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Victor Kravchenko
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Keystone-France/Gamma-Rapho via Getty Images

Keystone-France/Gamma-Rapho via Getty Images

"Eu escolhi a liberdade": a história do dissidente soviético que testemunhou o “Holodomor” na Ucrânia

Em 1946, Victor Kravchenko publicou "Eu escolhi a liberdade". O livro relata testemunhos do antigo dirigente comunista, tornado dissidente. Antes da edição em Portugal, pré-publicamos dois excertos.

Victor Kravchenko não tinha ainda 40 anos quando se tornou num dos primeiros dissidentes soviéticos. Estávamos em 1944, a II Guerra não tinha ainda acabado e nesse tempo Estados Unidos e União Soviética ainda lutavam lado a lado para derrotar a Alemanha nazi. Mas este bolchevista, militante e dirigente do Partido Comunista, alguém que nascera e crescera como revolucionário – era filho de um revolucionário – tinha entrado em rutura com o regime ditatorial no período em que testemunhara os efeitos da coletivização nos campos da sua Ucrânia natal, mais precisamente na região do Donbass.

A grande fome, o “Holodomor”, marcou-o profundamente e, apesar de ter sobrevivido às purgas da década de 1930 – mesmo tendo estado preso e sido torturado –, quando foi colocado a trabalhar como adido comercial em Washington acabou por desertar e pedir asilo político.

“Eu Escolhi a Liberdade”, o livro que agora tem finalmente uma edição portuguesa, foi publicado em 1946 e teve na altura enorme impacto pois revelava, como antes não tinha ainda acontecido, não apenas os dramas que testemunhara nos campos da Ucrânia como as suas experiências como membro do Partido Comunista até ao rompimento com o regime.

Quando o livro foi traduzido para francês a obra estaria no centro daquele a que na época se chamou “o julgamento do século” pois Kravchenko processou uma revista próxima do então muito influente partido comunista francês, Les Lettres Francaises, por nesta se ter escrito eu ele era um bêbado e que o conteúdo do livro não era verdadeiro. Ganhou o processo e com o tempo veria inúmeras investigações históricas e outros testemunhos corroborar aquilo que contara sobre as fomes, as perseguições e o Gulag. Victor Kravchenko morreria em 1966, em Nova Iorque, suspeita-se que envenenado por agentes do KGB.

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Editado pela Aletheia e pelo Instituto +Liberdade, selecionámos do livro que chega às livrarias na próxima semana dois extratos, dois testemunhos muito pessoais, o primeiro sobre a visita a uma região devastada pela fome, o segundo sobre uma sessão de um “julgamento” de quadros durante as grandes purgas.

A capa de “Escolhi a Liberdade”, de Victor Kravchenko

Uma Colheita no Interno

Subcapítulo 3

Não tenho palavras suficientemente fortes para descrever o horror das cenas que presenciei naquela manhã em que, acompanhado por Chadai, inspeccionei, uma por uma, as casas da aldeia. No campo de batalha, a morte é rápida, o indivíduo pode reagir, existe a noção de solidariedade e de um dever a cumprir. Aqui, vi homens a morrer isolados, aos poucos, uma morte sem beleza, sem justificação do sacrifício feito por uma causa. Eram criaturas desmaiadas e abandonadas à morte por fome, por culpa de uma deliberação política tomada à volta de mesas de conferências ou de banquetes na capital longínqua.

O espetáculo mais impressionante era o fornecido pelas crianças, com os membros esqueléticos e o ventre abaulado. Nos rostos, de onde todos os traços de juventude tinham desertado, só a expressão dos olhos conservava um longínquo clarão de inocência. Por toda a parte encontramos homens e mulheres deitados de bruços, o rosto e o ventre entumecidos, os olhos esgazeados.

Numa determinada porta batemos sem obter resposta. Depois de bater pela segunda vez, empurrei-a suavemente e através de um corredor estreito chegámos à única divisão da casa. Os meus olhos, de início atraído pela luz de um ícone na parede, desceram depois até uma cama, onde estava estirado o corpo de uma mulher de meia-idade, as mãos cruzadas no peito sobre uma blusa ucraniana bordada e engomada de fresco. Aos pés da cama, uma velha e duas crianças aproximadamente da mesma idade, que choravam mansamente e repetiam em tom monótono e plangente: “Mamãzinha, mamãzinha querida.” Passeando os olhos em volta, deparei com o corpo inchado, inerte, de um homem estendido sobre a coberta do forno inútil…

O horror daquele quadro residia menos no cadáver sobre a cama do que nas condições dos vivos que testemunhavam a cena. As pernas da velha estavam completamente entumecidas ; o homem e as crianças tinham indubitavelmente alcançado os últimos limites da inanição. Retirei-me, rapidamente, envergonhado da minha pressa.

Na casa vizinha encontrámos um homem de cerca de quarenta anos, sentado num banco, a consertar um sapato. Tinha o rosto inchado. A seu lado, um rapaz de aspeto asseado, reduzido a pouco mais do que um esqueleto, tinha um livro entre as mãos e uma mulher, extremamente magra, atarefava-se no fogão.

“Que está a cozinhar, Natalka?” perguntou Chadai.

“Você bem sabe”, respondeu a mulher, e na sua voz havia uma fúria assassina.

Chadai fez-me um sinal e retirámo-nos.

“Por que razão ficou ela tão zangada?” perguntei-lhe cá fora.

“Porque… – na verdade, tenho vergonha de dizer-lhe, Victor Andreyevich… – está a cozinhar esterco de animal com algumas ervas.”

