalho

Até ao momento, só é conhecida uma decisão em segunda instância relativa à presunção de laboralidade aplicável aos estafetas, e é relativo a um caso que tem contornos diferentes face aos descritos para a Uber e a Glovo. Desde logo porque, segundo o acórdão, a ré — a plataforma Comidas.pt — , acordou com o estafeta pagar-lhe 1,75 euros por cada entrega realizada dentro da cidade de Beja e 2,50 euros por cada entrega nos arredores da cidade.

Além disso, “afigura-se inequívoco” que a plataforma exerce o poder de direção e determina regras específicas: o motociclo que o estafeta usa é fornecido pela plataforma, que dispõe de uma caixa transportadora acoplada com o logótipo “comidas.pt”; o estafeta “desloca-se ao armazém da ré no horário acordado, para ali recolher o motociclo, capacete, indumentária mais adequada ao tempo, uma bolsa com TPA [terminal de pagamento automático] e fundo de maneio, e um cartão de combustível” para atestar a mota sempre que necessário.

Já no que toca ao poder de direção, a plataforma através de geolocalização tem conhecimento da localização e deslocação do distribuidor, “bastando que este faça login na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços”.  Se é verdade que, sempre que o estafeta não pode cumprir o horário não tem de apresentar justificação e pode recusar qualquer entrega, “tal não é suficiente para afastar os indícios, fortes, da existência de um contrato de trabalho”. Resta saber em que sentido irão as próximas decisões dos tribunais da Relação para avaliar “tendências” mais concretas no sentido da lei.

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