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NUNO SILVA

NUNO SILVA

Eunice Muñoz: “O teatro deu-me satisfações enormes e preocupações muito grandes. Foi a minha vida”

A atriz portuguesa, que morreu aos 93 anos, despediu-se dos palcos com "A Margem do Tempo", em 2021. Antes da estreia, deu a última entrevista ao Observador e recordou 80 anos de carreira.

[Artigo originalmente publicado a 20 de abril de 2021, atualizado a após a morte de Eunice Muñoz, a 15 de abril de 2022]

Foram oito décadas de teatro, cinema e televisão. Aos 92 anos, Eunice Muñoz despediu-se da representação. “Fiz o que tinha a fazer”, afirmou antes da estreia de A Margem do Tempo (encenação de Sérgio Moura Afonso, música de Nuno Feist, texto do alemão Franz Xaver Kroetz). A dama da representação disse o adeus definitivo aos palcos e saiu sem tristeza porque estava a passar o testemunho à neta Lídia, de 30 anos, com quem contracenava.

A peça foi descrita como contemplativa, um questionar do papel da mulher na sociedade, com a mesma personagem em duas fases da vida — e não havia falas, só o corpo e a expressão física comunicam.

[vídeo de apresentação da peça “A Margem do Tempo”]

Símbolo do teatro de texto e de um modo intenso e rigoroso de representar, Eunice Muñoz revelou “excecionais qualidades” como atriz e “conquistou o reconhecimento caloroso e a incontestável admiração de gerações de espectadores”, dizia uma nota biográfica no arquivo do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII).

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Ao Observador, na véspera de subir a cena, a atriz (que morreu a 15 de abril de 2022, aos 93 anos) disse que já é tempo de sair de se retirar. “Há muita coisa que já me falha.”

Numa breve conversa telefónica — durante a qual pediu desculpa por ser “muito pouco faladora e estarem sempre à espera que diga mais alguma coisa” —,  relembrou os que a ajudaram, lamentou os anos da censura política e explicou porque é que teve de controlar a forte intuição que tinha como atriz.

A atriz nasceu há 92 anos na Amareleja e chegou a Lisboa em 1934

DR

Eunice do Carmo Muñoz nasceu a 30 de julho de 1928 em casa dos avós paternos na Amareleja, Baixo Alentejo, filha de gente das artes do espetáculo. Do lado da mãe, Júlia do Carmo Muñoz (conhecida como Mimi, filha do conde de Pinhel), eram todos artistas de teatro. Do lado do pai, Hernâni do Carmo Muñoz (filho de um músico espanhol e de uma italiana da família de artistas Cardinalli), todos pertenciam ao circo.

Aos cinco anos, vestida de cetim, era atração musical num teatro desmontável que os pais batizaram com o nome da filha, mas não apreciava grandemente a tarefa — era a Troupe Carmo, que andava de terra em terra.

Em 1934 mudou-se para Lisboa, com os pais e o irmão mais velho, Hernâni, e começou a frequentar o Colégio Peninsular, seguindo-se o Conservatório, em 1942, de onde sairia aos 17 com a classificação final de 18 valores. Mas a vida no teatro já tinha começado.

Aos 13, em Lisboa, soube por intermédio de um amigo da família que Amélia Rey Colaço (que então dirigia com o marido, Robles Monteiro, o Teatro Nacional D. Maria II) procurava uma miúda para a peça Vendaval, de Virgínia Vitorino. Foi assim que se estreou, num espetáculo onde brilhavam João Villaret, Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço e Raul de Carvalho. Foi o princípio da longa carreira reconhecida por gerações de portugueses. Aqueles três nomes, mais os de Estêvão Amarante, Maria Lalande e Maria Matos marcaram os primeiros anos da artista.

Arrancou no cinema em 1946 em Camões, de Leitão de Barros. Três anos mais tarde, já a elogiavam na revista O Século Ilustrado: “O caso dela é muito diferente, é qualquer coisa que impressiona a gente, que não se aprende e que as demais não têm.”

Ninotchka, adaptada por Marc-Gilbert Sauvajon e dirigida por Vasco Santana em 1950 no Teatro Maria Vitória, foi uma das peças em que mais se evidenciou. Apesar dos êxitos, esteve afastada entre 1951 a 1955, quando passou a trabalhar numa loja de cortiças e como secretária numa empresa de cabos elétricos. “Creio que até aos meus 20 e poucos anos fazia teatro porque toda a gente na família era de teatro, porque as coisas tinham acontecido por si. Estive quatro anos parada e só a partir dos 26 anos é que comecei a tomar a sério uma carreira teatral”, disse numa entrevista ao Expresso, em 1988.

Eunice Muñoz com Diogo Infante em 2016 na cerimónia de homenagem pelos 75 anos de carreira

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Na década de 60 fez sobretudo papéis dramáticos, como Alma Winemiller em Verão e Fumo, de Tennessee Williams (Teatro Villaret, 1966). Com Carlos Avilez no Teatro Experimental de Cascais apareceu primeiramente como Fedra (1967). Chegou a ter espetáculos proibidos ou interrompidos pela censura do Estado Novo, caso de O Barão, de Sttau Monteiro, em 1969.

De 1972 a 1976 esteve quase retirada, salvo trabalhos pontuais para a RTP e a gravação de discos de poesia de Florbela Espanca e Soror Mariana Alcoforado. No entretanto, em 1970 e 71, andou em digressão por África com a companhia Somos Dois, que tinha formado com José de Castro.