O meu primeiro impulso foi voltar à casa e impedir aquilo, mas Chadai deteve-me. “Não vá, peço-lhe. Você não conhece o ponto de miséria alimentar a que chegou esta gente. São capazes de matá-lo, se tenta tirar-lhes o alimento.”

Depois de visitarmos cerca de uma dúzia de casas, cedi à súplica de Chadai para que cessássemos a inspeção. “É o mesmo por toda a parte. Agora, já sabe bastante”, disse.

De facto, já não tinha mais dúvidas sobre o caminho a seguir. Aquela situação desesperada exigia medidas extremas. Estava decidido a infringir ordens e regulamentos, quaisquer que fossem as consequências sobre mim próprio. De volta a casa de Chadai, despachei um mensageiro com uma carta para o camarada Somanov, chefe do nosso Departamento Político. À tardinha, o mensageiro voltava com a
resposta:

“Estou inteiramente a par de toda a situação. Insisto em que volte a ponderar sobre o assunto, pesando todas as suas consequências. A sua proposta resultaria numa grave infração às nossas ordens mais estritas. Caso não encontre outra solução, entretanto, permito-lhe tomar as providências que julgar necessárias. Pelo meu lado, tentarei obter-lhe algum trigo, embora não tenha muita esperança de consegui-lo.”

Na segunda herdade coletiva, as condições eram idênticas. Alguns camponeses ainda possuíam vacas, mas eram obrigados a entregar todo o leite para o plano de produção de manteiga do governo. Por toda a parte o mesmo ambiente de fraqueza física, de apatia e de total desespero.

A resposta satisfez-me; pelo menos, não me deu um “não” categórico. Na minha carta propunha recolher alguma aveia para alimentar os cavalos e moer uma determinada quantidade de centeio para distribuir à população, embora não ignorasse ser este precisamente o crime que o Izvestia denunciava como “apropriação indevida da propriedade do Estado” e “sabotagem kulak.”

Na segunda herdade coletiva, as condições eram idênticas. Alguns camponeses ainda possuíam vacas, mas eram obrigados a entregar todo o leite para o plano de produção de manteiga do governo. Por toda a parte o mesmo ambiente de fraqueza física, de apatia e de total desespero.

Pedi a Chadai e Demchenko que convocassem para uma reunião os dois professores da aldeia, o médico e algumas das mulheres mais inteligentes e decididas dos diversos kolkhozes. Ao mesmo tempo, solicitei a presença de Belousov, de Kobzar e de Karas. O ambiente era de expectativa; alguns, particularmente Kobzar, não escondiam o seu ceticismo.

“Convoquei-os aqui, camaradas, principalmente às mulheres, porque preciso consultá-los sobre assunto urgente”, comecei. “Alegro-me com a presença do comissário do Soviete, do secretário do Partido e do administrador da fábrica elétrica. Tenho percorrido as casas da aldeia e posso falar com conhecimento de causa. Não há nada mais alarmante do que a situação das crianças. E como esperar que os homens trabalhem, com o pensamento nos filhos a morrer à míngua?

Famine In Ukraine

Ucrânia, 1934. Duas crianças com um saco de batas que descobriram e que tinha sido escondido por uma mulher que fora deportada pera a Sibéria acusada de roubar comida

Getty Images

Eis o meu plano. Chadai informou-me de que existem no povoado algumas casas vazias. Quero que as mulheres aqui presentes se encarreguem de limpá-las e acondicioná-las para serem habitadas. Pretendo instalar nelas as crianças, até que a colheita esteja terminada. Comecem por lavá-las, cortar-lhes os cabelos, vaciná-las contra o tifo. Preparem mesas para as refeições e tragam todas as vasilhas disponíveis para cozinhar. Estão dispostos a ajudar?”

“Claro que estamos”, disse uma das mulheres. “Porém, onde arranjaremos a comida?”

“Dir-lhes-ei mais tarde. Por ora, desejo que me indiquem, na vossa opinião, a pessoa mais capaz de tomar conta dessas crianças.”

“Kononenko”, gritaram algumas vozes. “Ivan Petrovich… o professor.”

Voltei-me para o velho que me era indicado. “Ivan Petrovich, se estas pessoas o escolheram, pode contar com a minha confiança. Confio-lhe toda a responsabilidade do plano em relação às crianças. Escolha os seus auxiliares e conte comigo para o que for preciso.”

“Estou à sua disposição,, respondeu o mestre, “e como não haveria de estar? Trata-se do meu próprio povo. Se nos der de comer, garanto o resto.” Havia lágrimas na sua voz.

“Obrigado, Ivan Petrovich. Pode contar com o alimento. Dou-lhe a minha palavra de honra.”

Despedi todos, conservando apenas os funcionários oficiais, que fiz passar a outra sala, trancando a porta.

“E agora, camaradas, mãos à obra. Não se espantem com o que acabaram de ouvir. Conheço as instruções oficiais, tanto como vocês, talvez melhor ainda; apesar disso, estou a dar licença aos camponeses para colherem aveia com que alimentar os cavalos, bem como a cevada, nos pontos em que estiver madura.

Comecem a trabalhar imediatamente, de modo a entregar uma quota diária de um quilo de farinha de aveia por família, quota essa que será aumentada gradualmente, a fim de que a época da colheita encontre o povo em condições de trabalhar. Forneçam a Ivan Petrovich toda a quantidade de que necessita para alimentar as crianças a seu cargo.

