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Johanna: de rótulo em rótulo até chegar ao topo
Johanna Basford desenhou, por anos a fio, como freelancer, ilustrações para rótulos de vinhos e frascos de perfumes. Certo dia, em meados de 2011, a editora Laurence King, do Reino Unido, convidou-a a ilustrar um livro de colorir para crianças. Johanna fez uma contraproposta que lhe alteraria a vida – e a conta bancária. Sugeriu que o livro para colorir não fosse para crianças, mas para adultos.
A ideia não foi logo aceite pela editora, mas quando Johanna Basford lhes confidenciou que, durante anos, muitos dos seus clientes (os tais dos rótulos de garrafas e de frascos de perfumes) lhe pediam as ilustrações, maioritariamente a branco e negro, para as colorir, a Laurence King aceitou o desafio. Mas com cautela. A primeira tiragem de “Secret Garden: An Inky Treasure Hunt e Coloring Book” foi de “somente” 13 mil exemplares.
Entretanto, desde 2013, quando o livro finalmente saiu, a Laurence King já vendeu mais de dois milhões de cópias em todo o mundo. O livro é, hoje, o mais vendido no portal Book Depository e o terceiro mais vendido na Amazon. Em Portugal, o livro, com o título “O Jardim Secreto – Uma Caça ao Tesouro para Pintar e Colorir”, foi editado pela Edicare, uma editora que se especializou, não em livros para adultos, mas para a pequenada.
A editora da Edicare, Joana Mendes, comprou os direitos no início de 2014, mas o livro só saiu em outubro. Longe estava Joana de saber que, também em Portugal, o livro seria um sucesso, e chegaria ao top de vendas das livrarias portuguesas. “Comprámos os direitos porque ficámos apaixonados pelo livro. Não foi a questão da terapia, se funcionava ou deixava de funcionar, foi uma questão de gostar do livro como objeto.”
O livro vai já na quarta edição, e vendeu perto de 20 mil exemplares. Daqui por uns meses, no Natal, a Edicare publicará a “sequela” de “O Jardim Secreto”, denominada “Floresta Encantada”, também com ilustrações de Johana Basford. “A nossa ideia é apostar na coleção toda, em diferentes formatos, até que a moda se esgote”, confessa Joana Mendes.
Mas se é uma moda, por que razão o é? A editora da Edicare, não vê uma, mas três razões. “Há quem utilize estes livros — e nós temos as nossas próprias lojas, então convivemos de perto com os leitores — para reduzir o stress, há quem os compre porque acha que são bonitos, e há quem o faça por colecionismo. Temos leitores que compraram a primeira edição do “Jardim Secreto”, com uma capa linda, dourada, e que já vieram comprar a edição especial de verão, com uma capa diferente, que saiu em maio.”
Susana Sá, de 33 anos, e natural de Lisboa, é administrativa numa consultora. “Ofereceram-me o livro no meu aniversário, em abril. Eu sempre gostei de pintar, pintava muito em miúda, tinha material que não usava, tenho uma caixa de lápis com três andares, e era a altura ideal para usá-los. Ando com eles para todo o lado, no carro, e volta e meia vou a um jardim perto do meu trabalho, à hora de almoço, e pinto. Pinto sobretudo mandalas.”
A editora Planeta foi quem primeiro apostou nas ilustrações de mandalas, para adultos, em Portugal. E continua a apostar. “A editorial Planeta, cá e em Espanha, está a desenvolver livros próprios, e não a comprar direitos. E publicámos três livros: ‘Mandalas e outros Desenhos Zen para Colorir’, ‘Mandalas e Outros Desenhos Budistas para Colorir’ e ‘Mandalas e Outros Desenhos da Selva para Colorir’, todos do ilustrador Antonio Rodriguéz Esteban. E fomos os primeiros a trazer estes livros de arte-terapia para Portugal, logo a seguir à Presença. O primeiro livro, o dos desenhos budistas, chegou rapidamente ao top dos livros mais vendidos na Fnac. E eu creio que funcionou editorialmente, porque as pessoas estão, desde há uns anos para cá, de volta ao que é ‘antigo’, a retornar às origens, estar nos tablets, ‘estupidifica-nos’, e pintar é ser-se livre”, explica Sara Gomes, a editora.
