Portas a bater, elevadores e obras, crianças e cães que dão sinais de vida no dia a dia de um prédio. Este não é o ambiente mais comum quando se fala em gravar um disco, mas foi precisamente o que aconteceu quando Zé Ibarra se propôs a concretizar o seu primeiro projeto a solo, Marquês, 256, nas escadas do prédio onde vive, no Rio de Janeiro. O resultado chega aos nossos ouvidos esta quinta-feira, 25 de maio. E o primeiro país a receber as apresentações ao vivo é Portugal. Zé Ibarra vai tocar no Cineteatro Avenida, em Castelo Branco (10 de junho); no Bleza, em Lisboa (15 de junho); no Festival Rádio Faneca, em Ílhavo (17 de junho); e no Novo Salão Ático do Coliseu Porto Ageas (18 de junho).
Com apenas 26 anos, Ibarra tem vindo a construir um percurso de excelência na nova música brasileira. Deu-se a conhecer em 2014 nos Dônica, banda que partilha com Lucas Nunes e Tom Veloso, filho de Caetano. Gal Costa convocou-o para um dueto no projeto “Gal 75”, colaborou com Ney Matogrosso e integrou a banda de Milton Nascimento na digressão Clube da Esquina. Durante a pandemia, Zé Ibarra — filho de uma produtora de eventos chilena e de um fotógrafo brasileiro — formou com amigos de escola os Bala Desejo. Herdeiros de uma elite cultural e social da cidade carioca, revelaram-se uma autêntica sensação do novo tropicalismo. Propuseram-se a refrescar a música popular brasileira com o álbum SIM SIM SIM e acabaram a conquistar um Grammy latino.
Zé Ibarra cresceu entre o Rio de Janeiro e a região de Minas Gerais, mas foi na “cidade maravilhosa” que se refugiou durante os confinamentos da Covid-19. Mais precisamente, na Rua Marquês de São Vicente, porta 256. Nesses tempos de isolamento social, os mesmos que originaram a criação de Bala Desejo, a conexão com os outros fazia-se muitas vezes através da música — e das redes sociais.
[“Vai Atrás da Vida que Ela te Espera”, um dos temas incluídos neste lançamento de Zé Ibarra:]
Pelo Instagram, o cantor, compositor e multi-instrumentista ia partilhando momentos musicais em direto — transmitidos a partir das escadas daquele prédio. Que não é um prédio qualquer. Ali vivia a avó de Zé Ibarra, ali ele começou a tornar-se compositor, era ainda uma pequena criança. Parecia que a música estava pré-destinada, embora tenha chegado a ponderar enveredar por engenharia. Acabaria por ser a mãe a convencê-lo de que a música era mesmo o caminho. E ali, naquele edifício, quis depois gravar um álbum.
“Nunca vi um disco gravado na escada de um prédio. Mas, por acaso, a escada desse meu prédio tinha um som maravilhoso. Então resolvi gravar lá e todo o projeto gira em torno dessa ideia”, explica Zé Ibarra ao Observador. “De um lugar onde comecei a tocar, onde me comecei a apaixonar por música. Tornei-me um cantor, de facto, por causa desse lugar. Se não existisse aquela escada, talvez não tivesse gostado tanto de cantar. Cantar é o resultado do que sai de mim e de como aquilo ecoa no ambiente. Então aquela escada fez-me muito sentido, é muito importante.”
[ouça “Marquês, 256.” na íntegra através do YouTube:]
Em termos práticos, para a gravação do disco, Zé Ibarra teve de pedir autorização a todos os moradores do prédio. “Alguns gostaram da ideia, outros não, mas no final conseguimos convencer toda a gente e eles entenderam que era uma coisa importante para mim.” Ibarra contou com a ajuda de Lucas Nunes (parceiro de Dônica e Bala Desejo) para a gravação, que aconteceu numa única tarde, em formato live.
“O momento da gravação é sagrado. Sempre que há o play, algo acontece dentro de mim. É como se fosse um momento de vida ou morte. Então, para mim não tem muita diferença se a gravação é numa escada ou num estúdio ou em qualquer outro lugar. O que importa é saber que está a ser gravado e que vai ficar para sempre. Então foi muito gostoso. Montámos o equipamento, testámos, descobrimos quais eram os melhores sítios, pusemos o microfone no violão, outro na minha voz, um no andar de cima e outro no andar de baixo, para captarmos o eco e o reverb. E foi lindo. Porque me propus a fazer tudo ao vivo. O que é ainda mais emocionante, porque você não pode errar, não há tempo para pensar muito, tem de estar completamente presente e entregue àquilo. E foi assim. Foi muito emocionante, lembro-me de o Lucas vibrar muito. Entrámos ali numa comunhão juntos.”
Na base do conceito está a importância que aquele lugar também ganhou durante a pandemia. “Fiz lives naquele lugar e a galera saía para ouvir no corredor. Aquilo foi quase uma cura para mim e para quem estava lá. Porque era música naquele momento de dor e clausura. Foi muito importante esse estímulo e o corredor ganhou esse simbolismo. Foi muito por isso que quis fazer este disco ali. Porque já era um lugar importante para mim e, com a pandemia, ficou importante não só para mim, mas para mais pessoas.”
