Saiu do Governo a contragosto e não o escondeu. Alexandra Leitão diz que agora esse “comboio já passou” e que está de “corpo e alma no Parlamento”, apesar de continuar sem saber porque saiu. Pela assertividade? “A resposta genuína é: não sei. A resposta em abstrato mantenho-a: sim, a assertividade em política, para as mulheres em especial, pode ser um problema.” No programa Vichyssoise, na Rádio Observador, a ex-ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública mantém essa mesma postura e deixa recomendações para o futuro próximo deste Governo.

Alexandra Leitão reconhece que o atual contexto económico pode suscitar tensão social e avisa o ministro das Finanças, Fernando Medina, que no próximo Orçamento, se o contexto se mantiver, terá de encontrar “medidas que vão ao encontro das necessidades que as pessoas começam a sentir e que isso possa ter um efeito apaziguador no tecido social.” Também fala do “erro” que foi acabar com os debates quinzenais com o primeiro-ministro e na necessidade de escrutinar os juízes do Tribunal Constitucional que são cooptados.

Acredita que desta vez existem condições para que o Presidente aceite o diploma da eutanásia, quando ele chegar a Belém?
Não estava no Parlamento nos outros momentos, acredito que desta feita, e resolvidos os problemas técnicos que o Presidente indicou, seja possível aprová-lo e esperar que possa fazer o seu caminho de promulgação e entrada em vigor da lei. Tenho essa expectativa que desta vez possa entrar em vigor.

Do diploma, desapareceu a expressão “fatal”. O PS tem dito que essa condição nunca foi o espírito da lei e que essa exclusão muda pouco. No entanto, o Presidente disse, no texto do último veto, que esta era “uma mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação” na sociedade portuguesa. Concorda que esta é uma mudança “radical”?
Esta é uma matéria de consciência e cada um votará de acordo com a sua consciência aquilo que entende que será uma boa solução. O que penso — e sabendo que é uma matéria extremamente complexa e de um nível de delicadeza enorme — é que nós, enquanto seres dotados de liberdade, devemos ter a liberdade de dispor da nossa vida. Acredito nisto independentemente de qualquer doença, é talvez a última e a primeira liberdade individual que temos. E o que está aqui em causa é o que acontece às pessoas que, pelas suas circunstâncias concretas, e pode ser por terem uma doença fatal ou uma doença incurável que as impossibilita de tirarem a sua vida se for essa a sua vontade, se criminalizamos quem as ajuda.

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Mas as condições vêm definidas e esse foi sempre o problema com Belém. O que mudou para o PS ter deixado de incluir no seu projeto a expressão que faz a eutanásia depender de uma condição de fatalidade?
Da minha perspetiva, o que está em causa são doenças incuráveis que criem situações de sofrimento que a própria pessoa considera para lá do suportável, independentemente de essas doenças conduzirem, elas próprias, necessariamente à morte. Há situações de pessoas que, até pelas circunstâncias concretas de limitação física não podem tomar na mão essa liberdade última que é a de dispormos da nossa própria vida.

E tendo em conta essas posição, se voltar a ser travado em Belém, o Parlamento devia reconfirmar o diploma, sem alterações, e forçar o Presidente a promulgá-lo? 
Naturalmente que há uma coisa que muda, em relação à legislatura anterior, que é a circunstância de haver uma maioria absoluta. Isso é uma faculdade que a Constituição confere, a de confirmação de um veto, se ele for político, mas não quero antecipar. É uma possibilidade que a Constituição dá quando existe uma maioria absoluta, mas é prematuro fazer esse cenário.

Antevê um Presidente mais interventivo perante um PS com maioria absoluta? A coabitação fica mais difícil?
Não sei prever. Vi sempre no Presidente da República um Presidente alerta, que nunca deixou de exercer a famosa magistratura de influência, mas também os poderes constitucionais. E acho que num contexto de maioria absoluta não deixará de o fazer com redobrada atenção e isso parece-me francamente normal. Apesar de fazer parte da maioria, acho que uma oposição forte é absolutamente essencial à democracia.

Mas que também venha do Presidente da República?
Espero que essa oposição venha de onde tem de vir, dos partidos da oposição no Parlamento e muito em especial do maior partido da oposição que, agora com uma nova liderança, poderá vir a ter uma força redobrada nesta matéria.

