O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recebeu, esta quinta-feira, o diploma que despenaliza a morte medicamente assistida e, prontamente, o enviou para o Tribunal Constitucional para “fiscalização preventiva da constitucionalidade” por “violação dos princípios da legalidade e tipicidade criminal”.
Marcelo Rebelo de Sousa escreve que os motivos para o requerimento ao Tribunal Constitucional não foi saber se a eutanásia está ou não em conformidade com a Constituição, mas sim se o diploma que a apresenta é constitucional.
O Presidente Marcelo demarcou-se assim do cidadão Marcelo, católico praticante que é contra a morte medicamente assistida: em vez de se focar no facto de o direito à vida ser inviolável, apoiou-se em questões jurídicas, como conceitos mal definidos, um legislador que delega competências e um quadro legal pouco seguro.
Como se define “sofrimento intolerável”?
“Considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a antecipação da morte da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em i) situação de sofrimento intolerável“, cita o requerimento do Presidente, que depois considera que “este conceito não se encontra minimamente definido”.
Marcelo Rebelo de Sousa considera que o conceito, por ter “uma forte dimensão de subjetividade” não pode ser perfeitamente definido pelas “leges artis médicas”, o conjunto de regras científicas e técnicas e princípios profissionais que o médico tem a obrigação de conhecer e utilizar tendo em conta o estado da ciência e o estado concreto do doente.
Primeiro problema: como o médico orientador e o médico especialista têm de justificar o porquê da decisão e, consequentemente, o uso do conceito, o Presidente considera que é “pouco claro como deve ser mensurado esse sofrimento: se da perspetiva exclusiva do doente, se da avaliação que dela faz o médico”.
Segundo problema: “Este grau de indeterminação não parece conformar-se com as exigências de densidade normativa resultantes da Constituição”. Ou seja, para o Presidente, o conceito e a forma de o avaliar têm de ser perfeitamente claros e bem definidos.
Uma “lesão definitiva de gravidade extrema” pode justificar a antecipação da morte?
“Considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a antecipação da morte da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em i) situação de sofrimento intolerável, ii) com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal.” O segundo ponto tem uma adenda ao que tinha sido inicialmente proposto — “com lesão definitiva ou doença incurável e fatal” —, mas ainda assim o Presidente considerou insuficiente.
Eutanásia. O que prevê a lei e o que mudou no debate no parlamento
Marcelo Rebelo de Sousa considera este subcritério uma “solução pouco consentânea com os objetivos assumidos pelo legislador”, porque permite interpretar que “a mera lesão definitiva de gravidade extrema poderia conduzir à possibilidade de morte medicamente assistida”, ainda que o objetivo do legislador fosse conjugar a “lesão definitiva de gravidade extrema” com “o sofrimento intolerável”.
O Presidente questiona também como é que uma lesão definitiva, sem esclarecimento se é fatal ou não, pode justificar a antecipação da morte, uma vez que dessa lesão pode não resultar a morte da pessoa.
As 9 razões do Conselho de Ética para chumbar os projetos da eutanásia
Quem deve definir: o legislador ou o médico?
A falta de definições concretas para “sofrimento intolerável”, “lesão definitiva de gravidade extrema” ou “consenso científico”, faz com que o Presidente considere que o legislador não fornece “ao médico interveniente no procedimento um quadro legislativo minimamente seguro que possa guiar a sua atuação”.
“Esta insegurança afeta todos os envolvidos: peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se veem privados de um regime claro e seguro, num tema tão complexo e controverso”, escreve o Presidente no requerimento.
Marcelo Rebelo de Sousa critica também que o legislador delegue nos médicos a definição dos conceitos que deviam estar claramente definidos no diploma e que interferem com direitos fundamentais do cidadão. “Na verdade, ao utilizar conceitos altamente indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias, remetendo a sua definição, quase total, para os pareceres dos médicos orientador e especialista, o legislador parece violar a proibição de delegação, constante no artigo 112.º da Constituição.”
O ponto 5 do artigo 112.º da Constituição diz que “nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Ou seja, o legislador não pode deixar para os médicos as decisões com base em conceitos vagos.
A definição dos conceitos pode vir na regulamentação da lei?
O Presidente da República é muito claro em relação a esta questão: “Não se diga, por outro lado, que a insuficiente densificação normativa pode ser corrigida em sede de regulamentação da lei”.
Marcelo lembra que da promulgação deste diploma até que seja aprovada a respetiva regulamentação podem passar 90 dias e tudo o que pode ser avaliado neste momento é o documento votado na Assembleia da República. E que não se pode avaliar a constitucionalidade de uma lei com base num conteúdo que não se conhece.
“Sendo o presente Decreto o único instrumento legislativo que pode ser analisado neste momento, e padecendo ele das insuficiências assinaladas, a sua inconstitucionalidade não pode ser sanada com a expectativa de um regime futuro, cujo conteúdo se desconhece, ainda que dele o legislador faça depender a entrada em vigor do regime presente”, escreve o Presidente.
O Tribunal Constitucional tem agora 25 dias para se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República. Esta é a segunda vez que Marcelo Rebelo de Sousa recorre ao Tribunal Constitucional desde que assumiu a chefia do Estado, a 9 de março de 2016 — a primeira esteve relacionada com a alteração da legislação sobre a Procriação Medicamente Assistida, em particular na parte da gestação de substituição.
A lei da morte medicamente assistida foi aprovada no dia 21 de janeiro de 2021, na especialidade, na comissão de Assuntos Constitucionais, com os votos favoráveis do PS, BE e PAN, o voto contra do CDS-PP e PCP e abstenção do PSD. E, depois, aprovada em votação global final, no dia 29 do mesmo mês, com 136 votos a favor (a maioria dos deputados do PS, alguns do PSD, BE, PAN, PEV, IL e as deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues). Houve 78 contra e quatro abstenções.