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[Este artigo foi originalmente publicado em maio de 2018 e atualizado em 20 de novembro de 2019, quando o Epur venceu a sua primeira estrela Michelin]

Estádio Azteca, Cidade do México, 22 de junho de 1986. Sol e calor andavam de mão dada quando, por volta das 12h, começou aquele que será, muito provavelmente, o mais polémico jogo de futebol de sempre. Cerca de 114 mil pessoas juntaram-se para ver os quartos-de-final do Campeonato do Mundo, partida que punha Argentina e Inglaterra frente-a-frente. Depois de uma primeira parte sem golos, começava a emoção: seis minutos depois do início do segundo tempo, Diego Armando Maradona protagonizava a famosa “Mão de Deus”. Contudo, o que mais interessa para esta introdução aconteceu 240 segundos depois, ao minuto 55. Ainda antes do meio-campo, o mesmo Maradona recebe a bola: com uma finta solta-se de dois médios e corre. A próxima vítima foi o defesa-lateral, que também ficou pelo caminho. Seguiu-se o defesa-central e, finalmente, o guarda-redes — em poucos segundos nasceu o golo da vitória Argentina (os ingleses ainda reduziram, mas não deu em nada).

Este divagar futebolístico tem um propósito. Olhando para a forma como o jogador argentino marcou este último golo, é impossível não pensar “bolas, isto parece tão simples.” De facto não aconteceu nada de complicado: pequenos toques com o pé e um ou outro movimento do corpo bastaram para criar algo espetacular… Mas queria ver qualquer um de nós, caro leitor, a fazer isto (Messi, se estiveres a ler, ignora esta última frase. Obrigado). De forma resumida, a ideia a reter desta introdução é a de que a simplicidade pode dar origem a coisas especiais, mas nem toda a gente consegue cingir-se ao elementar. O chef Vincent Farges (que, ironicamente, é mais adepto do râguebi), por exemplo, provou que consegue com a abertura do Epur, o seu novo restaurante em Lisboa.

O restaurante top e os seus fornecedores

A história deste novo inquilino do Chiado, em Lisboa, começou há dois anos. Depois de abandonar a Fortaleza do Guincho, uns dias antes de se mudar para aos Barbados (ilha onde viveu durante um ano, sensivelmente), Vincent organizou uma espécie de jantar despedida num showroom de cozinhas da marca Bulthaup. “Nesse dia, da despedida, o local já estava escolhido, já sabíamos que íamos fazer ali as coisas”, contou o chef no final de um almoço na sua nova casa.

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Quando em 2017 regressa a Portugal, o embrião deste Epur já começava a ganhar forma mais palpável, por muito que o conceito do restaurante ainda estivesse por definir concretamente: “Não sabia, à partida, aquilo que pretendia. A ideia foi crescendo pouco a pouco, mas obviamente não ia fazer aqui uma hamburgueria ou um bistro. Queria fazer uma coisa top, mas não tinha os pormenores definidos”, explicou. O tempo que demorou a definir o que queria encaixou perfeitamente com a duração das obras que “lavaram a cara” deste espaço. Durante um ano e uns meses, — “queríamos ter inaugurado no início de 2018” –, o chef aproveitou para mergulhar de cabeça em Portugal, cruzar o país de norte a sul, em busca daquilo que de melhor se produz e cultiva. Nasceu daqui, desta aventura, aquele que se tornou num dos elementos essenciais do Epur —  ligação com os produtores.

“O conceito do restaurante está muito ligado ao produtor — dependemos dele e não o contrário. Cozinho conforme aquilo que chega, não vou obrigar os produtores a produzir em excesso só porque sim. O que ele tiver, traz-me. Se já não tiver, faço outra coisa”, diz Vincent. Parece simples, não? Na verdade é tudo menos isso: “Não facilita o meu trabalho nem o dos empregados de mesa [esta filosofia de trabalho]. Nada é descrito na carta e esse trabalho acaba por recair sobre eles, que têm de perder mais tempo a descrever tudo.” Contudo, é inegável que não há melhor maneira de exercitar a criatividade do que desafiá-la diariamente. “Todos os dias tenho de pensar no que vamos fazer tendo sempre em conta aquilo que deixou de haver ou apareceu agora. Estações, temporadas, etc.”, prosseguiu. Esta filosofia é levada tão a sério que, apesar de ainda só estarem abertos há poucos dias, o chef já “despachou” pratos — “Cansei-me deles. Não gosto de ver repetição em excesso.”

Ora em termos mais práticos, aquilo que aqui poderá provar estará espalhado em quatro variedades de menus: existem três modelos de menu de degustação (de 4, 6 ou 8 momentos; 90€, 125€ e 160€, respetivamente) e um outro, servido apenas ao almoço, que inclui entrada ou sobremesa, café ou chá e prato principal (45€). “Este é um restaurante de comida à seria, esse é o objetivo. Cozinha ‘cozinhada’, não de biberons ou esferificação”, avisou Vincent. Realmente, olhando para pratos como o rascaço (tipo de peixe) braseado com fricassé de ervilhas, tutano e molho feito com a cabeça do peixe ou o cordeiro de leite (da Serra da Estrela) assado com uma “cevada de miúdos” e caldo de legumes, é fácil perceber aquilo que o chef defende, a tal “cozinha cozinhada” em vez de seguir linhas mais ligadas à cozinha molecular, por exemplo. Mas desengane-se quem achar que aqui só se servem comidas pesadas — é precisamente o contrário. “Nada aqui acontece por acaso… Está tudo pensado. Quem vai comer oito pratos não tem de chegar ao fim a forçar as últimas garfadas, isso não faz sentido. Reduzimos as porções e fazemos mais pratos.”

