Declarada falida em agosto de 2021, a Dielmar teve ordem de encerramento em novembro desse ano. No dia 15 deste mês, o juiz do Fundão que esteve com o processo determinava aberto “o incidente de qualificação da insolvência”. Pretendia apurar as razões que conduziram a empresa têxtil à falência, nomeadamente se tinha origem fortuita ou culposa.
Havia credores a considerar que havia culpa na falência e queriam que o juiz do Fundão se pronunciasse. Um dos argumentos era de que as contas da Dielmar não representavam de forma verdadeira e apropriada a situação patrimonial e financeira, além de estar em falta a certificação legal de contas referente ao exercício de 2020, acusando ainda a gestão de não entregar documentação ao administrador da insolvência e de ter prosseguido “uma exploração deficitária, de forma sistemática, mesmo numa altura em que a sociedade insolvente já se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas”. Apontava-se o dedo aos três gestores da Dielmar à data da insolvência: Ana Paula Rafael, Luís Filipe Rafael e Luís Beirão Dias.
O tribunal do Fundão analisou as queixas e, na segunda metade do ano passado, decidiu. A sentença assinada pelo juiz Filipe Guerra determina:
Qualifica-se a insolvência da Sociedade Industrial de Confecções Dielmar, S.A. como fortuita”.
Na sentença, a que o Observador teve acesso, considera-se que “não se descortina qualquer circunstância de facto dada como provada suscetível de representar uma atuação dolosa ou com culpa grave daqueles administradores da sociedade insolvente que fundamente a qualificação da presente insolvência como culposa”.
Uma decisão que é contrária ao parecer do administrador de insolvência, João Gonçalves, entregue no tribunal, e ao Ministério Público.
Para João Gonçalves, “a informação contabilística consolidada e individual da sociedade insolvente, bem como da respetiva participada West Company, conjugada com o não fornecimento de informação contabilística ou financeira da sociedade participada espanhola, Dielmar SL, traduzem, por parte da administração da sociedade insolvente, uma prossecução, no seu interesse pessoal, de uma exploração deficitária que conduziria, com grande probabilidade à insolvência da devedora; uma violação do dever de requerer a declaração de insolvência; e um incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las a fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial sustentando, ainda, que se verifica um nexo de causalidade entre os apontados incumprimentos e a situação de insolvência da devedora ou, pelo menos, o agravamento desta situação de insolvência“.
O Ministério Público juntou-se a este parecer, ou seja, via razão para uma eventual declaração de insolvência culposa. O Observador tenta esclarecer há vários dias junto do Ministério Público se tinha havido recurso da decisão do juiz, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
O que aconteceu à Dielmar?
As dúvidas sobre a falência da Dielmar começaram a expressar-se logo naquele agosto de 2021. Pedro Siza Vieira, então ministro da Economia, foi a voz audível sobre a situação da empresa de Alcains: : “Os dinheiros públicos servem para apoiar empresas, para salvaguardar os ativos das empresas, não servem para salvar empresários.” E disse mais. Pedro Siza Vieira garantiu empenho em “encontrar um novo destino” para a Dielmar em “mãos mais capazes”.
Dielmar “não tem salvação”, mas Estado quer encontrar uma solução para os trabalhadores
E traçava, nessa altura, o destino da Dielmar: “não tem salvação”. A insolvência chegou a uma empresa que tinha 240 trabalhadores e oito milhões de dinheiro público lá metidos: 5 milhões em capital e 3 milhões em garantias a empréstimos. Havia ainda uma dívida à segurança social de 1,7 milhões, de 6,14 milhões à banca e de 2,5 milhões a fornecedores. Na altura, o Ministério da Economia dizia mesmo que a empresa “se debate, há vários anos, com graves problemas financeiros, apresentando muitas dificuldades a nível comercial e registando quebras significativas do seu volume de vendas”, situação “anterior à crise provocada pela pandemia da doença Covid-19, tendo-se prolongado pelos últimos 10 anos”.
Estas ajudas públicas chegaram à Dielmar desde 2011. Além do capital que entrou e das garantias prestadas pelo Estado, nomeadamente através do Fundo Autónomo de Apoio à Concentração e Consolidação Empresarial (FACCE), houve também a aquisição de imóveis à Dielmar pelo Fundo Imobiliário Especial de Apoio às Empresas (FIEAE), que ficou proprietários das instalações, arrendando-as à empresa.