Luís Montenegro fará uma oposição mais forte do que a que foi feita até aqui?
Naturalmente o que se espera, com uma liderança renovada e confirmada no Congresso do PSD, é que o maior partido da oposição possa fazer uma oposição forte. Uma coisa é a oposição no Parlamento, outra é a posição do Presidente da República que tem os seus poderes constitucionais que tenho a certeza que não deixará de utilizar e, a meu ver, bem.

Depois da conquista da maioria absoluta, o contexto mudou radicalmente, com a guerra na Ucrânia e as consequências para a economia. A inflação disparou, os salários não aumentam ao mesmo ritmo e as aumento das taxas de juro pressiona quem tem créditos. Teme que esteja preparar-se uma panela de pressão social e que nas ruas também possa crescer essa oposição?
A posição, de facto, não é fácil. Não sabemos quanto tempo mais vai durar a guerra na Ucrânia. O desastre humanitário tem consequências económicas muito grandes e essas trazem consequências sociais, portanto é normal que passemos por uma situação que não é fácil e o Governo tem uma tarefa muito difícil, apesar de facilitada por uma maioria absoluta, e é normal que com as dificuldades sociais surja algum descontentamento. Espero que seja possível, designadamente no Orçamento de 2023, encontrar um conjunto de medidas que vão ao encontro das necessidades que as pessoas começam a sentir e que isso possa ter um efeito apaziguador no tecido social. Obviamente os direitos de manifestação ou greve são direitos que respeito muito e que lutámos muito para ter, mas todos preferimos viver em paz social.

Neste contexto, ter o primeiro-ministro a pedir às empresas um esforço para que os salários aumentem 20% faz sentido, sobretudo quando na função pública os aumentos são de 0,9%? Não cabe ao Governo tomar medidas para tentar acautelar isso mesmo?
O aumento de 0,9% foi definido em outubro de 2021 tendo em conta a inflação expectável até ao fim do ano, que foi essa. Entretanto, a 24 de fevereiro, com a guerra, o contexto mudou totalmente e simultaneamente é verdade que temos um Orçamento aprovado que é transitório, para seis meses. Neste quadro, considerei razoável que não seja ainda neste Orçamento de 2022 — repito, um OE para seis meses, num contexto de grande incerteza — e não me pareceu que alguma precaução seja errada, é uma boa solução. Coisa diferente é, mantendo-se esta situação em outubro, novembro, dezembro, o que vai ter de ser feito em 2023. O repto que o primeiro-ministro lançou às empresas foi também numa lógica estrutural e de pensar o futuro.

Mas no OE2023 o Governo terá de se esforçar para atualizar os salários da função pública e acompanhar mais a inflação?
Não estou a dizer que é acompanhar a inflação ao número exato, mas se se mantiverem as condições e não houver perspetiva de melhorarem — tenho sempre esperança de que a diplomacia dê resultados — de uma maneira ou de outra, o senhor ministro das Finanças melhor saberá, é preciso ir ao encontro da perda de poder de compra que as pessoas sentem neste momento. Uma coisa é um OE para seis meses, que foi correto ser cauteloso; outra será um OE para vigorar um ano inteiro.

Passando às alterações ao regimento do Parlamento que os deputados estão a discutir. Acabar com os debates quinzenais e uma presença mais constante do primeiro-ministro no Parlamento foi um erro?
Na minha opinião pessoal, foi. Não estou a dizer que deva ser quinzenal ou mensal, isso é um debate que terá de se fazer, mas foi um erro. Ganhamos com mais diálogo político na sede própria, que é a Assembleia da República, e francamente acho que é importante até como forma de a cada X tempo se poder ter uma visão global do que o Governo está a fazer. O próprio Governo ganha com isso.

O PS chegou a mostrar abertura para recuar, mas o líder parlamentar veio agora dizer que afinal o número de debates por ano com o primeiro-ministro não é desajustado. Afinal o que quer o PS?
Eu tive o cuidado de não estabelecer calendários nem termos.

Mas o que queria perceber era se, considerando que foi um erro acabar com os quinzenais, o número de debates que existe hoje numa sessão legislativa é suficiente ou não.
Uma periodicidade que permita ter um escrutínio, até público, é vantajosa para todos. Não me pronuncio neste momento sobre o modelo.

Mas ter o primeiro-ministro mais vezes no Parlamento é incontornável para si?
Ter mais vezes o Governo no Parlamento, debates de maior abrangência política e não temáticos. O que se verifica depois, por exemplo quando fazemos a audição orçamental aos membros do Governo, uma audição que devia ser sobre OE mas acaba por ser sobre política geral, e isso deve ser repensado.

