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Fernando Pessoa e o "Livro do Desassossego": 40 anos da obra impossível

Em 1982 foi publicada a primeira edição do "Livro do Desassossego", que se tornou na obra mais conhecida de Pessoa fora de Portugal. Esta é a história de livro que nunca teve forma definitiva.

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Apesar de ser uma das obras mais famosas de Fernando Pessoa, o Livro do Desassossego foi publicado relativamente tarde. A primeira edição saiu em 1982, 47 anos após a morte do poeta e quase 70 após a publicação do primeiro trecho, no n.º 4 da revista Águia. Para os leitores que hoje o conhecem e o dão como adquirido, parece impossível que tenha levado tanto tempo. A demora explica-se com facilidade: o Livro, constituído por centenas de fragmentos desordenados escritos ao longo de várias décadas, nunca existiu enquanto livro propriamente dito. A sua existência física é uma construção póstuma, que resulta de décadas de estudos e edições. Por não ter forma definitiva, pode ser quantos livros os seus editores quiserem. É isso que tem acontecido desde que se transformou num objeto físico, em 1982: com cada nova edição, surge um novo Livro do Desassossego, com excertos que se repetem, é certo, mas numa ordem que segue critérios próprios, definidos pelo organizador.

São vários os autores, como Jorge de Sena, pioneiro no seu estudo e um dos primeiros a mostrar interesse na sua publicação, que têm apontado e defendido essa pluralidade, que reflete, em menor escala, a pluralidade da própria obra pessoana, onde nada é estanque, mas eternamente em movimento. Uma particularidade que dificilmente será ultrapassada e que alguns editores decidiram mesmo abraçar, preferindo apresentar os diferentes excertos por ordem cronológica, destacando as diferentes fases da obra. Porque o Livro teve várias, desde que surgiu no espólio de Pessoa em 1913, quando o texto “Na Floresta do Alheamento” apareceu na Águia, até que desapareceu, em 1934, um ano antes do poeta morrer. E a sua história continuou, muito depois disso, culminando com a primeira edição, cuja história, igualmente desassossegada, decidimos contar, sem contornar as dificuldades que fazem do Livro uma obra única, impossível e eterna.

O livro e a arca: o nascimento do Livro do Desassossego

O Livro do Desassossego apareceu em 1913, um ano antes do nascimento de Caeiro, Reis e Campos. Trata-se, portanto, de um projeto que antecede os próprios heterónimos e que se estende depois deles, acompanhando Pessoa ao longo de quase metade da sua vida. Apenas Álvaro Campos, que viveu até 1935, ano da morte de Fernando Pessoa, o ultrapassou no tempo. Facto que, aliado à existência da indicação “A. de C. (?) ou L. do D. (ou outra coisa qualquer)” num dos papéis do primeiro envelope do espólio, levou Richard Zenith a notar “uma forte concordância intelectual e emocional entre o ajudante de guarda-livros”, Bernardo Soares, “e o Campos do último período, já bem menos estridente que o futurista que escreveu a ‘Ode Triunfal’. Se os poemas escritos por este heterónimo envelhecido são muito parecidos (…) aos versos de Pessoa ele-mesmo, certas prosas de Campos, como ‘Ambiente’, (…) poderiam ter sido assinadas por Bernardo Soares”, escreveu o investigador na introdução da sua edição do Livro do Desassossego. O próprio Pessoa admitiu essa aproximação na famosa carta sobre a génese dos heterónimos, dizendo a Casais Monteiro que Soares “em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos”.

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Uma vida tão longa implicou necessariamente uma existência atribulada, marcada por duas fases (tal como identificadas por Jorge de Sena e Teresa Sobral Cunha), que refletem as hesitações e dúvidas do seu autor. Os apontamentos deixados no espólio dão a entender que Pessoa terá ponderado em vários momentos o que fazer com o Livro — que rumo lhe dar, como o organizar, que autor lhe atribuir. Numa fase inicial, o narrador do Livro do Desassossego “não tinha nome, não tinha uma identidade. Era uma voz em ambientes muitas vezes irreais. Às vezes não conseguimos perceber onde estamos ou em que tempo, se é na atualidade. Muitas vezes, [os textos] parecem ser atemporais”, disse Richard Zenith, em conversa com o Observador. “No início, havia alguns textos que eram já de carácter diarístico, mas a personagem a quem pertenciam não é clara. Talvez o próprio Fernando Pessoa”, sugeriu o investigador, lembrando que o poeta assinou com o próprio nome o primeiro trecho do Livro que publicou, “Na Floresta do Alheamento”.