Autorizo-os também a abater o número de porcos que julgarem necessário para fornecer alguma carne às crianças, juntamente com os cereais.”

À medida que falava, percebia que nas faces dos meus interlocutores se espalhava uma expressão de dúvida, aos poucos transformada em pânico. Nos seus olhos lia distintamente: “Terá este homem enlouquecido? Quererá ele ver-nos fuzilados a todos, inclusive a ele próprio?”

“Mas, camarada Kravchenko”, tentou Kobzar intervir.

“Não há nenhum mas. Façam o que lhes ordeno. A responsabilidade é exclusivamente minha.”

“É meu dever informar o Departamento Político…” começou a dizer Belousov, erguendo-se excitado.

“Penso que se engana, camarada Belousov.” Era o administrador da fábrica que vinha em meu auxílio. “Se o Delegado Oficial do Comité Regional o ordena, ele deve saber o que está a fazer e a nós compete-nos obedecer-lhe.”

“Não o proíbo de informar quem quer que seja”, respondi. “Está no seu direito. Previno-o, contudo, de que será considerado responsável pelo não cumprimento das minhas instruções. O mesmo se aplica a si, camarada Kobzar. É tudo por hoje, camaradas.”

À saída, encontrei o olhar grato de Chadai. Logo Demchenko se acercou de mim.

“Irei ajudá-lo, nem que seja à custa da minha própria vida”, murmurou em voz rouca. “E agora, que já começou, camarada Kravchenko, que tal uma visita ao armazém cooperativo? Venha, irei apresentá-lo a Makarenko, o responsável.”

O armazém apresentava um aspeto de sujidade e relaxamento. Apenas existia um busto de gesso de Estaline e algumas litografias de outros líderes, as prateleiras estavam vazias. Makarenko era um homenzinho servil, astuto e bajulador. Falei-lhe da minha decisão de socorrer as crianças da aldeia e pedi-lhe que cooperasse comigo.

“Quero que me faça entrega, imediatamente, dos mantimentos que tem em depósito”, disse-lhe. “Logo que a colheita estiver terminada, pagar-lhe-ei em trigo.”

O homenzinho alarmou-se. Tinha ordens expressas que não podia infringir e ao mesmo tempo não queria desagradar ao Delegado do Partido.

“De facto, camarada, tenho algum sal, doces, cerca de dez poods de aveia, algum peixe defumado e um pouco de sabão. Se os kolkhozes assinarem um compromisso de me pagar em trigo e feno, consinto em ceder-lhe tudo. Em primeiro lugar, porém, tenho de obter a permissão do escritório do distrito; só amanhã poderei dar-lhe uma resposta. Entretanto, permita-me um pequeno conselho: porque não visita o nosso entreposto de manteiga?”

“Que quer dizer com isso?”

“É o lugar onde entregamos todo o nosso leite”, explicou Demchenko, “que é transformado em manteiga para exportação.”

“Para exportação?”

“Exatamente, camarada Kravchenko. É acondicionada em papel impresso com dizeres em língua estrangeira. Como vê, fome é uma coisa, comércio é outra.”

“Pois bem, leve-me até lá”, pedi.

“Bem sei que a gente do campo está a morrer à fome”, disse o director. “Causa-me horror pensar que esta manteiga se destina ao uso de estrangeiros bem nutridos. No entanto, diga-me: que posso fazer? Apenas sigo instruções."

O entreposto de manteiga ficava a alguma distância da aldeia. O responsável, um comunista amável, de ar profundamente infeliz, fez-me percorrer o estabelecimento. Numa das dependências, a manteiga estava a ser cortada em barras e enrolada em papel que trazia impressos os dizeres USSR BUTTER EXPORT.

“Bem sei que a gente do campo está a morrer à fome”, disse o director. “Causa-me horror pensar que esta manteiga se destina ao uso de estrangeiros bem nutridos. No entanto, diga-me: que posso fazer? Apenas sigo instruções. Ainda assim, tenho a tarefa em considerável atraso e decerto serei punido. Os camponeses estão famintos, não entregam todo o leite; as vacas não produzem devido à falta de forragem.”

“De qualquer maneira”, disse-lhe, “preciso do seu auxílio. Essas crianças têm de ser alimentadas. Se não há manteiga, não pode deixar de haver alguns produtos derivados.”

“Isso é fácil de dizer. O facto é que, tal como Makarenko, não só tenho de cumprir as ordens do governo, como sou obrigado a sustentar os seus funcionários locais. Kobzar, Belousov e os seus diversos auxiliares consomem todo o meu stock suplementar de manteiga e de nata.”

“Pois bem, de hoje em diante parte do seu stock será destinado às crianças”, declarei.

“Pela minha parte, não faço objeções, contanto que obtenha o consentimento dos meus superiores.” Fez uma ligeira pausa, como que para reunir as suas últimas reservas de coragem. “Pois bem, não pedirei permissão alguma. Mande o povo aqui amanhã. Também tenho filhos!”

Na viagem de regresso à aldeia, senti a cólera fervilhar no meu cérebro. Exportar manteiga de uma terra onde se morria de fome! Em imaginação, via Londres, Berlim, Paris, e criaturas a comer manteiga com a etiqueta soviética. Podia mesmo ouvir-lhes os comentários: “Isto, amigos, é uma prova do socialismo aplicado. O país deve estar rico, para poder exportar manteiga.” Atravessava os campos e não ouvia o menor eco das canções ucranianas que me eram tão caras.

