Nunca ninguém viu Fátima assim num dia como este. Em anos normais, a pequena cidade já teria, há vários dias, visto a sua população de 11 mil habitantes multiplicar-se por mais de dez. Cafés e restaurantes teriam filas à porta, as lojas estariam abertas, as ruas estariam cheias de peregrinos, de colete refletor, acabados de chegar a pé de todos os cantos do país.
Este ano, ouve-se apenas o silêncio. Não aquele silêncio impressionante de uma enorme multidão que reza com velas acesas, mas o silêncio de um recinto vazio, no meio de uma cidade deserta. Antes da hora de almoço desta terça-feira, os responsáveis do Santuário de Fátima e a GNR começaram a fazer algo inédito: à volta de todo o recinto foram fechados portões e instalados gradeamentos. Durante as 24 horas em que mais peregrinos entrariam no santuário, ninguém poderá passar para o interior do recinto de oração.
Fátima prepara-se para uma procissão de velas simbólica (vinte e um funcionários do santuário vão transportar vinte e uma velas, em representação das dioceses católicas portuguesas) e para uma missa da noite de 12 de maio que contará apenas com a presença de três peregrinos: pessoas que há vários anos organizam peregrinações a Fátima e que foram convidadas pelo santuário para representar a multidão que aqui se reuniria.
No último fim-de-semana, o reitor do Santuário de Fátima, o padre Carlos Cabecinhas, reconhecia, confrontado com a difícil pergunta “O que é Fátima sem peregrinos?”, que o peregrino é a “razão de ser” deste espaço. Sem a presença física dos peregrinos, o santuário tem-se desdobrado em iniciativas para que a peregrinação possa ser vivida à distância pelos que gostariam de estar em Fátima.
Mas este 13 de Maio atípico, esvaziado por causa da pandemia da Covid-19, pode mudar para sempre as ruas da cidade. Fora dos muros do santuário, multiplicam-se as pequenas lojas de objetos religiosos, que garantem o sustento de uma parte significativa da população permanente de Fátima. Ana Maria Marto, 60 anos, é uma das poucas pessoas que optaram por manter a loja aberta — no meio de uma cidade cheia de portas fechadas.
O apelido não é coincidência. É descendente dos pastorinhos de Fátima. “A minha avó paterna era prima direita do Francisco e da Jacinta”, revela. Ana Maria nasceu em Fátima, chegou a viver emigrada, mas voltou há dez anos à terra natal. Decidiu explorar uma das lojas de objetos religiosos que o Santuário de Fátima arrenda aos comerciantes locais, por uma baixa renda.
“Tenho a loja há nove anos. Este ano era o décimo. Mas está mau… Isto vai falir, não tenho dúvidas”, lamenta Ana Maria. A meio da tarde, quando conversou com o Observador, ainda não tinha vendido nada. O mesmo para os últimos dias. “O que é que a gente está aqui a fazer?”, suspira. Mas não conseguiu ficar em casa — ficaria a pensar que, “se calhar, se lá estivesse…”
À porta da loja 20 da praceta de Santo António, uma das duas pracetas de lojas nas laterais do Santuário de Fátima, a sobrinha dos pastorinhos vai perdendo a esperança no lugar que só existe pela sua própria família. O filho chegou a trabalhar em Fátima, nas equipas que asseguram a transmissão televisiva das celebrações, mas despediu-se para ir fazer voluntariado em Madagáscar. Apanhado pela pandemia, teve de regressar para Portugal, onde agora não encontra trabalho. “Vai arranjar trabalho onde?”, pergunta. “Despediu-se, puseram outro no lugar dele.”
O dia de trabalho vai ficar sem faturação mais uma vez. Durante a conversa com o Observador, Ana Maria vai arrumando a loja para se ir embora. Nem a vista privilegiada para o altar do recinto, ainda que por cima do muro, a convence a ficar para ver as celebrações. Verá na televisão a celebração em honra dos seus familiares distantes, Francisco e Jacinta, que há cem anos não resistiram à epidemia da gripe espanhola. “Tenho pouca fé de vender, mas tenho muita fé na Nossa Senhora”, garante.
Numa loja ao lado, Olímpia Reis, tem mais sorte. Durante uma conversa com o Observador, a meio da tarde, faz a primeira venda em vários dias: uma capa impermeável para a chuva que cai torrencialmente. São cinco euros. Provavelmente, tudo o que fará até à noite — até porque Olímpia já planeia fechar a loja.
“Tenho 70 anos. Em 60 anos que aqui passei, nunca na minha vida vi isto assim”, lamenta. Olímpia nasceu a cinco quilómetros de Fátima e é dona daquela minúscula loja há 30 anos. Pela primeira vez, o mês de maio está a ser o pior do ano. “Não vem ninguém.” A dona da loja 15 da praceta ainda teve alguma esperança com o 13 de Maio: não sabia das notícias sobre o encerramento total do santuário e decidiu abrir a loja.
Como vende objetos religiosos há 30 anos, Olímpia já tem clientes fiéis. “Ainda pensei que alguns dos meus conhecidos aqui passassem e levassem uma velinha. Não sabia que ia fechar completamente. Se alguém cá viesse, comprava uma velinha para acender.” Mas não. Veio ao santuário para pagar a renda da loja — mantém-se igual, “mas eles cobram pouquinho” — e aproveitou para tentar vender alguma coisa.
A conversa com as lojistas, as poucas que ainda tentam fazer negócio, acontece a meia dúzia de metros de um carro da GNR que guarda uma das entradas laterais do santuário. Mas a presença policial é pouco notada na cidade. Nas ruas não se encontravam peregrinos a tentar furar a proibição — ainda que esta semana o diretor de liturgia do Santuário de Fátima, o padre Joaquim Ganhão, tenha admitido ao Observador que colaboração das autoridades seria essencial para “acautelar” eventuais “entusiasmos do momento” junto às entradas do recinto.
Esta terça-feira, o Santuário de Fátima organiza uma celebração simbólica da procissão das velas, mas espera que os peregrinos por todo o país e em todo o mundo se juntem ao momento, colocando velas acesas nas janelas. Na quarta-feira, dia 13 de maio, será feita uma homenagem aos profissionais de saúde e bombeiros que, durante este período, têm estado na linha da frente do combate à pandemia da Covid-19 — tudo à porta fechada.