Um dos trechos com a sigla "L. do D.". Pessoa deixou no espólio vários textos indicado que pertenciam ao projeto do "Livro do Desassossego"

ESPÓLIO 3/BNP

No início, foi o seu próprio nome (ou nome nenhum) que colocou nos textos, mas rapidamente Pessoa estabeleceu que estes teriam um outro autor, Vicente Guedes. Guedes é anterior ao projeto do Livro do Desassossego, tendo surgido associado à criação da Empresa Íbis. Pessoa tinha vários planos para a tipografia, nomeadamente a publicação de uma antologia de poetas portugueses e brasileiros e a tradução de vários autores para uma coleção de literatura estrangeira. Estes planos seriam executados por si e por uma série de figuras fictícias que faziam parte da empresa. Uma dessas personagens era Guedes. Este começou por aparecer nas listas da Íbis, criada em 1909, antes de assinar qualquer texto literário, o que só aconteceu em janeiro de 1910. Em 1915, os textos do Livro do Desassossego, que antes tinham um autor sem nome (ou que tinham Fernando Pessoa como autor, dependendo das interpretações), começaram a ser associados a Guedes, um ex-tradutor e poeta entretanto transformado em contista. Numa primeira fase, a personagem parecia ser “uma espécie de nobre sem dinheiro”, que queria viver como um aristocrata.

“Não parecia ter trabalho”, afirmou Richard Zenith, explicando que só mais tarde, entre 1917 e 1918, é que Guedes surgiu descrito num apontamento como um “empregado do comércio” e “ajudante de guarda-livros”. Noutros textos, rascunhos de prefácios para o Livro, Pessoa tentou traçar um retrato de Guedes e do encontro “casual”, num “restaurante retirado e barato” da Baixa de Lisboa, onde o ajudante de guarda-livros vivia e trabalhava, que os juntou. De acordo com um texto datável de 1917, Guedes “era um homem que aparentava 30 anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mais menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado”. A face era “pálida” e “sem interesse” e dava a entender algum tipo de sofrimento que não era possível definir. Fazia as refeições sempre na mesma casa de pasto e concluía-as “fumando tabaco de onça”, “reparando extraordinariamente para as pessoas que estavam”. Foi esse traço curioso que despertou a atenção de Pessoa.

“No início, havia alguns textos que eram já de carácter diarístico, mas a personagem a quem pertenciam não é clara. Talvez o próprio Fernando Pessoa...”
Richard Zenith, editor do Livro do Desassossego

Certa vez, calhou que se sentassem à mesma mesa, “tendo o acaso proporcionado” que trocassem “duas frases”. “A conversa seguiu-se” e passaram a encontrar-se todos os dias, ao almoço e ao jantar. Por vezes saíam juntos do restaurante e passeavam um pouco, conversando. “A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia”, relatou Pessoa num outro texto, também de 1917. “Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem o Orpheu soa ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou,essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, só ia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.” E que escrevia Vicente Guedes? Um livro que não era dele, mas era ele; uma “autobiografia de quem nunca existiu”.

A chamada primeira fase do Livro do Desassossego começou em 1913 e prolongou-se até 1920. Durante este período, Pessoa escreveu textos de teor simbolista e “algumas passagens sensacionistas tardias”, como identificou Jerónimo Pizarro, que descreveu este primeiro Livro como “uma série de apoteoses e de glorificações, um conjunto de litanias e de devaneios, um livro de máximas e de conselhos, um manual de maneiras de bem sonhar — com um capítulo intitulado ‘Educação sentimental’ —, um diário íntimo de viagens nunca feitas e lúcidos exames de consciência de um solitário pelas florestas do alheamento”. Depois de um longo interregno, que ocupou quase toda a década de 1920, o projeto foi retomado em 1929, com o início da chamada segunda fase, que decorreu até 1934. Pessoa abandonou os “grandes trechos” com “títulos grandiosos”, deu protagonismo à cidade de Lisboa e deu ao Livro um novo autor, o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares.

Um dos rascunhos de prefácio em que Fernando Pessoa relatou o encontro com Vicente Guedes

ESPÓLIO 3/BNP

Autor de contos e pretenso poeta, Soares começou por volta de 1929 a ser transformado num empregado do escritório da Baixa. Pouco mais se sabe sobre ele — os prefácios que Pessoa escreveu falam de Guedes, não de Soares, que seria uma espécie de sósia do primeiro com muitos traços em comum com o autor que criara os dois. O próprio Pessoa constatou essa aproximação na carta enviada a Adolfo Casais Monteiro em janeiro de 1935, onde também admitiu uma semelhança entre alguns textos de Soares de Campos. Nessa missiva, o poeta classificou Soares como um semi-heterónimo, porque, não sendo a sua personalidade, não era diferente da dele, “mas uma simples mutilação dela”. “Sou eu menos o raciocínio e a afetividade”, explicando que Soares “aparecia” sempre que estava cansado ou sonolento, quando estavam “um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição”. Porém, “não devemos confundir a criatura com o seu criador”, como alertou Richard Zenith na introdução à sua edição. “Soares não foi uma réplica de Pessoa, nem sequer em miniatura, mas um Pessoa mutilado com elementos em falta.” Por exemplo, “Soares tinha pouca personalidade e nenhum sentido de humor; Pessoa possuía ambas as coisas, e em grande medida”.