Aquelas pessoas já não sabiam cantar. Apenas me chegavam aos ouvidos os gemidos dos moribundos e o estalar dos lábios de estrangeiros, deliciando-se com a nossa manteiga…

Naquela noite, à mesa do jantar, um empregado veio prevenir Chadai de que tinha morrido um cavalo. Chadai deu-lhe instruções para esfolar o animal, transportar a carcaça para um local afastado da aldeia, embebe-la em querosene e cobri-la de cal viva. Era a única maneira, explicou-me, de evitar que os camponeses famintos devorassem a carne putrefacta

Ao chegar aos campos dos kolkhozes, verifiquei ter começado a colheita da aveia e da cevada. Pelas diversas povoações, fazia-se a concentração das crianças para uma limpeza geral. O velho Ivan Petrovich superintendia os trabalhos, auxiliado por uns vinte homens e mulheres, entre as quais reconheci a mulher de Chadai. A minha cólera diluiu-se num sentimento de afeição para com aquela gente simples. Vira-os taciturnos e obstinados ante ameaças de chicote e armas de fogo, e via-os agora animados, sorridentes, concentrados numa tarefa de abnegação.

Naquela noite, à mesa do jantar, um empregado veio prevenir Chadai de que tinha morrido um cavalo. Chadai deu-lhe instruções para esfolar o animal, transportar a carcaça para um local afastado da aldeia, embebê-la em querosene e cobri-la de cal viva. Era a única maneira, explicou-me, de evitar que os camponeses famintos devorassem a carne putrefacta. Mais tarde, vieram ver-nos o professor e o médico, que nos trouxeram boas notícias. Os cereais recém-colhidos estavam a ser secados artificialmente, e na manhã seguinte as crianças teriam o seu primeiro almoço substancial. Também se tinham abatido alguns porcos.

“Já nos falaram sobre a manteiga”, disse Ivan Petrovich, “mas isso não basta. Algumas das crianças estão extremamente enfraquecidas; é indispensável que tenhamos algum leite.”

Refleti um momento. Afinal já me envolvera a tal ponto em transgressões e “sabotagem”, que bem podia ir um pouco mais adiante.

“Chadai”, disse, “autorizo-o oficialmente, diante destas testemunhas, a suspender a entrega de leite aos funcionários oficiais e a reservar um terço da produção total para uso da obra de assistência às crianças. O mesmo se aplica ao kolkhoz de Demchenko.”

Naquela noite, revolvendo-me na cama sem dormir, pensava na nova classe de privilegiados que se tinha criado na aldeia – nos funcionários do Partido e do Soviete que recebiam leite e manteiga e géneros alimentícios, enquanto à volta deles o povo morria de fome

Naquela noite, revolvendo-me na cama sem dormir, pensava na nova classe de privilegiados que se tinha criado na aldeia – nos funcionários do Partido e do Soviete que recebiam leite e manteiga e géneros alimentícios, enquanto à volta deles o povo morria de fome. Era doloroso constatar o quanto se tinham deixado corromper por honrarias e privilégios aqueles homens que ainda há alguns anos eram eles próprios simples camponeses e hoje se arvoravam numa casta favorecida, vivendo num mundo à parte, amparando-se mutuamente contra a comunidade.

Na manhã seguinte, ocupei-me da inspecção da maquinaria, cujas peças sobressalentes tinham acabado de chegar. Ao mesmo tempo atendia um dos membros da junta administrativa do kolkhoz, quando um camponês se aproximou dele, dizendo-lhe qualquer coisa ao ouvido.

“Repita isso ao Delegado Oficial!” disse o meu interlocutor.

“Pois bem, o facto é este, camarada Delegado Oficial: a noite passada, morreu um cavalo. Depois de esfolado a carcaça foi embebida em querosene e recoberta de cal viva. Esta manhã, quando se dispunham a enterrá-la, não havia já sinal de carcaça. Toda a carne apodrecida e estragada fora levada durante a noite! Meu Deus, a que situação chegámos!”

Famine In Ukraine

Belgorod, Ucrânia, 1934. Até os animais morriam de fome por falta de forragens.

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Primeira Depuração

Subcapítulo 2

“Camarada Sanin, por favor”, chama o presidente Galembo.

Um rapaz alourado, de uns trinta anos, sobe rapidamente ao estrado e apresenta o seu cartão. É magro, simpático e usa óculos, todos o conhecemos e todos o apreciamos – é um professor de matemática que deve a sua popularidade a uma ligeira deficiência técnica e à extrema liberalidade do seu trato. Passa a desfiar a história da sua vida. Filho de camponeses, inicia a sua carreira de comunista filiando-se no Komsomol. A sua vida profissional começou como operário de torno numa fábrica; frequentou a Escola, entregou-se a pesquisas científicas e finalmente fez-se professor.

Segundo tudo indica, uma carreira exemplar. A assistência aborrece-se. Subitamente, porém, o relato daquela irrepreensível biografia é interrompido por um dos membros da Comissão.

“Camarada Sanin”, diz em tom amável, “é verdade que quando andava na Escola, juntamente com outros estudantes, assinou um documento trotskista?”

Há uma ligeira agitação na plateia. Os espectadores sussurram e trocam olhares entre si.

“Sim, é verdade, mas de há muito renunciei a esse programa e todos sabem que o fiz.”

“Assim, confessa que o assinou?” insiste o examinador.

“Certamente. Nunca fiz segredo disso. Todos os meus colegas e o Partido sabem que cometi esse erro, que mais tarde reconheci publicamente.”