Mini-rabanetes? Eu gosto é de legumes a sério

Linhas retas, cores muito neutras (brancos, azuis claros, pinho, …) e um teto forrado a pequenas folhas prateadas. É assim a principal sala de refeições, que fica ao fundo de um longo corredor que é intercalado por uma zona de lounge. Uns metros ao lado há a sala privada, espaço mais recatado, com ligação direta à cozinha. Tudo isto é emoldurado por uma das melhores vistas da zona ribeirinha de Lisboa — até a da sala privada interior, que pode ter uma projeção da vista do restaurante ou um live stream daquilo que se está a passar entre os tachos.

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De forma resumida, é este o aspeto deste Epur. As palavras nunca lhe farão tanta jusitiça quanto uma visita em pessoa, certamente, mas por muito que o o minimalismo e a subtileza do design seja cativante, aqui o foco é a comida e é atrás dela que Vincent nos levou durante a conversa pós-refeição.

“Durante o ano que estive parado, lancei-me mesmo à aventura por Portugal inteiro. Esse tempo foi a maior oportunidade que me podiam dar… Não ter nada para fazer. Muitas vezes apanhávamos o carro e íamos passear: à Quinta do Poial, ao Horácio Simões…  Houve um dia em que ele [Horácio Simões] até nos levou a uma ótima queijaria para descobrir mais queijos de Azeitão.” Esta epopeia de sabores foi, diz Vincent Farges, essencial para aquilo que agora apresenta no Epur. Por muito que ainda continue a trabalhar com pessoas que já conhecia antes, descobriu mãos cheias de pessoas talentosas a fazerem a sua arte — no total, trabalha com cerca de 90 produtores de todo o país. “Não me interessam grossistas com catálogos de milhares de coisas. Isso não entra cá. Quero trabalhar com pessoas que também querem realmente trabalhar.”

Como em tudo na vida, porém, há sempre um reverso da moeda que nem sempre é muito agradável — e neste caso ele também existe. “O mais complicado agora vai ser fazer chegar cá todas as coisas com que me fui cruzando. É o mais difícil”, explicou Vincent antes de “puxar a fita para trás” ao explicar que há 20 anos as coisas “eram muito piores”. Mesmo assim, continuam a existir dois grandes calcanhares de Aquiles no seio da comunidade de produtores de alimentos: a falta de consistência e variedade. “A consistência e algo difícil de alcançar de Norte a Sul do país”, começou o cozinheiro por dizer. “Os produtos chegam uma vez mal, depois voltam perfeitos, e assim sucessivamente”, continuou. A solução que encontrou para esse problema, diz, é a frontalidade e a firmeza: “Eu sou muito frontal com esse assunto: se me entregam aqui alguma coisa que eu ache que não esteja bem, vai embora. Troco, adapto-me. Ali consigo jogar com a qualidade dos produtos, jogar com essa inconsistência.”

Sobre a falta de variedade nas explorações agrícolas portuguesas, por exemplo, Vincent quase ficou exaltado ao abordar o assunto. “Com tantos chefs estrangeiros e cozinhas internacionais que existem em toda a Lisboa, não entendo como é que não existe mais variedade de produtos. Temos de importar tudo…” Produtos como o pepino, veja-se, é para Vincent um exemplo claro desta carência — “porque é que o temos de importar do Japão? Ninguém sabe como é que se planta?” E este problema chega a dar o salto para as quintas especializadas em produtos biológicos. Farges quase que brinca com aquilo a que chama de invasão de micro-vegetais: “Visitei muitas delas [quintas biológicas], mas em todas só encontrava mini-cenouras, mini-cebolas, mini-nabo, mini-rabanete… Não há vegetais de tamanho normal? Eu gosto de legumes a sério, que sabem a alguma coisa. Não quero cá micro-rabanetes… ”

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Estrelas? Basta olhar pela janela

Não há dúvida: a vista do Epur é a prova viva de que os olhos também comem. De dia vê-se toda a zona do Terreiro do Paço para cima, até Alfama e aos primeiros vestígios de Marvila, enquanto de noite, quem manda são as luzes e as estrelas. Foi a propósito destas que surgiu a pergunta inevitável: Estão de olhos postos no Guia Michelin? Vincent é preemptório na sua resposta. “Primeiro queremos encher o restaurante e satisfazer as pessoas, depois logo se vê.” Vincent explica que passou 20 anos a ansiar por “aquele dia em novembro”, a data em que são reveladas as estrelas, e que esse tipo de comportamento já lá vai. “Para mim cozinhar é um prazer, temos de ter prazer naquilo que fazemos. A partir do momento em que entras em modo de competição, aí já é outra coisa”, explica o chef enquanto é servida fruta fresca — um delicioso pormenor. “Nós partilhamos as nossas sensações e emoções com vocês e quero que os clientes sintam isso. Nós demos amor à confeção do cordeiro, o produtor deu amor enquanto o criava… quero que os clientes sintam isso. Isso tem de se partilhar.”

Tudo isto retira-lhe o título de potencial estrela Michelin? A resposta é não, claro.  No Epur não há pormenor que falhe — da sala de jantar à equipa de empregados, passando pela comida, os vinhos (a carta é 100% portuguesa) e a pessoa que os sugere/escolhe (o jovem sommelier Ivo Peralta veio substituir Inácio Loureiro, que mudou-se para o novo projeto de Martín Berasategui em Lisboa, o Fifty Seconds). Contudo, só os inspetores do guia vermelho é que decidem se há ou não prémio para esta grande aventura — até no sentido financeiro do negócio, já que o próprio chef e Pedro Mendonça, o representante da marca Bulthaup em Portugal, são os únicos investidores.

Epur
Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 14, Lisboa
213 460 519 (reserva aconselhada)
65€ (preço médio)