Não é claro que Bernardo Soares tenha aparecido para se assumir como derradeiro autor do Livro do Desassossego. Alguns investigadores defendem uma dupla autoria (Guedes e Soares), mas a visão mais comum continua a ser a de um autor único, ainda que permaneçam muitas dúvidas sobre quem seria esse autor. Jerónimo Pizarro, que optou por colocar o nome de Pessoa nas suas edições, explicou ao Observador que “perante três autores sucessivos (Pessoa, Guedes e Soares), sempre podemos, mantendo os traços e os vestígios de cada autor, reafirmar, em última instância, o nome do autor material e intelectual da obra”. Para Richard Zenith, a questão autoral é uma “questão falsa”, que não tem assim tanta importância. “Há um narrador que vai mudando, que se vai definindo. Para mim não é como se fosse de repente o outro que chega. É sempre o mesmo narrador, mas há evolução”, defendeu. “Nós, leitores, costumamos adoecer de uma certa ‘angústia da unidade’”, comentou Pizarro. “Queremos um cânone textual único, procuramos um autor único. Mas o Livro do Desassossego desafia essa canonização e é muito mais pirandelliano do que já foi admitido.”

“Nós, leitores, costumamos adoecer de uma certa ‘angústia da unidade’”, comentou Pizarro. “Queremos um cânone textual único, procuramos um autor único. Mas o 'Livro do Desassossego' desafia essa canonização e é muito mais pirandelliano do que já foi admitido.”
Jerónimo Pizarro, editor do Livro do Desassossego

O maior desafio de Fernando Pessoa quando retomou a escrita do Livro no final dos anos 20 terá sido a falta de harmonia entre os textos da primeira fase e os da segunda. O poeta chegou mesmo a considerar mexer nos trechos anteriores, adaptando-os à “vera psicologia” de Bernardo Soares. “O carácter do livro foi mudando. Começou a ser mais um diário do pensamento, de sentimentos, mas também com algumas reflexões sobre arte, escrita, que não são bem textos diarísticos. Era uma variedade de textos. Tinha vontade própria, e essa vida ramificava-se para um lado e para o outro. E Pessoa estava em crise, sem saber como fazer daquilo tudo um livro”, disse Richard Zenith. “A sua vontade era que [o Livro do Desassossego] fosse um livro só, só que ele não conseguia dar-lhe uma estrutura, não sabia como organizar o material. Pessoa deixou vários apontamos sobre como o poderia organizar, mas era um projeto que, desde o início, escapava sempre das suas mãos.”

Fernando Pessoa morreu antes de conseguir dar a volta à questão, deixando na “arca” uma amálgama de textos sem forma, ligados sob um mesmo título. Por essa razão, o Livro não pode ser considerado um verdadeiro livro, no sentido mais conservador do termo, mas antes “um não livro”. “Não são vários livros, é um não livro. É um livro impossível”, defendeu ainda o investigador. “É um livro entre aspas”, considerou por sua vez Jerónimo Pizarro. Pode um livro assim, que escapa a definições, derivar num livro? Pode, e derivou, “mas essa é uma questão diferente e posterior à criação da obra”, destacou. “A obra é um original, uma criação original, e o livro é um formato. Segundo Mallarmé, ‘le monde existe pour aboutir à un livre’ [‘o mundo existe para acabar num livro’]. Mas, em rigor, devia ter dito ‘…pour aboutir à une œuvre’ [‘…para acabar numa obra’]. Porque os livros podem ser muitos e muitos mais ainda quando a obra não teve o imprimatur do autor.”

Mas “se o Desassossego pode considerar-se uma ‘amálgama de textos’, a situação então é ainda mais complexa, porque “texto” é um termo escolhido para designar entidades sem limites claros”, disse o também professor ao Observador. “Neste sentido, o primeiro que se impõe é definir um corpus, embora possa não ser consensual, confrontar as propostas todas de amálgama e leitura, embora divirjam, e ser transparente nas decisões editoriais, porque estas incidem na interpretação.” Foi isso que Pizarro procurou fazer nas suas edições do Livro, primeiro na INCM e depois na Tinta-da-China, e que outros tentaram fazer antes dele, criando livros, que sendo diferentes, são o mesmo. Essa é a grande particularidade do Livro do Desassossego — a de poder existir tomando diferentes formas, porque nunca teve forma alguma. Essa concretização física só aconteceu várias décadas depois da morte de Fernando Pessoa, graças aos esforços iniciados por Jorge de Sena, o primeiro a sonhar com a sua publicação.