“É possível, camarada Sanin. Contudo, a mim próprio pergunto se tudo foi esclarecido, como também me interrogo se todos sabem que ainda partilha algumas das opiniões condenadas pelo Partido e pelo povo soviético?”

A animação da sala cresce sensivelmente. A multidão fareja sangue. Os camaradas de Sanin começam a preocupar-se. Um após outro põem-se a fazer-lhe perguntas com a intenção evidente de embaraçá-lo e salvar com isso a própria pele. Quanto mais próximos são, mais ansiosos parecem por culpá-lo e por exibir a sua justa reprovação por tão hediondos “crimes.” Na sua qualidade de companheiros, conhecem os pontos fracos do rapaz e procuram atingi-lo em cheio. Sanin embaraça-se, custa a atinar com as respostas exatas.

Não há dúvida que o destino de Sanin está decidido. Agora, que o veem derrubado, vencido, os seus camaradas apressam-se a arrastá-lo definitivamente para o abismo. Ninguém fornece qualquer informação precisa; todos se exprimem em frases gerais.

“Camaradas da Comissão”, diz por fim, “eu próprio condenei o trotskismo. Uma única vez, num momento de fraqueza, fui levado a assinar um documento, que me apressei a denunciar. Estes mesmos que me acusam estão a par de todos esses factos, e não posso compreender porque se esforçam por disfarçar a verdade.”

O presidente interrompe-o, em tom escarninho.

“Não importa: nós sabemos muito bem como vocês, trotskistas, inimigos do Partido, mudam facilmente de opinião. Temos dados concretos que provam que as suas ideias não mudaram e não é à toque os seus colegas levantam objeções.” Voltando-se para a assistência, acrescentou: “Quem quer falar?”

Não há dúvida que o destino de Sanin está decidido. Agora, que o veem derrubado, vencido, os seus camaradas apressam-se a arrastá-lo definitivamente para o abismo. Um após outro levantam-se para afirmar que Sanin é um impostor, aparentemente leal ao Partido, porém, internamente, corrompido por toda a espécie de ideias subversivas. Ninguém fornece qualquer informação precisa; todos se exprimem em frases gerais. De repente, algo de inesperado acontece. Um engenheiro, nome conhecido e respeitado em toda a Escola, ergue-se e pede a palavra.

“Ouvi com atenção todas as objeções”, começa, “mas nada encontrei de decisivo. Camaradas, estamos aqui para decidir o destino político de um membro do Partido. Onde estão as acusações concretas? Não existem!”

URSS, década de 1930. Kulacks num campo de concentração

A sua defesa não faz senão excitar os ânimos. Encorajados pela Comissão, que obviamente decidira tudo de antemão, os colegas de Sanin continuam a acusá-lo e a caluniá-lo. Finalmente é expulso do Partido.

Dentro em pouco, estamos a ouvir o relato da vida de um outro estudante, um rapaz moreno, de vasta cabeleira e traços de judeu. Sendo ainda muito jovem, a sua história é curta. Passa logo à fase de interrogatório do processo.

“Diga-me, camarada Shulman, qual era a situação social dos seus pais antes da revolução?”

“Meu pai era alfaiate.”

“Shulman mente!” grita alguém da plateia.

Há um movimento geral de excitação. Afinal de contas, a sessão parece tornar-se interessante. Shulman é um indivíduo rabugento e fechado, que conta com poucos amigos.

“Como pode provar que este militante está a mentir à Comissão e ao Partido?” pergunta Galembo, dirigindo-se ao autor da interrupção. Segundo tudo indica, esta não foi totalmente inesperada.

"Shulman e eu provimos ambos da cidade de Cherkassy. O seu pai tinha uma alfaiataria e numerosos empregados. Era, portanto, um explorador do trabalho. Na qualidade de filho de explorador, penso que Shulman deveria ser expulso do nosso bem amado Partido."

“Provarei com facilidade. Shulman e eu provimos ambos da cidade de Cherkassy. Acabo de ingressar na Escola e é a primeira vez que vejo Shulman; mas conheço a sua família. O seu pai tinha uma alfaiataria e numerosos empregados. Era, portanto, um explorador do trabalho. A loja ficava na rua Alexandrovsk. Na qualidade de filho de explorador, penso que Shulman deveria ser expulso do nosso bem amado Partido.”

O réu empalideceu. Põe-se a estalar os dedos com nervosismo. Os acontecimentos precipitam-se em direcção inesperada e tem dificuldades em organizar as suas respostas.

“É natural de Cherkassy?” indaga o presidente com severidade, depois de pedir ordem à assistência.

“Sim, por certo, já o disse antes.”

“Seu pai tinha de facto uma loja de alfaiate no endereço mencionado?”

“Sim, é exato; não explorava, porém, o trabalho alheio. Juntamente com os demais alfaiates, constituíam uma oficina, que ele apenas dirigia. Tratava-se de uma pequena cooperativa, garanto-lhes. Aliás, eu nada tinha a ver com isso; trabalhava numa fábrica, noutra cidade.”

“Contudo, tratava-se de seu pai, não é verdade? E você escondeu do Partido que provém de uma família de exploradores?”

“Não escondi nada. Tratava-se de uma oficina, de uma cooperativa. Pela minha parte, trabalhava na fábrica e a minha ficha de estudante e de Comunista está em ordem.”

A sua própria atitude o condena. Quanto mais excitado se torna, mais ressalta o seu acento judaico. Estouram risos pela sala. “Expulsem-no!” grita alguém. “Fora com ele, traiu o Partido!” Shulman cambaleia ao descer o palco; as lágrimas cegam-no. Todos percebem que não tardará a ser expulso da Escola, que a sua carreira está encerrada.