Consagrada e elevada a referência, deixou marca em personagens eternas, como Maria de Noronha, Leocádia, Ninotchka, Joana d’Arc, Sarah Bernhardt ou Mãe Coragem, criadas e recriadas por autores tão díspares como Santareno, Brecht, Genet, Lorca, Pirandello, Racine ou Shakespeare.

Zerlina, em 1988 no TNDMII, com direção de João Perry sobre um texto de Hermann Broch, foi outro momento alto da atriz. Na televisão, que a popularizou no resto do país, esteve em dezenas de séries e novelas, mas em nenhuma terá alcançado a popularidade da personagem Dona Benta em A Banqueira do Povo (1993), de Ruy Petterle, Walter Arruda e Walter Avancini para a RTP.

Além da nova peça, os 80 anos de vida profissional de Eunice Muñoz foram assinalados ao longo de meses com uma exposição no Museu Nacional do Teatro e a estreia de um documentário biográfico assinado por Tiago Durão.

Lídia Muñoz em contracena com a avó na peça "A Margem do Tempo", que se estreia esta terça-feira

NUNO SILVA

Esta peça é uma passagem de testemunho?
É uma passagem de testemunho.

Como é que se sente a poucas horas da estreia?
Sinto-me preocupada, claro, como sempre acontece quando faço um espetáculo. Mas desta vez o meu tipo de preocupação é diferente, porque quero acima de tudo apresentar a minha neta, para que as pessoas possam ver que ela tem talento. Efetivamente, já fez vários espetáculos, de qualquer modo, para ela é como uma primeira vez.

Fica feliz por a sua neta estar no teatro?
Sim, sim, foi o exemplo que ela teve sempre através de mim.

Ao fim de 80 anos nos palcos, porquê despedir-se agora?
Porque já chegou o tempo, já tenho 92 anos e há muita coisa que já me falha. Portanto tive de arranjar força não sei bem onde — acabo por saber, é o facto de estar com ela e poder demonstrar às pessoas o valor que ela tem.

"Nos anos em que podia ter feito tanto, não fiz porque não podia fazer. Isso foi-nos roubado, a todos nós, atores. Sofremos muito com isso [censura]."

A despedida é difícil?
Olhe que não. Não sinto esse… Não sinto saudade, já fiz o que tinha que fazer. É a minha última vez.

Se já fez o que tinha a fazer, será que fez tudo o que queria ter feito como atriz?
Não, não fiz tudo. Não fiz tudo porque fui uma das muitas vítimas da censura. Nos anos em que podia ter feito tanto, não fiz porque não podia fazer. Isso foi-nos roubado, a todos nós, atores. Sofremos muito com isso.

Até 1974?
Exatamente.

O que é que recebeu do teatro e o que é que deu ao teatro?
Ao teatro dei tudo o que tinha.

Muito sacrifício?
Muito, até porque tive seis filhos. Felizmente, os dois maridos com quem tive seis filhos tiveram a melhor colaboração, deram a melhor ajuda, só assim é que foi possível.

Quem mais a ajudou no seu percurso teatral? Amélia Rey Colaço será um dos nomes?
Amélia Rey Colaço, sim. Francisco Ribeiro, o Ribeiro… Carlos Avilez… Todos os que me dirigiram.

Quem é que ajudou? Que atores ou até encenadores pensa ter ajudado com sua presença, com o seu trabalho?
Não penso nisso, não faço disso uma razão. Para mim, o encenador é a figura principal.

Parece ter tido sempre grande critério para escolher os trabalhos em que entrava. Que critério foi esse?
Que a obra fosse boa, foi esse o critério, e depois o encenador. Tive os melhores encenadores durante toda a minha carreira.

A intuição foi uma característica que sempre a acompanhou?
Sempre e eu cuidei dela escrupulosamente. A intuição facilitava muito a minha vida profissional. Havia uma coisa que me preocupava, porque se dizia que eu, logo nos primeiros ensaios, começava logo a descobrir o personagem, por via dessa intuição. Achei sempre que devia contrariar isso, porque era uma facilidade que me podia trazer uma repetição no meu trabalho e isso eu não queria.

"O que verdadeiramente me interessa aqui é o que a minha neta faz, demonstrar-lhe a minha profunda admiração e desejar-lhe o melhor possível para a sua carreira."

É fácil responder à pergunta “para que serve o teatro”?
[longo silêncio] O teatro…

Para que lhe serviu o teatro?
Deu-me tudo, deu-me tudo. Deu-me satisfações enormes, deu-me preocupações muito grandes, foi basicamente a minha vida.

Como é que se preparou para a nova peça?
Peguei neste papel como pego em todos: com todo o interesse, interesse em duplicado porque estou com a minha neta. Quero passar o testemunho… Portanto, estive com uma atenção muito especial, uma atenção que inclui o amor que tenho por ela.

Como caracteriza a sua personagem?
É uma criatura muito diferente do que eu sou, não tem nada que ver comigo. Isso é que é interessante. O que verdadeiramente me interessa aqui é o que a minha neta faz, demonstrar-lhe a minha profunda admiração e desejar-lhe o melhor possível para a sua carreira.

Temos de si a imagem de uma pessoa doce e ao mesmo tempo sempre com uma presença muito forte. Chegou a dizer numa entrevista que quando era mais nova tinha algum mau-génio.
Pois tinha.

Como vive hoje? Está um pouco afastada da confusão do mundo? Como é o seu dia-a-dia?
Viver em casa. Agora, com a pandemia, maior é o cuidado. Estou a gozar a minha casa, gosto muito de estar em casa, vivo em Paço de Arcos.

Sente-se admirada pelo público?
Sim, sempre fui muito acarinhada.

Como é que isso se explica?
Apreciam-me, gostam de me ver representar.

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