Muitos destes livros de colorir para adultos são vendidos como livros de arte-terapia, que alivia o stress e contribui para um aumento da concentração diária. Susana Sá diz que não o faz por uma questão terapêutica. “Não sou propriamente o que se pode denominar de alguém stressado. Até porque eu faço meditação. Faço-o [colorir] por uma questão de criatividade. Há ali histórias para continuar, outras para contar ou descobrir. Mas admito que seja terapêutico. Quando se está a tentar acertar dentro das linhas, a escolher as cores, temos, literalmente, a mente cheia, estamos num universo só nosso, unicamente concentradas naquilo. Mas eu diria que, até quem não tem talento para desenhar, quem é pouco imaginativo, tem aqui um desafio. Os desenhos são muito bonitos, as mandalas são desenhos lindos, que se podem oferecer, emoldurar, e é por isso que os livros têm tanto sucesso.”
“Se é uma moda passageira? É uma pergunta que, se eu lhe soubesse responder, ficaria rica. [Risos]”, é assim que Sara Gomes responde, gracejando, à questão do sucesso repentino dos livros de arte-terapia. “Eu creio que pode ser passageiro, e daí não terem ainda surgido ilustradores e designers novos. Os livros que se vendem hoje são os mesmos de há um ano. É um risco produzir um livro, encomendar algo de um ilustrador novo, tudo demora a fazer, e corremos um risco grande, que é o da moda, e se for uma moda, passar de um dia para o outro. Mas acho que a arte-terapia veio para ficar. É mais barata que os ansiolíticos [risos], mais prática, não é viciante, não é química, e dá asas à imaginação de quem pinta. Mas, por enquanto, vamos continuar a apostar nas reedições dos livros que temos, e há mais um para sair, que será para colorir, a meias, entre pais e filhos.”
À mesa se esmiúça um livro para todos
Lá em casa são três a pintar: Sónia, de 41 anos, consultora numa operadora de telecomunicações, o marido, da mesma idade, que é designer, e a filha de 12 anos. Fazem-no uma vez por semana, sempre à noite, sempre à quarta-feira. “Confesso que sempre tive uma vocação para as artes. Vendi em feiras de artesanato, criei uma marca de feltros para pintura em tecidos, tanta coisa. O meu marido é designer de profissão e à minha filha também lhe é cultivado, desde pequena, o gosto pela pintura. Eu e o meu marido sempre pintámos com ela, todos juntos, mas em livros de colorir para crianças. Um dia o meu marido sugeriu-me comprar um livro de arte-terapia, os tais para adultos, e tornou-se um vício para nós. E partilhámos o vício com os outros. Uma vez por semana, é certo e sabido, sentamo-nos para pintar, conversamos sobre como foi o nosso dia, e é um programa divertido para se fazer em família”, conta Sónia, que também tem, na Internet, uma página dedicada aos livros, não só de colorir, mas todos eles: a Esmiúça o Livro.
“O que me atrai nestes livros, ao pintar estes livros, é a descontração que me dá. Eu estou tão concentrada no desenho, nas cores que vou conjugar, se aquele amarelo fica bem com aquele cor de laranja, em não fugir do traço, e, confesso, não penso em mais nada, nem no stress do dia-a-dia no trabalho, nem no trânsito que apanhei de manhã, nada. É o meu escape”, explica Sónia, a propósito da vertente terapêutica que estes livros podem ter.
A razão para se tornarem um sucesso está no que chama de “revivalismo”. Mas também podem ser “perigosos”. “Tornou-se uma moda, não só pelo revivalismo, não só porque, até para quem não tem jeito para pintar, aquilo é desafiante e fácil, mas porque os livros nem são caros, há-os para todos os preços, e é uma atividade que se faz perfeitamente em família. É uma terapia para a família. Claro que isto se pode tornar uma ‘obsessão’. Para mim não o é. Eu pinto num dia, pinto noutro, faço-o ao meu ritmo, sem a obrigação de ter que terminar logo ali, naquele dia. Mas há pessoas que se enervam, porque não gostaram do resultado final, porque viram na Internet uma ilustração mais gira que a delas, e enervam-se.”
“Arte-terapia é outra coisa”
Carlos Céu e Silva é psicólogo e autor de livros sobre psicologia, para adultos e na infância. O conceito de arte-terapia não lhe é estranho. Confessa que, outrora, num paciente seu que sofreu um AVC, cedo, aos 40 anos, lhe recomendou a prática artística, de modo a promover a sua recuperação intelectual. “Se se olhar para estes livros como um objeto artístico, livros que são estimulantes, que são organizadores, visualmente apelativos, eu diria que são interessantes. Olhando para eles como arte-terapia, sinceramente, não os consigo ver desse modo. São dois conceitos diferentes. É como ir à praia, dar uma pirueta, e dizer que se é um acrobata. Não é a mesma coisa”, explica.