A gestão da Dielmar acabou também por admitir que os problemas se arrastavam, fruto de crises económicas, mas realçava em particular a que aconteceu com a Covid-19. Mas não deixou, também, de apontar o dedo ao acionista público, dizendo que não aceitou uma solução proposta para resolver os constrangimentos financeiros. A empresa acusa o FACCE de não ter aceitado uma redução de capital que permitiria à Dielmar receber dinheiro das linhas de apoio Covid-19.
Segundo declararam em tribunal os administradores da Dielmar visados no pedido de falência culposa, a situação da empresa “resultou das crises económicas da última década e em particular à da Covid-19”, realçando “os esforços de reestruturação que foram realizados nos anos de 2018 e 2019 com vista à contenção e redução de custos, bem como à circunstância do sócio FACCE ter recusado, ao abrigo dum acordo parassocial, a redução do capital social da sociedade insolvente que era medida imprescindível para esta ter acesso a um financiamento bancário, no contexto das linhas de apoio à economia durante a referida pandemia, e que já havia sido aprovado por quatro bancos, num valor global de 1,8 milhões de euros”.
Alegaram, junto deste juízo, que procuraram “adotar medidas e obter investidores com vista a recuperação” da Dielmar “e a sua manutenção em atividade, assumindo como especial preocupação a preservação dos postos de trabalho e o pagamento das remunerações dos respetivos trabalhadores”.
Reservas às contas foram minimizadas?
Um dos argumentos apresentados para que fosse considerada insolvência culposa foi a falta de certificação legal de contas. Mas, de acordo com a sentença, encontram-se registadas para 2017 e 2018 as certificações respetivas, com ênfases e reservas (quando há situações que levantam dúvidas a quem fiscaliza as contas. As reservas podem afetar a opinião do auditor).
Já nessas certificações se salientava a incerteza material sobre a continuidade das operações, quer nas contas individuais quer nas consolidadas. Nas de 2018 já se alertava para o incumprimento do Código das Sociedades Comerciais, no seu artigo 35.º, que determina um rácio mínimo de capitais — que determina que não pode estar perdido metade do capital social, considerando-se que existe essa perda quando o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social.
Em 2018, as contas individuais apresentavam um capital próprio de 3,105 milhões de euros, para um capital social de 6,7 milhões de euros. O que significava que a empresa teria de ser capitalizada. E nada aconteceu.
Chegados a 2019, de acordo com o relatado na sentença, as contas individuais desse ano só foram certificadas em janeiro de 2021. Voltava a ter uma fiscalização de contas com reservas e ênfases e reforçando a necessidade de capitalização. Mas nesse mesmo ano, já em outubro (depois do pedido de insolvência), o revisor oficial de contas recusou emitir opinião sobre as contas consolidadas.
“Não emitimos uma opinião sobre as demonstrações financeiras consolidadas. (…) Devido à relevância das matérias referidas na secção ‘bases para a escusa de opinião’ não obtivemos prova de auditoria suficiente e apropriada que nos proporcionasse uma base para emitirmos uma opinião sobre as demonstrações financeiras consolidadas”. Segundo explicava, as matérias que levaram à escusa prendiam-se com a falta de documentos da administração assumindo a responsabilidade das demonstrações financeiras. Alerta-se também para o facto das demonstrações financeiras consolidadas de 2019 terem sido disponibilizadas para fiscalização em setembro de 2021, com a data de 11 de dezembro de 2020. “Contudo, de acordo com as atas do Conselho de Administração que nos foram disponibilizadas em outubro de 2021, aquelas terão sido aprovadas em 16 de abril de 2021”, diz ainda a auditora. As contas de 2019 (apresentadas para fiscalização em 2021) ainda, diz a revisora oficial, foram preparadas no pressuposto da continuidade das operações, apesar de apresentadas para fiscalização já em 2021, ano em que a 30 de julho se apresentou à insolvência.
Nas contas de 2019 já o capital próprio consolidado era também negativo, e acumulava “perdas significativas nos últimos exercícios”. A empresa revelava desde 2017 um plano de pagamento a prestações à segurança social.
Para a revisora de contas, “com base nos elementos disponíveis, entendemos não ser apropriada a utilização do pressuposto da continuidade das operações da entidade e do grupo na preparação das demonstrações financeiras consolidadas, pelo que deveriam ter sido preparadas numa base de liquidação”.
Depois de escusa de opinião referente a 2019, Teresa Tavares, da Deloitte, emitiu para 2020 “declaração de impossibilidade de certificação legal das contas” individuais e consolidadas, parecer datado também (tal como o referente a 2019) de outubro de 2021.