Seguem-se alguns outros interrogatórios de mera rotina. As matrículas são entregues. Em seguida, chega a vez do camarada Tsarev. Embora perto dos quarenta, é ainda estudante. Tem a testa e as faces sulcadas profundamente. A sua postura rígida trai o antigo militar, que, segundo a sua própria narração, obteve numerosas condecorações durante a guerra civil. Posteriormente trabalhou numa fábrica, matriculando-se a seguir na Escola. É casado e tem dois filhos.

“Diga-nos, camarada Tsarev”, interroga o presidente, “que pensa da obra de Colectivização? Qual foi a sua atitude real?”

“Trabalhei nas aldeias, camarada, e prestei auxílio à extinção da classe dos kulaks. Confesso ter achado certas medidas muito incómodas e desagradáveis, embora, em princípio, haja concordado com elas.”

“Parece não ter compreendido a minha pergunta, camarada Tsarev, ou talvez prefira fingir que a não compreendeu. Você não foi o único que achou desagradável a execução deste grandioso empreendimento. Interessam-me apenas os seus sentimentos políticos.”

“Jamais discordei do Partido.”

“Infelizmente, isso não é verdade.” O examinador acena com algumas misteriosas folhas de papel que tem na mão. “Temos em nosso poder dados que demonstram que, na época do extermínio dos kulaks, você aprovou a declaração de Bukharin, que criticava a política do camarada Estaline. Camaradas Kasarik e Somov, peço-lhes que se apresentem e confirmem as vossas declarações perante a Comissão.”

Os dois estudantes eram figuras conhecidas: do tipo dos que estudam pouco e falam demais. Subindo à tribuna, repetem o seu depoimento, segundo o qual, enquanto trabalhavam com Tsarev no campo, tê-lo-iam ouvido criticar frequentemente a táctica da Colectivização. Passam a citar com minúcia as suas supostas palavras. De nada adiantam as tentativas de Tsarev para interrompê-los. Não há dúvida que é um caso perdido.

“Um comunista leal deve confiar no Comité Central e no nosso amado Líder, camarada Estaline.” A assistência aplaude. “O Partido não comporta indivíduos da sua espécie, que têm a ousadia de negar os próprios erros.” Novos aplausos. “Expulso.”

Percebo que estou preocupado. O procedimento de Tsarev nas aldeias, as próprias palavras citadas assemelham-se demasiadamente ao meu próprio caso.

“E agora, Tsarev”, o presidente volta-se para ele; “persiste em negar a sua discordância com o Partido?”

“Certamente. Tudo isto é puro exagero. Aliás, criticar não implica necessariamente com discordar. Sou humano, e havia muito sofrimento à minha volta.”

Galembo interrompe-o bruscamente, receoso de que fale demais.

“Um comunista leal deve confiar no Comité Central e no nosso amado Líder, camarada Estaline.” A assistência aplaude. “O Partido não comporta indivíduos da sua espécie, que têm a ousadia de negar os próprios erros.” Novos aplausos. “Expulso.”

“Apelarei para o Comité Central”, clama Tsarev. “O meu passado militar é irrepreensível e a minha missão nas aldeias foi bem sucedida. Derramei o meu sangue pela revolução. Vocês não têm o direito de arruinar a minha vida!”

A Comissão, porém, já nem o ouve mais, ocupada em reunir os documentos sobre o caso seguinte. Tsarev era uma das figuras mais populares da Escola, mas ao descer do palco todos se afastaram dele.

O próximo a ser interrogado é Dukhovtsev. Operário desde a idade dos oito anos, chegou ao posto de contramestre e foi um dos escolhidos para vir a ser engenheiro pelo Partido. Responde sem vacilar a todas as perguntas que lhe fazem, produzindo excelente impressão na plateia.

No meio do interrogatório, Galembo pergunta-lhe casualmente: “É casado, camarada Dukhovtsev?”

“Sou.”

“Quando se casou e quem é a sua mulher?”

“Casei-me o ano passado. Minha mulher é filha de um guarda-livros e atualmente trabalha como enfermeira num hospital.”

“Diga-me, o seu casamento foi registado? Por outras palavras, como se realizou o casamento?”

Dukhovtsev empalidece e mostra sinais de embaraço. De repente, parece perceber a importância da direção tomada pelo inquérito. A assistência cala-se, em angustiosa expectativa. No meio de pesado silêncio, o réu, em voz baixa, confessa a tremenda verdade:

“Casei-me na igreja”, diz com relutância.

Rompe-se a tensão do ambiente. A assistência desata em gargalhadas estrondosas.

“Bem sei que é ridículo, camaradas”, a voz de Dukhovtsev tenta dominar o ruído das risadas. “acreditem, a cerimónia religiosa nada significa para mim. Mas estava apaixonado e os pais da minha noiva não consentiriam no casamento se não me prestasse à comédia na igreja. Trata-se de gente atrasada. Minha mulher não dá valor a essas superstições, mas, como filha única, não queria magoar os seus velhos pais. Por mais que insistisse e implorasse, não cedeu; por meu lado, eu não podia viver sem ela. Concordei finalmente em casar-me secretamente numa distante capela de aldeia. Na viagem de regresso, escondi na minha maleta o véu e as flores.”