Do ponto de vista da psicologia clínica, Carlos Céu e Silva vai mais longe, e considera até que estes livros de colorir, vendidos como arte-terapia, “não fazem sentido”. E explica a diferença entre o que é e o que não é arte-terapia. “Faz todo o sentido que seja um sucesso editorial, como o são os livros de autoajuda, numa sociedade que apela às coisas que são novas, imediatas. Em termos lúdicos e de ocupação de tempos livres, são livros que cumprem a sua função. Ao invés de se estar no computador, pinta-se. Mas se é um livro que resolva questões internas, mais profundas, existências ou psicológicas? Não, nem pensar. A arte terapia pode ser trabalhada através da música, do ensino da música, da expressão corporal, também da pintura, mas não uma pintura que é repetitiva, monótona, quase ‘castradora’, e com um traço que nos limita a criatividade. Criar a partir de uma folha em branco é algo completamente diferente”, conclui.
José Prata, o editor da Lua de Papel, uma chancela do grupo Leya, chegou aos livros de colorir para adultos por acaso, mas também ele se viu rendido, como editor e como “pintor de ocasião”, a este fenómeno de vendas global. “Eu descobri estes livros na feira de Frankfurt. Mas não são editores com quem eu lide, porque são editores de livros infantis. Mas até foi numa reunião com editores de livros para adultos que alguém me explicou que moda era esta, deram-me um ‘livrinho’, que eu levei para casa, colori e diverti-me. ‘Vamos publicar!’, disse eu. Longe estava de imaginar que os livros de colorir para adultos iam invadir o mercado.”
O primeiro livro que a Lua de Papel publicou foi o “Mindfulness”, o sexto mais vendido no Book Depository, um dos portais digitais de venda de livros mais procurado em todo o mundo, e o quarto mais vendido na Wook, em Portugal. José Prata vai, no entanto, ficar-se por aqui, quanto a publicações. O livro, que vai na 5.ª edição, já vendeu mais de 11 mil exemplares em Portugal. “Não vou apostar em mais livros de arte terapia. Os melhores livros, os livros que realmente vendem, já foram publicados por outras editoras. Os livros realmente bons, e que têm surgido depois do sucesso inicial, são livros que surgem muito inflacionados. Os preços que se estão a pagar não correspondem à realidade portuguesa. Por enquanto, o fenómeno em Portugal é uma réplica. Lá fora foi um terramoto editorial. Mas estou satisfeito, porque estou a vendê-los a um preço justo.”
O editor da Lua de Papel compreende o fenómeno, mas é crítico para com que vende os livros como “terapêuticos”, algo com que não concorda. “Não me surpreendeu o sucesso. Nós, em Portugal, no mercado editorial, temos tendência a replicar os fenómenos dos mercados estrangeiros. A surpresa foi só o facto de estes livros não serem livros de não-ficção, nem grandes romances comerciais, mas algo que escapa a tudo o que existia. A minha editora é líder do mercado em livros de auto-ajuda. Mas, sinceramente, não os vejo, aos livros de arte-terapia, como livros de auto-ajuda. Não há ali uma promessa de mudança. Nos livros de auto ajuda há um método que é proposto ao leitor. Estes livros não prometem isso, mas tão-somente a ocupação dos tempos livres.”
Colorir por distração (ou para dormir)
Mas há pessoas para quem estes livros são realmente terapêuticos. Sandra Antunes, hoje com 33 anos, viu-lhe ser diagnosticada, em abril, uma doença grave no ouvido interno, e perdeu a audição. Sandra é natural de Alhos Vedros, na margem sul do Tejo, e subgerente de uma loja de decoração de interiores. A doença fê-la deixar tudo. Hoje, pinta quase diariamente, e, a pouco e pouco, foi deixando para trás o “peso” da doença.