O sonho de Jorge de Sena

O primeiro investigador a mostrar interesse na publicação do Livro do Desassossego foi Jorge de Sena. A ideia seria antiga, talvez dos anos 40, mas só ganhou corpo em 1960, poucos meses após se ter fixado no Brasil. Em meados desse ano, Sena enviou uma carta à Ática, responsável pelas primeiras edições de Fernando Pessoa em Portugal, sugerindo a publicação do Livro do Desassossego, que foi imediatamente aceite. Maria Aliete Galhoz ficaria responsável por reunir e transcrever os manuscritos, que estavam ainda com a família do poeta em Lisboa (o espólio não tinha ainda sido transferido para a Biblioteca Nacional de Portugal, onde hoje se encontra), e de enviar as cópias para o Brasil. A investigadora deu conta do início dos trabalhos numa carta data de 6 de maio de 1960 (parcialmente reproduzida por Arnaldo Saraiva num artigo publicado na revista Persona), mas o primeiro conjunto de fotocópias só chegou a Sena no início de 1962. Com os textos finalmente nas mãos, o escritor partilhou as primeiras impressões com o editor da Ática.

Numa missiva escrita alguns dias depois, Sena destacou a fragmentação e outras particularidades dos textos, que dificultariam o processo de edição, mas tranquilizou o editor garantindo que tudo era “de maior interesse”. “Tudo é de data incerta ou de ordenação incerta; grande parte dos originais é de leitura dificílima. Trata-se de uma grande aventura, no plano da crítica do texto; claro que não o é no plano editorial…, muito pelo contrário”, afirmou Sena, de acordo com Saraiva, que deu a conhecer vários excertos da correspondência com a Ática num artigo publicado no n.º 3 da revista Persona, de julho de 1979. Na mesma carta, o escritor explicou que só insistia “nestes pontos” para dar uma ideia exata das “responsabilidades” e “dificuldades” do trabalho: “Só os desonestos ou os loucos (à conta destes últimos pertencemos eu e a D. Aliete) se arriscariam a fazê-la, sujeitando-se às iras dos sábios mestres da crítica textual, ou às dos ignorantes que não sabem o que estas coisas custam”.

Vários dactiloescritos com trechos do "Livro do Desassossego", compostos em diferentes fases. Todos têm no cabeçalho a indicação "L. do D."

ESPÓLIO 3/BNP

Em fevereiro de 1962, Maria Aliete Galhoz comunicou o envio de novas “páginas dactilografadas e conformes aos originais”. Nove meses depois, Sena assinou o contrato, acordando com a Ática uma data para a entrega do Livro: janeiro de 1964. Entretanto, tinha saído a brochura Livro do Desassossego. Páginas Escolhidas, com textos recolhidos por Pedro Veiga, que editava no Porto sob o pseudónimo Petrus, em várias revistas literárias. Veiga parecia interessado em dar continuidade à publicação do Livro do Desassossego, possivelmente lançando um segundo volume de “páginas escolhidas”. É isso que parece sugerir um episódio caricato, que ocorreu na Livraria Divulgação, no Porto, onde José Augusto Seabra organizou em 1963 uma exposição bibliográfica dedicada a Pessoa.

Segundo relatou Ricardo Belo de Morais num artigo publicado na revista Pessoa Plural em 2014, a mostra tinha por base uma pequena parte do espólio naquele tempo ainda inédita, nomeadamente documentação referente ao Livro do Desassossego. Tinha ficado acordado entre a Divulgação e a família do poeta que o material exposto não podia ser copiado, uma regra que Pedro Veiga fez questão de ignorar descaradamente: no primeiro dia da exposição, os promotores foram dar com Petrus copiando para um pequeno caderno de notas partes do Livro. O editor foi expulso, “debaixo de enorme escândalo, não poupando uma chuva de furiosos impropérios aos seus delatores, enquanto era escoltado para a rua”, contou Belo de Morais.

O projeto de Jorge de Sena continuou a sofrer contrariedades. Dificuldades várias, que parecem ter estado relacionadas com as exigências da vida académica do escritor no Brasil, levaram o investigador a admitir em 1963 que tinha “calculado mal” e a assumir a impossibilidade de concluir o Livro antes de junho do ano seguinte: “Calculei mal, quando julguei que tal trabalho podia ser feito num curto prazo (cerca de um ano), e não podia de resto prever as obrigações oficiais do ensino, que reduziram o meu tempo a metade. Não creio possível a conclusão de uma edição que nos não envergonhe, antes de junho do próximo ano”, escreveu ao editor da Ática. O prazo “foi mal acolhido pelo Coronel Caetano Dias”, marido de Henriqueta Madalena Nogueira Dias, irmã de Pessoa e guardiã do seu espólio, e a editora deu a Sena uma data definitiva: 30 de junho de 1964.

