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Dia de jogo decisivo para a selecção nacional, emparedada entre a letargia com final feliz contra Marrocos e o infortúnio de poder vir a defrontar o poderoso Uruguai nos oitavos de final (aqui não há necessidade de spoiler alert, à entrada para este texto já toda a gente conhece o final da história). Para assistir à batalha final do grupo do califado, alcunha com que o grupo formado por Espanha, Irão, Marrocos e Portugal foi brindado, resolvi rodear-me de identidade portuguesa. Por necessidade de conforto e de vibrações positivas.
Por isso decidi acantonar-me no Cantinho de São José, tasca à moda antiga instalada no coração de Lisboa há um bom par de décadas. Lá iria encontrar, com certeza, alguns amantes do futebol, comida confortável – a tradução possível de confort food – e copos sujeitos a um preço justo, coisa que vai rareando numa cidade mais assediada pelos hambúrgueres, pelos bolos do caco e pelos breads of God do que a baliza portuguesa pelas lanças de Xerxes, Dário e Ansarifard, que ainda assim marcou de penálti.
Rua de São José, 94
O Cantinho de São José é um porto seguro fundado por beirões, com comida honesta, vinho verde à pressão que sim senhor e um plasma simpático para ver a bola. Durante a vida de todos os dias, passa o Jornal da Tarde à hora de almoço, que é sempre sinónimo de enchente, entre habitués, gente perdida bafejada pela sorte e turistas que já vão chegando não se sabe muito bem porquê.
As notas dos heróis Pepe e Quaresma (e também dos outros jogadores)
Localizada nas traseiras da Avenida da Liberdade, a tasca é um antro de picardias futebolísticas, sobretudo no que diz respeito ao clubes. Manuel é um dos três cunhados à frente do negócio, assumindo o serviço de mesa e os dichotes de pontapé na bola, alimentados pelo bom momento do seu Futebol Clube do Porto. “Este ano ganhei várias apostas, uma delas meteu uma garrafa de Cardhu”. No cardápio encontramos pratos que nos habituámos a comer em casa – favas, bacalhau cozido com grão, cozido à portuguesa – e no bailado entre as mesas é costume ouvir-se pilhérias ao Bruno de Carvalho, às buscas da PJ, à técnica do Marega.
Mas em noite de selecção o ambiente é mais contido. Dos frequentadores de todos os dias com nomes à moda antiga (Honorato, Juvenal, Adelino, o “engenheiro”, o “doutor”), nenhum veio picar o ponto. E às 19h00, hinos já cantados, o Cantinho está mais vazio do que o habitual. Apesar da pouca freguesia, Manuel está satisfeito, há vários dias que clama pela entrada na equipa de André Silva e Quaresma. “O miúdo marca golos. E o Quaresma sabe guardar a bola, tem técnica. E é rijo, os adversários têm medo dele”. Escusado será falar na trivela, que haveria de dar-nos vantagem na primeira parte.
“Grande golo, grande cigano, c*****o”, palavras de Luís, o sobrinho de Joaquim (sócio que toma conta da caixa e das bebidas) e afilhado de Manuel, que é uma espécie de brinca-na-areia da restauração. Tinha acabado de me sentar e já a pergunta vinha engatilhada “Então com o que é que vai ser enganado hoje?”. Maneira de lançar o chiste aos clientes indefectíveis. 1 a 0 a favor da casa, e eu ainda nem tinha molhado o bico na primeira tulipa.
“Quer uma Filipa?”. Luís é assim, passa o serviço a trocadilhar, como se fosse uma espécie de José Dominguez com melhores resultados na concretização. Tulipa é Filipa, aguardente é amarelinha, Coca-Cola é “vinho americano”. O terceiro sócio e cunhado dá pelo nome de José. Durante a primeira tarde mantém-se fora da cozinha, o seu poiso de eleição. O serviço não justifica. Na assistência há um homem que ignora o bom arranque de jogo de Portugal, preferindo olhar para o telemóvel. E um outro que alterna entre uma garfada de arroz de polvo e umas farpas ao desempenho da equipa de todos nós. Quer dizer, mais ou menos. “Estes tugas, pá, sempre a mesa coisa…”. As reticências pesam tanto como os passes transviados.
Ao balcão encontra-se um indefectível da selecção, balançando entre os whiskies tragados demasiado cedo e os pastéis de bacalhau. “Estes gajos é só porrada, chegam ali e é só Alá Akbar (transcrição livre)”. Aqui e além também usa a palavra “chavalo”, atirando o autor desta espécie de reportagem para uma época em que Portugal não se qualificava para nada, muito menos para uns oitavos de final do Mundial contra o Uruguai (a bola ainda rola, mas já toda a gente conhece o desenlace).
Aos 26 minutos, e depois de dizer que o Quaresma é tal e qual o seu primo Carlinhos, só que mais baixo, porque o Carlinhos “é uma viga”, Luís exercita o seu lado poliglota, recomendando ao primo estrangeiro da noite uma massada de peixe (fish with pasta), que é uma especialidade da casa (dish of the day). O homem, mais interessado numa Filipa do que no jogo, aceita a sugestão. E o desafio lá rola sem grandes motivos de interesse. Fonte lesiona-se na cabeça aos 30 minutos, momento em que Luís muda o chip do inglês para o francês. “Du vin? Un vase de soixante quinze?”. Acabam por escolher sangria, coitados.
Começou em trivela e acabou a celebrar. O golo de Quaresma que levou Portugal aos oitavos
Entre comentários às escolhas do seleccionador e lances mais ou menos dormentes, o tempo e a bola rolam no Rússia. E aos 34 minutos o homem do whisky arrisca um malte premonitório. “Estou aqui à espera de um momentozinho mágico”. Onze minutos volvidos, o homem anteriormente conhecido por Harry Potter deu-lhe razão.