“Foi-me diagnosticada Labirinte. E há poucas semanas soube que a surdez súbita que me surgiu por via da Labirinte, afinal, era permanente. Uma surdez profunda. Os livros surgiram na minha vida, neste período difícil da minha vida, por um mero acaso. Foi através do Facebook, onde me cruzei com uma página de livros para colorir, que os descobri. Este é um momento demasiado ‘silencioso’ da minha vida. E a minha cabeça só girava em torno da doença, sempre a doença. Os livros fizeram-me abstrair desses pensamentos. E foi muito bom”, recorda.
A primeira editora a trazer os livros de arte-terapia para Portugal foi a Jacarandá, uma chancela da Presença. “Entrámos em maio com o ‘Reino Animal’, de Millie Marotta, o livro que acabou por vender mais, primeiro no Reino Unido e depois por toda a parte, de entre todos os livros de colorir para adultos. Comprei os direitos ainda em 2014, muito antes de a tendência começar em Portugal, mas tinha a certeza de que ia chegar ao nosso mercado. Apostei nele pela qualidade. E agora acabámos de lançar o segundo livro da autora, ‘Paraíso Tropical’”, explica Simona Cattabiani, a editora da Jacarandá.
O primeiro livro já vai na 3.ª edição, e vendeu mais de 10 mil exemplares em Portugal. O segundo título, “Paraíso Tropical”, chegou igualmente aos 10 mil. Simona acredita que o segredo do sucesso está precisamente na procura do bem-estar. “Penso que [o sucesso] está ligado a uma questão muito importante, e que é pertinente em todos nós, nos dias de hoje: como aprendermos a viver mais no momento e encontrarmos formas de relaxar do stress da nossa vida quotidiana. A diferença entre os títulos para adultos e crianças, e nós publicamos os dois, é que as crianças vivem naturalmente muito mais no momento, e a ‘terapia’ é, para eles, uma parte natural e intrínseca do colorir. Os adultos parecem ter que ‘redescobrir’ este prazer – e esta é uma das formas de o fazer.”
Elza Cordeiro tem 25 anos, é natural de Aljustrel, no Alentejo, mas trabalha como produtora de conteúdos para televisão na capital. Um trabalho de freelancer, irregular, “ora há, ora não há”, e que, por isso mesmo, a fez começar a colorir. “Comprei o meu primeiro livro há um mês. O livro é tão grande, que nem a meio vou de o terminar. Não é uma obsessão para mim. Mas tenho uma amiga que diz, em tom de brincadeira, tirem-me o livro da frente! Gosto, mas não sou obcecada por isto. E só comecei a pintar porque, como sou freelancer, nem sempre tenho trabalho, e, certo dia, passei por uma livraria, vi o livro, e resolvi comprá-lo para me entreter.”
Elza acredita que muitos dos “pintores de ocasião” se dedicam a colorir nos tempos livres, também, por uma questão de “revivalismo”. Nos Estados Unidos há quem chame a este mercado de livros de colorir para adultos, o “Mercado Peter Pan”. Mas, ao contrário dos livros para colorir da infância, as ilustrações, os padrões que compõe os livros de arte-terapia, são profundamente complexos, elaborados, e exigem de quem se agarra aos lápis, uma concentração que não é a de uma criança. “Eu diria que é uma moda porque nos remete para a infância. E nem é preciso ser-se muito, muito criativo, para conseguir pintar um livro destes. É um divertimento fácil, como na infância, sem pensar em grande coisa, é colorir por colorir. E traz-nos à memória esses tempos. Sabes quando o cheiro do pão com Nutella te recorda a infância? — a mim recorda-me. Colorir, o cheiro dos lápis, tudo isso me recorda a minha.”
Mas Elza também o faz por outras razões. “Eu confesso que, volta e meia, perco a paciência. Mas aquilo é tão minucioso, há tanto cuidado para não se sair do traço, que, sem dar por isso, estou concentrada, e só descanso quando termino de colorir o desenho. Não vejo isto como terapia. Mas sei que é. Tenho uma prima, mais ou menos da minha idade, lá no Alentejo, que tinha imensas dificuldades em adormecer, e que, à noite, antes de se deitar, ia pintar. E a verdade é que deixou de ter dificuldades em adormecer. Eu não tenho nada disso, nem sou tensa, mas, na volta, se discutir com o meu namorado, ele vai dormir, e eu, às duas da manhã, vou pintar, e passa-me a zanga”, graceja.
Reportagem e texto: Tiago Palma
Fotografia: Hugo Amaral
Vídeo e edição: Fábio Pinto
Infografia: Andreia Reisinho Costa