“Só os desonestos ou os loucos (à conta destes últimos pertencemos eu e a D. Aliete) se arriscariam a fazê-la, sujeitando-se às iras dos sábios mestres da crítica textual, ou às dos ignorantes que não sabem o que estas coisas custam.”
Jorge de Sena em carta para o editor da Ática

Mas junho chegou e o Livro do Desassossego continuou por terminar, o que levou a família do poeta a insistir com Sena para que concluísse a edição há muito prometida. O escritor declarou a impossibilidade de o fazer sem que lhe fossem enviados materiais em falta, o que, em 1966, continuava sem acontecer. Só no início de 1967 é que Sena recebeu o que tinha pedido, mas não a totalidade dos elementos encontrados, porque alguns se tratavam de fragmentos “quase indecifráveis a lápis”, explicou a Ática. Numa nota publicada no n.º 3 da Persona, Aliete Galhoz explicou que foi devido a uma possibilidade da sua parte (uma “longa doença”) que não foi possível pôr nas mãos de Sena, “com a fidelidade material de que dispusesse, a totalidade de cópias do Livro do Desassossego com o mesmo protocolo do que, numa primeira pesquisa, lhe foi enviado”.

Em 1969, Sena, que entretanto se tinha mudado para Madison, nos Estados Unidos da América, decidiu abandonar definitivamente o projeto. Saraiva sugere que a decisão terá sido tomada após ter visto publicados um plano “rabiscado por Fernando Pessoa (e que não recebera)” e inéditos em prosa, por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Sena lamentou a situação numa carta enviada à editora em outubro desse ano. Na missiva, datada de 6 de outubro de 1969, o então professor de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Wisconsin constatou que a sua desistência teria “por certo” agradado a “muitos”, mostrando-se “pronto a devolver imediatamente todo o material” recebido. “Há que compreender-se que não é possível fazer-se honestamente uma edição, quando são outros quem ‘decide’ o que será o LD ou não, sem que se receba informação completa sobre os originais existentes. Nem é possível fazer-se por cópias feitas por outras pessoas, às vezes de manuscritos fragmentários ou de duvidosa leitura, por mais competentes e dedicadas que sejam essas pessoas”, escreveu.

Terminou assim a ligação do Jorge de Sena à publicação do Livro do Desassossego, que só voltou a referir numa última carta ao editor da Ática, datada de 1969. Sempre rigoroso, Sena fez votos de que a obra fosse editada “sem precipitação e com os cuidados que o caso requer”. O escritor não viveria o suficiente para assistir a concretização do seu sonho antigo — morreria em Madison em 1978, não sem antes participar no primeiro congresso de Estudos Pessoanos, realizado na Brown University, em Rhode Island, em 1977. Os pessoanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que esperavam ser os primeiros a realizar um evento do género, organizaram um encontro no ano seguinte. Sem saberem do simpósio da Brown, a iniciativa foi anunciada como o primeiro congresso internacional de Estudos Pessoanos. O anúncio foi corrigido quando se soube em Portugal do evento na Brown.

Bernardo Soares, "ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa", apareceu na segunda fase do "Livro do Desassossego", apartir de 1929

Finalmente: a primeira edição do Livro do Desassossego

Na “Nota acerca da preparação (continuação) da cópia do Livro do Desassossego”, publicada na Persona em julho de 1979, Maria Aliete Galhoz anunciou que o volume ia sair no outono desse ano, “se Deus quiser”. Mas a publicação acabaria por acontecer apenas em 1982, quase três anos depois, como informou a mesma revista: “O tão esperado Livro do Desassossego foi finalmente posto à venda, em dois volumes, lançados com um intervalo de meses. A edição é da Ática, e contém um estudo de Jacinto do Prado Coelho e notas editoriais assinadas por ele, que ordenou os textos, e por Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, que os recolheram e transcreveram”. A nota, publicada na secção de notícias do n.º 7 da Persona, de agosto de 1982, deu ainda conta da inclusão de uma ilustração de Mário Botas, “também responsável pela seleção das fotografias que reconstituem parte do mundo em que ‘viveu’ Bernardo Soares”.

A Persona é uma rica e importante fonte de informações sobre o que aconteceu ao projeto depois de Jorge de Sena desistir dele. A revista, pioneira na divulgação dos Estudos Pessoanos, acompanhou de perto a publicação da primeira edição do Livro. Criada em 1977 por Arnaldo Saraiva, fundador do Centro de Estudos Pessoanos na Universidade do Porto, a Persona reuniu durante os oito anos em que existiu os mais importantes especialistas em Pessoa, em Portugal e no estrangeiro, numa altura em que o nome do poeta começava a atravessar fronteiras. Foi um importante veículo de divulgação de textos inéditos, nomeadamente de trechos do Livro do Desassossego, antes da sua publicação em livro. Foi também responsável por dar a conhecer vários estudos fundamentais da área, como “O lixo/luxo de Bernardo Soares”, de Leyla Perrone-Moiséis, ou “O Livro do Desassossego — um breviário do decadentismo”, de Georg Rudolf Lind, ambos no n.º 8, de março de 1983.

