De “Marquês de Pimbal” a uma espécie de Ícaro português. O tom da entrevista de António Costa à Visão dividiu os socialistas, entre os que leram as palavras de um primeiro-ministro confiante e com “capacidade de liderança” e os que temem os sinais de uma “maioria absoluta em declínio”, mas este está longe de ser o único ponto divisivo na maioria absoluta do PS: apesar de ter conquistado um resultado histórico em janeiro, o Governo enfrentou nove meses de “casos, casinhos” e “inferno” (nas palavras do próprio primeiro-ministro) e tem precisado de gerir desconfortos externos, mas também internos.
Se é verdade que não é costume ver membros do partido do Governo a desafiarem ou criticarem o próprio Executivo, a sucessão de casos nestes primeiros meses de maioria abriu esse espaço e casos como o de Miguel Alves puseram os socialistas à beira de um ataque de nervos. Além dos nomes mais habitualmente vistos como desalinhados, revelaram-se outros — com novidades muito particulares ao nível dos ex-ministros dos próprios Governos de Costa, que têm sido dos mais corrosivos na avaliação pública do desempenho do Executivo.
Outra curiosidade passa pelo papel dos seguristas: os desalinhados políticos da era da geringonça foram integrados na era absoluta do PS e encontram-se em lugares de destaque, mostrando-se agora mais em sintonia com António Costa. Ainda assim, ouviram-se críticas ocasionais desta ala — e um regresso inesperado do próprio António José Seguro.
Mesmo assim, a contabilidade das críticas de um partido que quer dar provas de vida em tempos de maioria não se traduz em oposição a António Costa — os possíveis sucessores continuam, por agora, à espera do seu momento (pós-liderança de Costa) e a única voz que continua a caracterizar-se abertamente como adversária no partido é mesmo a de Daniel Adrião, o eterno crítico que vai conquistando percentagens residuais de representação nos órgãos do PS.
Ex-ministros. O déjà vu absolutista e o primeiro-ministro que punha em causa os deuses
A maior novidade trazida pela maioria absoluta será mesmo a abertura dos antigos ministros de António Costa para criticarem o desempenho do primeiro-ministro e do seu Executivo. Entre estes, destacam-se alguns que até saíram a mal da equipa de Costa, mas que agora têm lugares de destaque no comentário político.
É o caso da ex-ministra da Modernização do Estado e Administração Pública, Alexandra Leitão. A ascensão rápida — foi secretária de Estado Adjunta e da Educação no primeiro Governo de Costa, onde era descrita por colegas de partido praticamente como uma ministra de facto; foi promovida aos órgãos nacionais do PS; escolhida como cabeça de lista por Santarém; e promovida de novo, desta vez a ministra — acabou de forma abrupta, com a antiga ministra a dizer publicamente que não percebeu por que razão saiu do Executivo após as últimas eleições, enquanto dentro do Governo se comentava que o estilo “contestatário” poderia ter funcionado contra Leitão, que notaria os efeitos negativos de ser “assertiva” enquanto mulher na política.
Leitão acabaria por rejeitar o convite para liderar a bancada do PS nesta legislatura, frisando que se via com mais perfil para funções executivas, mas agarrar um outro lugar de destaque: o de comentadora da ala do PS no programa da CNN Princípio da Incerteza, onde antes se sentava a atual ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes (e onde se chegou a sentar o próprio António Costa, antes de ser líder do PS). E é nesse palco, mas também nos artigos de opinião que escreve no Expresso e noutras intervenções públicas, que Leitão expressa frontalmente as suas ideias — muitas delas contrárias às do Executivo e às de Costa.
A tendência foi particularmente notada quando comentou, na CNN, o caso “um bocadinho incompreensível” do então secretário de Estado Adjunto Miguel Alves, cuja permanência do Executivo se tornava, diria então, uma “vulnerabilidade desnecessária”, uma vez que era arguido em dois casos judiciais. Lembraria ainda a aparente incoerência de critérios no Executivo, de onde chegaram a sair nomes como Fernando Rocha Andrade ou João Vasconcelos por serem arguidos no Galpgate.