A multidão não pôde conter as suas expansões de gozo. Em vão o presidente reclama ordem no recinto. Dukhovtsev, já descontrolado, grita ainda mais alto:

“Não somos crentes, juro-lhes. Minha mulher trabalha, eu estou a estudar; temos um filho. Suplico-lhes, camaradas, que relevem esta minha falta. Confesso que sou culpado em ter escondido este crime do Partido.”

Embora muitos se tenham levantado para o defender, não escapa à expulsão. O facto de ter escondido algo do Partido concorre para agravar o crime já existente.

E assim a depuração prossegue, dia após dia. As sessões começam imediatamente depois das aulas, ou seja, pelas cinco horas da tarde, e prolongam-se pela noite dentro. Ao fim da primeira semana, quando o espectáculo começa a tornar-se monótono, com o indefetível cortejo de lágrimas, risos e disparates, a nossa atenção volta a ser despertada. Calha a vez de ser interrogado um professor eminente e cientista de renome, camarada Pedro Yolkin. Ninguém desconhece que é filho de um antigo sacerdote, o que lhe torna a situação precária, embora o pai, para não lhe prejudicar a carreira, tenha abjurado publicamente a sua crença.

Sem essa negação, Pedro jamais teria ingressado no Partido, a despeito do seu valor pessoal como cientista. A dedicação do réu ao trabalho de pesquisa é algo de totalmente desinteressado. O seu registo profissional acusa longas horas de trabalho como assistente em fábricas, em laboratórios, em salas de aula, como se, por esse zelo ilimitado, procurasse fazer esquecer a sua vergonhosa tradição familiar.

Encontrei-o por acaso, na manhã anterior ao dia marcado para o interrogatório.

“Como te sentes, Pedro?” perguntei.

“Não muito bem, Vitya. Tombarei, varado pela seta, ou passará ao largo sem ferir-me?”

“Hum! Se és obrigado a citar Eugenio Onegin, deves estar realmente preocupado”, balbuciei.

Agora, diante de uma assistência desusadamente numerosa, desfia a história da sua vida. Talvez devido aos seus antecedentes eclesiásticos, demonstra excecional facilidade para essa exposição. Declara jamais ter procurado esconder aquele facto vergonhoso da sua vida. Aliás, o pai renegara-a publicamente, através da imprensa. Certo, não tinha sido tarefa simples romper todos os laços da tradição e varrer até ao último traço das superstições de infância. Conseguira-o, porém, e hoje dedica-se integralmente à pesquisa científica, a melhor maneira, acredita, por que pode prestar serviço ao Partido e a Estaline.

“Diga-me, camarada Yolkin”, pergunta o presidente Galembo, “há muito que conhece Sanin?”

“Sim, há algum tempo. Fomos companheiros de escola, graduámo-nos juntos no Instituto e hoje ensinamos ambos aqui.”

“Sabia que Sanin assinou um documento trotskista?”

“Sim, tanto como muitos outros aqui presentes.”

“Não pergunto sobre os outros e sim sobre si.”

“De facto, não ignorava”, concorda Yolkin.

“Nesse caso”, Galembo eleva a voz, irritado, “porque não informou do facto à Comissão de Depuração.”

“Não via motivo para fazê-lo, sendo isso do domínio público. Além de que, Sanin renegara publicamente o seu erro e tudo se passou há muito tempo atrás.”

“Veja bem, Yolkin: não nega ter sido próximo de Sanin. Como membro esclarecido do Partido, não pode ignorar as manhas dos nossos inimigos, tanto da esquerda como da direita. Porque não nos informou sobre a atitude de Sanin?”

“Jamais o ouvi falar contra o Partido. E nada tenho a acrescentar sobre o assunto.”

“Muito bem; e quanto a Ponomarev? Conhece-o?” Era a vez de outro membro da mesa tomar a ofensiva.

“Sim, conheço-o. Foi um dos signatários do manifesto trotskista.”

“Acaso informou sobre ele à Comissão?”

“Não, pelos mesmos motivos que no caso de Sanin.”

“Por outras palavras, não apenas tem amigos trotskistas como ainda esconde do Partido as suas abjetas atividades.”

“Aparentemente, camarada Yolkin, não tem consciência de que o Partido está empenhado em combater agentes subversivos. Quer-me parecer que encara as coisas com certa leviandade

“Em primeiro lugar, os professores mencionados não são meus amigos particulares, mas apenas colegas de profissão, nem mais nem menos do que uma série de outros membros do corpo docente do Instituto. Em segundo lugar, nenhum dos dois fazia segredo do seu passado.”

“Aparentemente, camarada Yolkin, não tem consciência de que o Partido está empenhado em combater agentes subversivos. Quer-me parecer que encara as coisas com certa leviandade. Pergunto-lhe: e se os seus amigos forem trotskistas mascarados? Nada tem a ver com isso? Diga-me: como podemos confiar em si?”

“Continuo a não enxergar a natureza do meu erro”, declara Yolkin com voz firme.

“Tanto pior para si”, responde Galembo.

O interrogatório envereda por um rumo desfavorável a Pedro. Percebendo a alteração no ambiente, diversas pessoas levantaram-se para reforçar as acusações. Uma delas, subitamente tomada de remorso pela própria desonestidade, estaca no meio de uma frase, gagueja e acaba por declarar:

“Estou a dizer absurdos. O camarada Yolkin é um excelente companheiro e um grande homem.”

A sala inteira cala-se, como que paralisada pelo choque de um tão corajoso ato. São precisos outros cinco minutos de retórica por parte da Comissão para restaurar o primitivo ambiente desfavorável. Yolkin é rejeitado, no meio da surpresa geral.