A publicação destes ensaios aconteceu depois do lançamento dos dois volumes do Livro, que, como referiu a Persona, saíram com meses de intervalo. O primeiro terá chegado às livrarias no início de 1982. A ficha técnica refere que foi impresso em janeiro, nas oficinas Gráfica da Tipografia Macario, Lda., com sede na Rua Jorge Afonso, no bairro lisboeta de Santos. O segundo só terá saído no verão, com a impressão a acontecer em junho, de acordo com a respetiva ficha. Em agosto, os dois volumes encontravam-se já disponíveis. Pela primeira vez, o grande público tinha a possibilidade de aceder ao “grande ‘prosador’ Fernando Pessoa”, como referiu Arnaldo Saraiva, “ou a uma obra de fôlego (ainda que sincopada) e de tipo diverso dos contos, do ensaio ou do drama ‘O Marinheiro’” até então conhecidos.

"O 'Livro do Desassossego' não são vários livros, é um não livro. É um livro impossível."
Richard Zenith, editor do Livro do Desassossego

No prefácio, Jacinto do Prado Coelho esclareceu as decisões editoriais tomadas. Referindo que existem no espólio pessoano, entretanto transferido para a Biblioteca Nacional, onde ainda se encontra, algumas centenas de papéis referentes ao Livro do Desassossego, o editor explicou que apenas uma pequena parte tinha sido publicada em vida do poeta, optando-se “por apresentá-los nessa forma autorizada, tanto mais que existe, geralmente, no espólio, cópia do original enviado”. Quantos aos restantes, decidiu-se excluir “textos negligenciadamente expressos”, que tratassem de forma “incipiente” temas “que conhecem ao longo do Livro momentos de formulação muito mais feliz, que ainda por ser a sua decifração tão difícil que resultariam de leitura ininteligível”. “Alguns deles nem sequer levavam a indícula L. do D.”, apontou o editor.

Quanto à organização dos 531 trechos selecionados, “o problema mais delicado posto por esta primeira edição”, Prado Coelho disse ter optado por uma divisão “por manchas temáticas, sem vedações a separá-las, sugerindo nexos e contrastes pela simples justaposição”. A escolha, explicou o editor, pretendeu, por um lado, facilitar o trabalho dos estudiosos e, por outro, não prejudicar “o prazer de ler”. Ao mesmo tempo, procurou-se não trair “a índole da obra como livre sequência de impressões, diário naturalmente incerto e vagabundo, com uma ondulação e uma recorrência que devem dar testemunho de um espírito vário, sim, mas dominado por ideias, interrogações, vivências obsessivas”.

Prado Coelho admitiu que esta era apenas a sua interpretação pessoal e que não excluía outras formas de organização. Porém, para ele, não fazia qualquer sentido seguir a organização caótica do espólio ou uma ordem cronológica devido à dificuldade de datar muitos dos papéis. Os investigadores conseguiram datar alguns, baseando-se em coincidências físicas de papel e tinta de textos com cronologia estabelecida ou no material de escrita usado por Pessoa, mas Prado Coelho questionava-se se valeria a pena o esforço: “Nada nos garante que ele, chegado o momento, até à morte adiado, de proceder à organização do Livro, os submetesse [os trechos] a uma cronologia veraz, de historiador, que nem sequer a sua memória estaria apta a reconstituir; se resolvesse datar os textos, provavelmente fingiria uma cronologia, ajustada ao estatuto ficcional de Bernardo Soares”. Sabe-se hoje, que Pessoa fez disso prática recorrente.

Um outro texto do "Livro do Desassossego". com várias notas à margem de Pessoa

ESPÓLIO 3/BNP

A edição gerou muitas reações, algumas boas, outras nem tanto. Arnaldo Saraiva foi sobretudo elogioso na crítica que escreveu para o n.º 7 da Persona, apontando apenas alguns aspetos que considerou menos positivos, como a decisão de manter a ortografia de Pessoa, o que, na sua opinião, tinha mais vantagens do que desvantagens. Esta decisão foi muito atacada pelo crítico literário brasileiro Wilson Martins, que considerou, num artigo publicado a 11 de julho no Jornal do Brasil, que o critério adotado tinha transformado “ironicamente em escritor arcaico o poeta moderno e supostamente revolucionário”. Saraiva não se atreveu a condenar tão duramente os editores, que louvou pelo esforço, sobretudo Maria Aliete Galhoz, responsável pela recolha e transcrição dos textos “coadjuvada por Teresa Sobral Cunha”. O fundador do Centro de Estudos Pessoanos considerou igualmente acertada a escolha dos trechos a incluir, mas sugeriu que, no futuro, se acrescentassem outros, não expressamente atribuídos ao Livro do Desassossego. A afirmação de Saraiva revelou-se premonitória: esta seria a abordagem seguida por alguns editores posteriores, nomeadamente Teresa Sobral Cunha, que lançou entre 1990 e 1991 a sua própria edição. Com 748 trechos, é a maior alguma vez editada em Portugal.