E no PS, sobretudo à boca pequena — embora se juntassem a estas críticas nomes como Isabel Moreira, Sérgio Sousa Pinto e Ana Gomes — comentava-se que Leitão tinha “toda a razão” e que o caso estava a tornar-se insustentável. Alves acabaria por sair, tal como sairiam, semanas depois, os dois secretários de Estado da Economia, Rita Marques e João Neves, que tinham criticado o ministro em público — uma atitude também arrasada por Leitão — enquanto fontes no PS aplaudiam o primeiro-ministro pelo “serviço de limpeza”, como descrevia um dirigente ao Observador.
Mas a ex-ministra também já fez críticas mais abrangentes à atuação do Executivo. Além dos avisos que foi deixando sobre vários casos — o fim dos debates quinzenais foi um erro, avisava nesta entrevista ao Observador — já fez alertas sobre a falta de diálogo na maioria absoluta: no Expresso, escreveu que os acordos com parceiros sociais e função pública em que o Governo se tem concentrado, sem “procurar” parceiros na Assembleia da República, têm como efeito “um certo esvaziamento do Parlamento”, que também o Governo deve procurar evitar.
E na sequência da entrevista à Visão não teve dúvidas em afirmar que viu nas palavras de Costa “um dejá vu relativamente a outras maiorias absolutas”, lamentando que não tenha havido “outra abertura e outro diálogo, com a sociedade, com a concertação social, os parceiros e também com o Parlamento”.
A mesma entrevista revelou outro crítico, porventura até mais improvável. Pedro Siza Vieira, que quando recebeu o convite para o cargo de ministro da Economia juntava, no seu currículo, à experiência profissional uma longa amizade com António Costa, acabou por ser o protagonista do maior arraso público ao primeiro-ministro depois da entrevista, criticando a pose “hiper confiante” de Costa por transmitir uma “sensação de desconforto” a quem leu as suas palavras.
Mas Siza, no papel que assumiu já enquanto ex-ministro de comentador no programa Bloco Central, na TSF, foi mais longe, considerando que Costa passa agora a imagem de alguém que não vê na oposição nenhuma ameaça que possa “pôr em causa a sua situação de poder”.
E rematou antecipando para o Governo de Costa um destino próprio das tragédias gregas. “Há muitos indícios que fazem lembrar [o tempo de Cavaco Silva]. Nas tragédias gregas, os que caíam na húbris – a tentação, o sentimento de quem se sentia infalível e punha em causa os deuses –, acabavam por não ter um final muito feliz”. Palavra de ex-ministro.
Depois da geringonça, seguristas em destaque (e Seguro de regresso?)
Se num partido de Governo é sempre raro encontrar críticas muito vivas, na era da geringonça havia, ainda, um reduto de críticos revoltados com a solução política que Costa tinha construído ao lado de Bloco de Esquerda e PCP e associados ao anterior líder, António José Seguro (destronado por Costa).
Nos últimos congressos do PS as críticas internas eram tão raras que em 2018 Francisco Assis chegava ao púlpito do congresso declarando-se assumidamente “isolado” e lamentando a “solidão política” em que a posição crítica relativamente à geringonça o colocava, mas avisando que aquela solução “condicionava” a liberdade do PS, que “divergia em tudo o que é essencial” dos parceiros de esquerda.
Um salto no tempo para 2022 — um tempo em que as memórias da geringonça são já uma recordação distante para os socialistas — e os seguristas estão distribuídos por cargos relevantes, alguns até propostos pelo próprio PS, com Francisco Assis a liderar o Conselho Económico e Social, Álvaro Beleza a SEDES e Eurico Brilhante Dias no papel de líder parlamentar do PS. Esse ramo crítico interno fica, assim, quase neutralizado, embora continue a ter pensamento próprio: na semana passada, Assis atacava a ideia do PS de instaurar um novo modelo de debates com o primeiro-ministro sem réplica para os grupos parlamentares, dizendo que não seria uma “boa solução” (uma crítica que foi vista com bons olhos no seio do PSD, sabe o Observador).
Na Academia da JS, em setembro, Álvaro Beleza deixava precisamente um alerta ao partido em tempos de maioria absoluta: o papel de um partido nesta situação não é anular-se, mas precisamente mostrar-se “exigente com o Governo”, referiu. E acrescentou, dirigindo-se aos jovens do PS: “O PS é a casa das várias esquerdas democráticas e liberais. É importante sermos tolerantes com os que cá dentro pensam diferente”.