Estaline com Nikita Khrushchov, o chefe do partido comunista na Ucrânia nos últimos anos da década de 1930

Vim a saber mais tarde que toda a família sofrera as consequências da expulsão. Uma irmã, estudante noutro Instituto, foi expulsa em virtude da desgraça do irmão. Assim, o sacrifício do velho pai resultou inútil e duas carreiras de belo futuro viram-se subitamente arruinadas. No entanto no fim de muitos meses e de apelos insistentes de figuras proeminentes do Partido, Yolkin foi reconduzido às fileiras. Automaticamente, também a irmã reconquistou o posto perdido.

A sessão continua. Quatro ou cinco camaradas passam com êxito pela prova. A seguir, é chamada uma estudante a quem todos admiramos pelo seu belo talento natural e sua aplicação nos estudos. É uma morena de olhos luminosos e voz melodiosa, uma dessas mulheres que sabem tornar-se atraentes sem serem realmente bonitas. As suas declarações revelam ser filha de um carpinteiro; trabalhava desde cedo, na fábrica, estudava à noite até ser admitida no curso de engenharia do Instituto.

“Camarada Granik”, interpela-a o presidente, “é casada?”

“Sim.”

“Há quanto tempo?”

“Cinco anos.”

“E quem é seu marido?”

“Meu marido era operário como eu, conheci-o na fábrica. Mais tarde foi contramestre numa fundição de ferro.”

“Seu marido pertence ao Partido?”

“Naquele tempo, sim.”

A plateia volta a farejar sangue. Alguns que se tinham afastado para fumar um cigarro, voltam apressadamente aos seus lugares. Faz-se um silêncio geral.

“Porque abandonou o Partido?”

“Meu marido foi expulso do Partido”, responde Granik com calma, “por ter participado no Movimento de Oposição dos Operários”.

“Divorciou-se dele nessa época?”

“Não.”

“E onde está ele agora?”

“Foi detido. Encontra-se numa prisão da GPU.”

A multidão está tensa, ansiosa. Por fim, defrontam um drama real, desses que vêm sendo explorados ultimamente nos romances soviéticos: a mulher, comunista fiel, cujo marido se revela um agente subversivo e que coloca a dedicação pela causa acima do próprio amor.

“É esta a primeira vez que seu marido é preso?”

“Não; a segunda.”

“E nem assim pensa em divorciar-se?”

“Não.”

“Costuma visitá-lo na prisão?”

“Sim, visito-o todas as semanas.”

“Porquê?”

“Porquê? Para levar-lhe alimento, roupas e cigarros.”

“Não conhece alguém que pudesse fazer isso?”

“Creio que sim; tem mãe e irmã.”

“Queira explicar-nos então por que motivo o procura. Não há justificação para que uma comunista preste auxílio a um inimigo do partido.”

“É meu marido.”

“Ah! É seu marido. E a segurança do Partido não é porventura mais importante do que meras considerações pessoais?”

“Politicamente, não concordo com ele. Em todos os nossos encontros discutimos a esse respeito a ponto de nos desentendermos seriamente.”

“Assim, as suas visitas visam unicamente a provocar agitação?”

“Com licença, camarada Presidente.” A jovem alteia o tom de voz. “Que é isto, afinal, uma sessão do Partido ou um espectáculo de circo? Peço-lhe que exiba as acusações políticas que tem contra a minha pessoa, sem ser preciso fazer da minha vida particular motivo de chacota para essa plateia."

A ironia de Galembo rompe a tensão do ambiente. Aqui e ali ouvem-se risos e exclamações de “Basta! Expulsem-na!”

“Com licença, camarada Presidente.” A jovem alteia o tom de voz. “Que é isto, afinal, uma sessão do Partido ou um espectáculo de circo? Peço-lhe que exiba as acusações políticas que tem contra a minha pessoa, sem ser preciso fazer da minha vida particular motivo de chacota para essa plateia.”

“Pois bem, nesse caso trate de expor com clareza os verdadeiros motivos que a levam a visitar regularmente um agente subversivo e um inimigo do Partido.”

“Já lhes disse. Além de ser meu marido, esse homem é um ser humano. Seria uma deslealdade e uma cobardia abandoná-lo no momento em que mais precisa de apoio. Não compartilho dos seus pontos de vista. Não obstante, trabalhámos e estudámos juntos, temos um passado em comum. É isto simplesmente: nós amamo-nos!”

Uma tempestade de risos acolhe esta declaração. Uma comunista confessa-se apaixonada por um prisioneiro da GPU!

“Em suma”, conclui Galembo, “na sua qualidade de membro do Partido, não admite o seu erro de confraternizar com um inimigo do povo. Penso que a solução está clara. A cidadã Granik não merece permanecer nas fileiras do Partido. Não mais lhe permitiremos divertir-se à custa dos interesses da Pátria.”

A plateia aplaude. Ouvem-se gritos de “fora com ela!” Contudo, uma onda de simpatia percorre a multidão quando a jovem, de cabeça alta, os lábios trémulos, desce os degraus da escada e atravessa a sala em direcção à porta. Um vizinho segreda- -me ao ouvido: “Não aprovo o procedimento de Granik. Contudo, trata-se de questões pessoais, que não podiam ser tratadas dessa forma.” Conservo-me em silêncio. Como posso saber com certeza se o meu vizinho está sinceramente penalizado, ou se não se trata de um truque para induzir-me a algum comentário imprudente?

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