Podia ser uma das pessoas chamadas a essas audições, se ainda fosse ministra. Não aceitou ser líder da bancada parlamentar do PS por não sentir que tivesse o perfil adequado. Com que pasta é que se via a ficar no Governo?
[Risos] Esse comboio já passou e agora estou de corpo e alma no Parlamento, em duas comissões que me estão a dar muito prazer. A primeira tem matérias de direitos fundamentais, justiça e administração interna, que são a minha área de estudo; e a comissão da transparência, que tem um trabalho mais virado para dentro do Parlamento, e acaba por ter muita importância porque muita da imagem da Assembleia da República passa por ali. Estou a trabalhar bem e satisfeita.

Retivemos que falou no gosto pelos temas da Justiça, registamos isso…
[Risos] Repare, sou professora de Direito, portanto não quer dizer mais nada do que isso…

Mas tendo um poder de execução de políticas talvez pudesse dar um contributo maior.
Dá-se o contributo que se consegue, nas funções que a cada momento se tem. Desde que façamos o nosso melhor nessas funções a cada momento, acho que estamos a cumprir o nosso dever.

Como disse, o comboio já passou, mas há uma curiosidade que temos e isto depois também ajuda a escrever a história da política. Disse numa entrevista ao Público que a assertividade de uma mulher em política é-lhe prejudicial. Foi prejudicada por isso e é por isso que sai do Executivo?
A resposta genuína é: não sei. A resposta em abstrato mantenho-a: sim, a assertividade em política, para as mulheres em especial, pode ser um problema.

Defendeu que o método de eleição dos juízes do Tribunal Constitucional devia mudar para acabar com a cooptação. Mas, para isso, é preciso que os partidos se entendam para uma revisão constitucional. O PS deve ter essa iniciativa?
Também tenho dito que, de um modo geral, acho que a Constituição portuguesa serve muito bem o nosso regime. Não sou daquelas pessoas que acham que uma revisão constitucional é absolutamente essencial. Esta questão dos juízes deveria, a meu ver, ser ponderada. Quanto à iniciativa… Neste momento não me vou pronunciar sobre isso; o que disse foi que, se esse comboio arrancar, essa questão deve ser revisitada.

A ala direita do TC está a preparar-se para apresentar um nome com um perfil semelhante ao de António Almeida Costa. Preocupa-a essa perspetiva?
Está a dizer-me isso, mas não faço ideia…

Já foi escrito.
Certo. O que li foi que estaria em cima da mesa não fazer essa designação tão cedo…

Sim, um bloqueio até 2023.
Exato, foi o que li. Quando vier o perfil — e se souber, porque um dos problemas que a cooptação coloca é às vezes só sabermos quando já ocorreu…

É defensora de um modelo mais parecido com o norte-americano?
Acho importante que haja escrutínio mais individualizado aos juízes do Tribunal Constitucional, não porque haja delitos de opinião — em democracia não há delitos de opinião — mas porque o entendimento que um futuro juiz do Tribunal Constitucional faz sobre a Constituição é o cerne daquilo que quem vota ou não na sua designação tem de saber que ele/ela pensa. Sei que o modelo é diferente, mas se agora tivermos juízes no Supremo Tribunal americano que disseram que iam respeitar o precedente — e há vários vídeos onde se pode ver quatro dos juízes mais conservadores a fazê-lo –, a ser verdade o que veio a lume que se preparam para revogar esse precedente… Aí temos uma situação de escrutínio direto que não é possível num caso de cooptação, nem de eleição por lista.

Agora o momento “Carne ou Peixe”, em que tem de escolher uma de duas hipóteses… Quem levava como companhia para um concerto de Bruce Springsteen: Pedro Nuno Santos ou Fernando Medina?
Pedro Nuno Santos

Preferia ser líder parlamentar do PS ou ministra da Educação?
[Silêncio] Erhhhh…. neste momento, deputada do PS.

Com que sindicalista preferia beber um drink de fim de tarde (e, quem sabe, negociar algumas carreiras): Sebastião Santana ou Mário Nogueira?
Trabalhei com ambos… bem. Talvez Sebastião Santana, deixei mais assuntos por resolver com Sebastião Santana do que com Mário Nogueira.

O que preferia comentar na CNN: a eleição do presidente da República Paulo Portas ou a nomeação de António Costa como presidente do Conselho Europeu a meio desta legislatura?
[Risos] Se pudesse não comentar nenhuma das duas coisas, preferiria…