Curiosamente, foi o próprio António José Seguro que fez uma rara aparição pública este mês, num debate promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, precisamente para criticar a condução da maioria socialista: “Nos últimos meses não foi uma, nem duas nem três situações em que o princípio de separação de poderes foi beliscado, para não dizer posto em causa”. A frase e a postura nesse debate — sendo que recusou comentar casos concretos — foram imediatamente interpretados por parte da ala de apoiantes que ainda restam como um sinal de que poderá estar interessado em voltar a política para percorrer o caminho até Belém, nas presidenciais de 2026.
Os desalinhados e o Marquês de Pimbal
De resto, o PS conta, como os restantes partidos, com alguns nomes que são conhecidos por terem habitualmente opiniões desalinhadas e não seguirem necessariamente o guião do partido. Em meses caóticos, em que o pico de críticas internas se verificou sobretudo no caso de Miguel Alves e agora no rescaldo da entrevista de Costa, isso foi ainda mais visível, mas estes nomes já são bem conhecidos do partido e do público.
É o caso da antiga eurodeputada Ana Gomes, que é responsável por algumas das críticas mais acérrimas ao próprio partido — que não a quis apoiar na última corrida presidencial, no ano passado. Analisando os meses de maioria absoluta, Gomes, dona de um espaço de comentário na SIC e de uma conta de Twitter bastante ativa, assim como de muito espaço mediático, fez críticas expressivas sobre a entrevista de Costa — dizendo que “a postura de Costa não é de Marquês de Pombal mas de Marquês de Pimbal porque não há reformas” e mostrando-se “preocupada com a arrogância, sobranceria e cansaço” do primeiro-ministro — ou sobre Miguel Alves, defendendo que não podia continuar no Governo.
O deputado socialista Sérgio Sousa Pinto é outro desses nomes e foi, de resto, o único socialista a pedir diretamente a demissão de Marta Temido do cargo de ministra da Saúde por causa do caos nas urgências (como viria a acontecer depois). Na CNN, Sousa Pinto defendeu que o país já não tinha “confiança na titular da Saúde”: Já não se acredita que ela possa vir a ser, depois de tudo aquilo que vivemos, protagonista de qualquer esforço reformista. Para manter as coisas como até aqui, a ministra pode permanecer…”.
António Costa chegou a responder que não se guiaria pelas opiniões de Sousa Pinto — mas Temido resolveria o assunto meses depois, demitindo-se e deixando um buraco no Executivo, depois ocupado por Manuel Pizarro.
Curiosamente, na entrevista à Visão, o único caso que Costa considerou realmente “grave” no seu Executivo foi o desentendimento com Pedro Nuno Santos por causa do aeroporto de Lisboa, mas não faltou no PS quem lesse a crítica apenas como uma forma de manter a fragilização do potencial sucessor.
De resto, apesar de em privado até os pedronunistas terem ficado chocados com o caso, em público o PS conteve-se e defendeu Pedro Nuno tanto quanto possível — agora, no rescaldo da entrevista de Costa, Leitão acabou mesmo por descrever a referência a Pedro Nuno como “um ajuste de contas interno”, enquanto Ana Gomes disse que a declaração serviria apenas “para escamotear a responsabilidade nesse caso ou no da escolha de Miguel Alves para adjunto”.
Feitas as contas, há alguns socialistas que têm criticado abertamente o Executivo de António Costa — o que não significa que o primeiro-ministro enfrente adversários propriamente ditos. A única pessoa dentro do PS que se tem apresentado a eleições internas na era Costa é o crítico Daniel Adrião, que lidera uma corrente muito minoritária e argumenta que as suas candidaturas são necessárias para que os congressos do PS não se transformem em “missas”.
Na última comissão política nacional, Adrião queixou-se de o caso de Miguel Alves — o “elefante na sala” — não ter sido discutido dentro de portas. Mas, em surdina, o PS vai discutindo as polémicas que o inquietam, com quatro anos de maioria absoluta pela frente.