“Grande cigano, c*****o”
O golo de trivela, naquela execução que só Quaresma domina, leva-nos descansados para o intervalo, apesar dos comentários de gosto duvidoso que hão-de acompanhar até o internacional português até ao final da sua carreira “Ai, agora é vais vender mais camisooooolas”.
Mas de facto a tranquilidade é tanta que o assunto principal passa a ser o carro que embateu contra uma parede numa travessa perpendicular à Rua de São José. “Deve ser um Uber, diz que é um Renault Laguna”, assegura Luís entre pedidos atendidos em francês. É que entretanto entraram mais dois casais falantes de Rimbaud, Proust e Linda de Suza. “Viande ou poisson? Qu’est-ce que vou voulez?”.
Os donos da tasca vão-se revezando nas saídas, procurando inteirar-se do acidente/fait-divers, que impede comentários mais alongados ao desempenho da equipa das quinas. Só Manuel é que insiste em alinhavar um comentário mais completo em relação ao goleador desta noite. “O Quaresma é um grande jogador, mas passou ao lado de uma grande carreira. Não teve carola como o Ronaldo, mas é um grande jogador, nunca entrega mal a bola”.
Segunda parte, ‘ris de poulpe’, VAR à sobremesa
A partida recomeça, com Portugal na mó de cima. Tendo em conta as dificuldades que a Espanha atravessa do outro jogo do grupo, parece que Portugal vai casar bem nos oitavos de final com a carochinha russa, que parece dar-se mal com as equipas mais exigentes. Mas tudo haveria de mudar à conta do vídeo-árbitro. Isto depois de o terceiro casal de franceses – ai, tasca, não sucumbas ao bolo do caco – assentar arraiais aos 48 minutos. “Viande ou poisson?”. Agradeço a vinda de mais uma Filipa para a mesa. “Obrigado, não. Não sou obrigado. Aqui é tudo de boa vontade”.
E eis que o VAR toma conta do jogo. Antes do recurso às imagens, já Joaquim sentenciara lá do canto. “É penalty”, com o mesmo ar de bonomia com que faz as contas ao bacalhau à braz e à chanfana que se serve todos os dias. Maranhos, só de vez em quando, honrando as raízes beirãs, mas hoje não é um desses dias. Hoje é um dia de fatalidades, como a que vitimou Santiago Nasar numa novela de García-Márquez. Momentos antes do pasmo, Luís pergunta aos recém-chegados “Tu sai comme il s’appelle? Cristiano Ronaldo”. Nome de penálti falhado. Mérito do guarda-redes, que está lá para defender. “Foi um remate muito denunciado”, frase-quase-tão-chavão como o Queria? Já não quer?, que não se usa no Cantinho.
O silêncio instala-se e os nervos afloram de mansinho. Aos 61, o malte também vem ao de cima. Quaresma rebola no chão depois de uma intervenção iraniana mais musculada. “Até eu senti a chapada, olha para aquilo. Quer-se dizer, estou a mentir, mas olha, é à tuga”. Se fosse Trump a apitar o jogo, o Irão incorreria com certeza em sanções. Como o homem do apito é paraguaio (para quê?), a bola rola e segue, até ao momento em que Quaresma resolve tirar de esforço com uma entrada mais dura. “Ai, lelo, que vai levar amarelo”. A cornucópia da graçola arraçada só conhece abundância.
O jogo encapela-se. Portugal vai cedendo o domínio e começa a pressentir-se um destino uruguaio. Diz o malte escocês, agora encostado à parede do fundo, tal e qual a selecção nacional, “Eu por mim tinha acabado com o Irão, a gente juntava-se com o gajo da Coreia não sei quantos e olha”. O remate perigoso da equipa treinada por Queiroz acaba de passar ao lado do poste de Rui Patrício. A leva de turistas de papo cheio vai saindo, pouco interessados que estão nos destinos de Ronaldo & Cª. “You go? That’s it, au demain. Eu tenho muita queda para isto. Só não tenho onde cair”.
Aos 83 minutos, nova intervenção do vídeo-arbitrário para sancionar um safanão de Ronaldo a Pouraliganji, e aos 85 entra um casal de asiáticos com um bebé de um ano, mais coisa menos coisa, que não há-de sair dali sem provar uma garfada de chanfana. “He’s very lucky, you know?”. E eis que em cima o apito final, já nos descontos, o VAR puxa novamente dos galões. Os comentadores ao serviço da televisão asseguram que nunca se viu tanto recurso às imagens, o senhor Manuel, mais esclarecido do que quando fala do seu Fóculporto, acaba por conceder. “A bola vai ao braço, ele vai ter de marcar penálti”. O homem do malte arrisca um “olha que não, Manuel”, o crítico dos tugas que se senta atrás de mim abraça a teoria das conspirações, “pois, contra a Alemanha não foram ver o vídeo, mas como é contra nós…”, e indiferente ao micro-cosmos da Rua de São José, a 5230 quilómetros de distância, Ansarifard não falha, pondo sob risco de ataque cardíaco uma nação de campeões europeus que só se sente realmente bem na bipolaridade.
Esgotado o último cartucho em forma de remate perigoso, que colocaria o Irão na segunda fase da prova pela primeira vez – o silêncio plúmbeo, as respirações em suspenso – o senhor Joaquim, homem de contas certas e fleuma da Golegã, acerta ao ângulo. “Agora caiu-te o coração ao chão, ó Luís”.
Levantei-me do lugar, paguei com multibanco, saí. No próximo sábado há mais, c*****o.
Pedro Vieira é pivot de televisão e ilustrador relutante