As muitas vidas de um “livro impossível”

Richard Zenith publicou a sua edição do Livro do Desassossego em 1998, pela Assírio & Alvim. Foi a terceira a sair em Portugal. Vai atualmente na 11.ª edição, tendo a oitava introduzido várias mudanças, sobretudo ao nível das leituras, mas também no número de trechos. Tal como em tudo o que diz respeito ao Livro, a seleção dos excertos também é problemática, o que se reflete no número de textos, que varia consoante as edições. Apesar das diferenças, todas partem de um mesmo grande envelope (entretanto desdobrado em cinco no espólio da Biblioteca Nacional de Portugal), onde Pessoa reuniu centenas de textos que queria incluir no Livro do Desassossego. Estes trechos “são o núcleo forte” do Livro, como explicou Zenith. Fora deste envelope, existem algumas “centenas de outros textos com a indicação ‘L. do D.’ ou então sem indicação alguma, mas que têm uma menção pelo menos implícita da personagem de Bernardo Soares, por exemplo”.

Foi em torno deste conjunto de textos que o investigador trabalhou. Para a organização, Zenith decidiu seguir um modelo que tivesse em conta a vontade expressa de Pessoa, separando os trechos da primeira fase dos da segunda, que ocupam uma secção separada. “Num apontamento dessa segunda fase, Pessoa considerou a possibilidade de separar o que ele chamava os ‘grandes trechos’ com ‘títulos grandiosos’, como ‘Marcha Fúnebre do Rei Luís Segundo da Baviera’ ou ‘Nossa Senhora do Silêncio’, que têm esse caráter mais simbolista da primeira fase, ambientes estranhos, medievais, coisas etéreas, num outro livro, porque ele via a dificuldade em reunir tudo”, disse o editor e tradutor ao Observador, explicando que foi esse apontamento que o levou a criar uma segunda secção. “É uma hipótese. Não estou certo que tem de ser assim”, admitiu.

"Uma coisa é claríssima: Pessoa tinha consciência que essa segunda fase, a ‘vera psicologia’ de Bernardo Soares, era a fase forte. Tanto que ele pensava talvez relegar os grandes trechos, alguns deles enormes, todos da primeira fase, para outro livro."
Richard Zenith, editor do Livro do Desassossego

Ao fazê-lo, Zenith procurou também privilegiar a segunda fase do Livro do Desassossego. “Uma coisa é claríssima: Pessoa tinha consciência que essa segunda fase, a ‘vera psicologia’ de Bernardo Soares, era a fase forte. Tanto que ele pensava talvez relegar os grandes trechos, alguns deles enormes, todos da primeira fase, para outro livro. Ele queria privilegiar aquela segunda fase. A meu ver, é importante fazer isso numa edição — privilegiar essa personagem de Bernardo Soares e o mundo de Bernardo Soares, que é a Baixa lisboeta, e a sua psicologia”, defendeu. Uma abordagem muito diferente foi a seguida por Jerónimo Pizarro, que optou por uma ordem cronológica nas edições que publicou na INCM e na Tinta-da-China, em 2010 e 2013, respetivamente, apesar de todas as dificuldades na datação dos textos. Ao Observador, o investigador disse que nunca quis que a sua subjetividade, “num mundo tão subjetivo, construísse uma obra que já brilha pela sua própria subjetividade, mas que uma ordem mais objetiva, parcialmente possível, permitisse ler o Livro e ler Pessoa”.

“A certa altura, entendi que os textos não eram apenas uma sequência finita de palavras, mas também uma inscrição num suporte específico, num biblion, num córtex, e que deviam ser analisados nesse contexto material. Pessoa não deixou apenas textos, deixou textos com certas cores, em certos papéis, em certos envelopes, com certas características. Deixou uma coletânea de folhas que foram, são e serão uma fonte de inúmeros livros”, afirmou. “Tentei, como Luís Prista aquando da edição das Quadras ou Carlos Pittella aquando da edição do Fausto, pensar os papéis, e abandonar essa escola, que também foi a minha, do professor na Torre da Teoria, para o qual, a partir da Torre, todos os textos são iguais e foram feitos para o habitante dessa Torre. Quem tiver duas ou mais edições do Livro do Desassossego sabe que essa obra é múltipla em múltiplos sentidos… Sabe que existe um labirinto textual construído postumamente…”

Questionado sobre qual a vantagem de organizar uma edição cronologicamente, em oposição, por exemplo, a misturar trechos de diferentes fases, como fizeram alguns editores, Jerónimo Pizarro apontou que “a questão é que esses editores nem pensaram numa edição menos temática. A edição de 1982 termina com um índice ideográfico, que sugere linhas interpretativas. A edição de 1998 está muito colada a essa primeira edição e é realizada por um tradutor que queria dialogar com as quatro traduções inglesas de 1991. Ora, todo esforço vale a pena se o intuito é regressar às fontes”, defendeu. “No caso do Livro do Desassossego, a cronologia contribui para perceber a construção da obra, que foi redimensionada a partir de 1929, e para relacionar com maior precisão certos trechos do Livro com certos textos não pertencentes a essa obra.”