“Não pudemos examinar as demonstrações financeiras individuais e consolidadas de dezembro de 2020, em conformidade com as Normas Internacionais de Auditoria (ISA) e demais normas e orientações técnicas e éticas da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, por não nos ter sido disponibilizado o conjunto completo das respetivas demonstrações financeiras devidamente aprovadas pelo Conselho de Administração, nem diversos esclarecimentos e informação de suporte necessários à conclusão dos correspondentes trabalhos de auditoria. Nestas condições, não podemos emitir a correspondente Certificação Legal das Contas”, explicava a revisora oficial.
Para o juiz, no entanto, todos estes registos demonstram que houve depósito dos relatórios e contas individuais e consolidados de 2017 e 2018 e que estes integravam a certificação legal de contas, não tendo havido em 2019 e em 2020.
Além disso, escreve na sentença, “as reservas acompanhavam os relatórios e eram depositadas no registo. Pelo que não se pode afirmar que a aposição de tais reservas às contas da sociedade insolvente significa que a contabilidade da sociedade insolvente não reflecte a realidade da situação patrimonial e financeira da devedora. Antes pelo contrário”, acrescentando mesmo que “na medida em que as indicadas reservas se encontrem quantificadas (o que, in casu, como se surpreende da certificação legal de contas em causa, não se verifica quanto a todas), as valorizações ou as subavaliações de resultados de exercício, de ativos e passivos ou de capitais próprios ficam acessíveis aos interessados, permitindo que os mesmos avaliem opções da administração e eventuais debilidades das informações por esta prestada.”
O juiz declara mesmo que não ficou demonstrado que as certificações “tiveram por base informação falsa prestada pela administração da sociedade”, “não se acompanhando a tese de que a persistência das reservas assinaladas pela SROC [Sociedade Revisora Oficial de Contas] da Dielmar representem um ‘prejuízo para compreensão da situação da empresa'”. Aliás, acrescenta-se na sentença, mesmo com essas reservas a empresa obteve crédito bancário.
Ainda assim o juiz acaba por admitir que a gestão da Dielmar ignorou os alertas das referidas certificações, mas não vê nisso irregularidades. “Sendo certo que o Conselho de Administração da sociedade insolvente foi ignorando, independentemente de ter sido por discordância ou com um intuito de embelezamento das contas, as reservas apostas às contas prestadas pela sociedade pela SROC que exercia as funções de fiscal única da sociedade, não evidenciando procurar resolver o fundamento daquelas reservas, também é certo que não resulta dos autos que a persistência de tais reservas corresponde a uma qualquer violação, formal ou substancial, de normas contabilísticas vinculativas e obrigatórias. Ou seja, não transparece dos autos que o fundamento das referidas reservas e, por outro lado, que a persistência e a não resolução das mesmas, corresponda a uma autêntica irregularidade, formal ou substancial, contabilística”.
A irregularidade aconteceu, ainda assim, nas contas de 2020 por não ter sido obtida certificação legal das contas. Mas o juiz também não imputa esse dado aos gestores, atribuindo a situação à própria Deloitte de quem diz ter diferido a emissão da documentação, “comprometendo até o depósito das contas desse exercício e do anterior, em razão de créditos não satisfeitos pela sociedade”, argumento dado pelos administradores da Dielmar.
Para o juiz ficou, ainda, provado que a antiga gestão colaborou com o administrador de insolvência, disponibilizando-lhe a documentação pedida. “Provou-se que a generalidade da informação solicitada pelo senhor administrador da insolvência foi fornecida”.
Por fim, também ficou sentenciado que a Dielmar não incumpriu o dever de se apresentar à insolvência na devida altura. “A devedora conseguiu sempre manter a regularidade dos pagamentos dos créditos laborais [aos trabalhadores] devidos e que terá sido, justamente, perante a circunstância de não ter garantido o pagamento destes créditos, conjugada com a circunstância de ver frustrado o recurso ao crédito bancário e, nomeadamente, às linhas de apoio aprovadas pela banca para capitalizar a sociedade e permitir a continuação da satisfação da generalidade dos créditos, tudo em contexto de situação pandémica, com os constrangimentos operacionais que daí resultaram, que os administradores da sociedade insolvente representaram a iminência da situação de insolvência”, tendo também surgido esta situação numa altura em que os prazos judiciais se encontravam suspensos por via da situação pandémica e do declarado Estado de Emergência.
Em julho de 2021 a empresa apresentou-se à insolvência, declarada em agosto, com a venda dos ativos a concretizar-se em novembro. A Valérius foi a empresa que ficou com o que restava da Dielmar. E já está em laboração na unidade de Alcains. António Costa foi esta semana à fábrica na qual a Valérius investiu, segundo o jornal T, 1,5 milhões de euros. Mantém a produção na moda homem conta com um total de 180 trabalhadores.