[“Como eu Quria Voltar”, dos Dônica:]
No alinhamento do disco estão oito faixas de diferentes compositores, cantadas ao violão. Zé Ibarra canta “San Vicente” (1972), tema que interpretava ao vivo com Milton Nascimento na sua tour; mas também “Olho d’Água” (Paulo Jobim e Ronaldo Bastos, 1978); “Vai Atrás da Vida que ela te Espera” (Guilherme Lamounier, 1974); ou “Vou-me Embora” (Paulo Diniz e Roberto José, 1972). Pelo meio também há canções originais suas, como “Itamonte” ou “Como Eu Queria Voltar” (da banda Dônica).
Ibarra sublinha, porém, que este não conta como o seu primeiro álbum em nome próprio. “Este não é o meu primeiro disco a solo. Este é um projeto, é bom que isso fique claro. O meu primeiro disco a solo só vai chegar no final do ano”, adianta. “Este é mais um disco de homenagem a um lugar, a um momento da minha vida. É um disco que se foca em mim enquanto cantor. Sou produtor, arranjador, compositor, diretor musical e identifico-me com isso tudo. Faço muita coisa, mas também sou cantor, não é? Tenho Bala Desejo, Dônica, mas nunca tive um produto meu lançado, com a minha voz à frente. Então também estou a aproveitar este projeto para fazer um statement enquanto cantor. Queria músicas que tivessem a ver com este momento da pandemia, mas que também tivessem a ver com a minha infância e músicas que tivessem marcado a minha trajetória nos últimos anos.”
Dá o exemplo de “Vai Atrás da Vida que ela te Espera”, um tema “que mudou a vida de muita gente”. “Na pandemia recebi muitas mensagens a dizer que aquela música tinha mudado a vida de pessoas que estavam em depressão ou que não se sentiam bem, que tinham tomado outro rumo por causa daquela canção.”
Apresentar o disco em Portugal
Não existia o plano de começar por apresentar “Marquês, 256” em Portugal, mas a tour europeia estava a ser marcada e Zé Ibarra aproveitou para antecipar a data de lançamento do disco para que chegasse aos ouvidos dos fãs antes dos concertos deste lado do Atlântico. “É fixe porque vou estrear um disco em Portugal. É engraçado, nunca imaginei que isso fosse acontecer. Mas não é necessariamente só este disco. É um show que faço há algum tempo, que reúne canções da minha trajetória até agora. Toco metade dele com banda, e metade sem banda, quando apresento o ‘Marquês’ da forma como ele foi gravado.”
Zé Ibarra diz sentir um “acolhimento muito gostoso” em Portugal. “São muito entusiastas da música brasileira, existe um amor ancestral aí que faz com que tudo aconteça de forma positiva, quando a gente da música popular brasileira aí vai. Bala Desejo é a prova disso. Foi um dos concertos mais memoráveis da minha vida, Bala Desejo em Lisboa, no Cinema São Jorge [em novembro de 2022, no Super Bock Super Stock]. Adoro Portugal, também tenho ligações. O meu padrasto é português, do Porto. Então há muitos motivos afetivos e a troca cultural é muito viva entre os dois países.”
O músico brasileiro já tocou com Tomás Wallenstein, dos Capitão Fausto, de quem diz ser “muito amigo”. “Sou muito fã dos Capitão Fausto, ouço assiduamente os discos. E o Salvador [Sobral], a Carminho, a MARO, o Tiago Nacarato… Pelo menos, falando da nossa geração, há ligações interessantes. Eles vêm para o Brasil, a gente vai para Portugal, encontramo-nos e fazemos concertos. A longo prazo pode dar frutos. Já está a dar, na verdade.”
O (verdadeiro) primeiro álbum a solo chega no final do ano
“Marquês, 256” acaba por servir de aperitivo àquele que será, de facto, o primeiro álbum a solo de Zé Ibarra, apenas com canções originais. O artista promete “um disco mais complexo” para “trazer coisas novas à música popular brasileira”, com “propostas disruptivas” e “músicas para dançar”. “Estou apaixonado por isso, depois de Bala Desejo. É um sonho fazer uma música para que as pessoas dancem e curtam contigo. Vai ser uma mescla de muita coisa. Tende a ser um pouco mais experimental do que se esperaria de mim”, adianta, embora realce que ainda se encontra em construção.
[“San Vicente”, versão de um clássico de Milton Nascimento:]
Para si, Bala Desejo foi o início do “sonho” enquanto “cancioneiro”. “Quero fazer músicas e composições com harmonias interessantes, melodias instigantes, que tragam novas perspetivas musicais, antes de falarmos sequer da poesia e do discurso. No meu disco a solo também quero isso. Bala já é o começo disso, mas é do jeito do Bala. Tem a ‘Dourado Dourado’ que é chula, reggae, frevo, samba, salsa. Tem tudo ali. Música para mim é isso, uma linguagem universal. E a música popular brasileira cumpriu a promessa de ser universal e conseguir fazer um produto bem acabado. A minha vontade é continuar isso. E, no meu disco, especificamente, quero colocar elementos que sejam eruditos fazendo-os funcionar num contexto de música popular, para as pessoas cantarem e dançarem. Que é, por exemplo, o que a ‘Baile de Máscaras (Recarnaval)’ fez. É pop, conceptual e erudita ao mesmo tempo, e está toda a gente a cantar e a dançar. Esse é o meu sonho.”