Em relação à seleção dos trechos, Pizarro procurou “destrinçar, abrindo uma discussão, os textos claramente atribuíveis ao Livro do Desassossego dos não atribuíveis a esta obra, anexando ainda os de atribuição hipotética”. “Entre 1982 e 2008 os leitores assistiram ao crescimento exponencial dessa obra póstuma. Fiquei espantado quando percebi que a edição de 1990-1991 tinha mais textos (ou trechos, uma palavra muito lusitana) do que a anterior, de 1982, que a edição de 1997 tinha ainda mais do que a precedente, e assim sucessivamente”, admitiu explicando que, nas suas edições, “o que se fez, a brincar com um poema de Álvaro de Campos (cujo título talvez seja póstumo), foi diferenciar três conjuntos textuais, a saber, aqueles designados como Clearly Campos, Clearly non-Campos e Maybe Campos. Pessoa precisa de editores mais capazes de duvidar das atribuições e com uma maior consciência paleográfica: um texto é uma constelação verbal, mas também é a sua materialidade”.

"Nunca quis que a minha subjetividade, num mundo tão subjetivo, construísse uma obra que já brilha pela sua própria subjetividade, mas que uma ordem mais objetiva, parcialmente possível, permitisse ler o 'Livro' e ler Pessoa."
Jerónimo Pizarro, editor do Livro do Desassossego

As edições de Richard Zenith e Jerónimo Pizarro são necessariamente diferentes, porque os editores encontraram diferentes soluções para os problemas que o Livro levanta. E todas as edições o serão, dada a impossibilidade de criar uma edição que seja definitiva. Mas com tantos livros diferentes, não terão os leitores dificuldades em perceber exatamente o que é (ou não é) o Livro do Desassossego? “A meu ver, faz parte do encanto”, respondeu Pizarro. “A obra não tem uma ordem; são as suas materializações no formato ‘livro’ que precisam de uma. Neste sentido, o que me faz confusão não são os infinitos ‘livros’ que a obra pode encarnar, mas a presença de certos trechos apenas numa edição específica e a transformação radical que já sofreram algumas passagens. Seria muito bom poder construir coletivamente um corpus textual mais consensual, quer em termos quantitativos, quer qualitativos. E para este fim o Arquivo LdoD, o projeto coordenado por Manuel Portela, pode ser decisivo, assim como um novo projeto que está a nascer desse projeto: o da receção crítica da obra.”

Já Zenith considerou positiva a existência de “várias edições, várias abordagens e várias maneiras de organizar o Livro”, defendendo que os leitores já estão habituados às várias maneiras de organizar o material. “Acho que já estão habituados ao facto de que Pessoa conseguia acabar poemas e trechos, por exemplo os do Livro do Desassossego, que são espantosos na sua beleza e originalidade de expressão, mas não tinha muito jeito para organizar um todo, grandes coisas. O facto de os textos do Livro do Desassossego estarem organizados de maneiras diferentes não tem tanta importância. Como tenho defendido, uma maneira ótima de ler o Livro é entrar ao acaso, em qualquer página. Uma edição com folhas soltas seria a edição ideal”, sugeriu.

Há, no entanto, uma edição que permanece incontornável — a primeira, publicada há 40 anos. “É um livro importantíssimo simplesmente porque disponibilizou esse grande livro, que é o Livro do Desassossego”, considerou Zenith, admitindo que é impossível não ter essa edição em conta quando se prepara uma nova. Na opinião do editor e tradutor, o seu grande contributo foi o estabelecimento da ideia de que o Livro do Desassossego é composto por fragmentos que não têm uma ordem certa. “Isso vê-se claramente na primeira edição, que era ainda mais fragmentária do que o livro realmente é, porque há vários trechos que foram publicados como se fossem dois, três, quatro. Marcou muito essa ideia muito da fragmentariedade e estabeleceu essa ideia do Bernardo Soares como autor predominante, digamos, que tem sido posto em causa.”

Para Jerónimo Pizarro, a primeira edição foi “a matriz da maior parte das posteriores. Teresa Sobral Cunha continuou, pelo menos entre 1982 e 2008, a reinventar essa primeira proposta. É possível que Richard Zenith não tivesse traduzido Pessoa se não tivesse lido Pessoa nessa edição”, sugeriu. “Trata-se de uma edição incontornável, que ainda hoje condiciona e determina muitas das leituras críticas de Pessoa. Afinal, marcou várias gerações e esteve no centro da consagração pessoana da década de 1980.” E foi nos seus moldes que o Livro do Desassossego, possivelmente a obra mais conhecida de Pessoa fora de Portugal, “chegou a ser um bestseller na Europa”. Tudo graças ao trabalho iniciado por Jorge de Sena — que não teve medo da “grande aventura” que “só os desonestos ou os loucos” se arriscariam a fazer — e completado por Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha e Jacinto do Prado Coelho.

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