A 2 de janeiro de 1910, Fernando Pessoa pegou numa folha de papel e escreveu um poema que assinou com as iniciais “V. G.”. Durante os primeiros seis meses desse ano, escreveria outros oito, todos do mesmo autor, Vicente Guedes. Sem textos que lhe fossem atribuídos antes do início desse ano, Guedes tinha, no entanto, surgido anteriormente noutros papéis do poeta — nas listas relacionadas com a Empresa Íbis, uma tipografia e editora que Pessoa tinha criado um ano antes com o dinheiro da herança da avó Dionísia. O projeto visava a publicação de escritores portugueses e a divulgação em Portugal de autores estrangeiros, procurando contribuir de forma relevante para o meio cultural português. Um desses autores era o próprio Guedes, que aparecia nas listas de Pessoa acompanhado por outras figuras do imaginário pessoano, como Charles Robert Anon ou Carlos Otto, anteriores surgimento dos três heterónimos.
Entre 1910 e 1920, quando desapareceu definitivamente do espólio de Pessoa, Vicente Guedes desempenhou vários papéis. Poeta, contista e tradutor ao serviço da Íbis numa primeira fase, foi depois autor de um diário que antecipou aquele que viria a ser o seu projeto final, o Livro do Desassossego, pelo qual é hoje sobretudo conhecido. Foi com o objetivo de mostrar a multiplicidade de projetos em que Guedes esteve envolvido durante os seus dez anos de vida, que refletem diferentes fases da criação literária de Pessoa durante esse período, que Nuno Ribeiro, Cláudia Souza e Paulo Borges organizaram o volume Escritos de Vicente Guedes, que reúne vários textos assinados por esta personalidade que, acreditam os investigadores, é importante para compreender o processo de criação dos heterónimos, que Guedes em parte já antecipava.
Esta não foi a primeira vez que os três investigadores, que trabalham juntos há dez anos no espólio pessoano, se debruçaram sobre um personalidade menos conhecida e com um papel mais secundário dentro do chamado “drama em gente”. Em 2018, lançaram, pela Âncora Editora, Raphael Baldaya — Fragmentos de uma personalidade pessoana. Dois anos antes, Nuno Ribeiro e Cláudia Souza organizaram um volume sobre Charles Robert Anon, publicado pela Apenas Livros. Os mesmos autores foram também responsáveis pela edição em 2014, nos Estados Unidos da América, de uma coletânea de textos de quatro “pré-heterónimos”: Alexander Search, Pantaleão, Jean Seul de Méluret e Charles James Search. Escritos de Vicente Guedes é, portanto, uma continuação do trabalho que têm vindo a desenvolver, que tem como principal objetivo dar a conhecer o “laboratório pessoano”, isto é, o trabalho feito antes do “dia triunfal” de 8 de março de 1914, quando, segundo a narrativa de Pessoa, surgiram Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
“Há alguns anos que trabalhamos juntos e acho que temos um anseio em comum — sair do lugar comum do Pessoa estudado, que é muito em cima dos três heterónimos”, começou por explicar Cláudia Souza, durante uma entrevista por videochamada com o Observador que juntou os três investigadores. “Quantas edições existem em Portugal do Campos, do Caeiro e do Reis? [A ideia] é mostrar um pouco o laboratório pessoano. Claro que é importantíssimo esse processo da heteronímia, mas para chegar esse momento existiu todo um laboratório e esse laboratório é muito esquecido, é deixado de lado. Esses outros ‘eu’ são fascinantes também”, defendeu a investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, para quem “a beleza de Pessoa” é também a forma como ia criando e organizando, “como estava articulando isso tudo. É essa despersonalizarão que é tão fascinante”. Paulo Borges, que tem procurado compreender Pessoa à luz da filosofia e das várias tradições culturais e de sabedoria da humanidade, acredita que existe “uma saturação dos Estudos Pessoas pelo centramento nos três heterónimos”.
“Até creio que se tenta espremer esses heterónimos para tentar dizer alguma coisa de novo, mas que nunca é novo. Anda-se um bocadinho a forçar”, disse ao Observador, considerando que “o que é inovador neste momento em termos de Estudos Pessoas é, a meu ver, por um lado a publicação de coisas que não estão publicadas e dar visibilidade a aspetos da experiência literária de Fernando Pessoa que não têm sido tão considerados e por outro abordar a produção poético-literária de Pessoa, dos seus heterónimos e das suas várias personalidades literárias numa perspetiva que não seja só literária, mas também filosófica”. E nesse campeonato, Guedes, “apesar do menor volume da sua produção, ainda assim oferece muitos motivos de interesse”, nomeadamente em dois aspetos que têm interessado muito o professor de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “A experiência heteronomia, como é que se articula no ‘devir’ pessoano, e relacionar a experiência pessoana, heteronímica mas não só, com as múltiplas tradições sapienciais da humanidade e com o que chamo a possibilidade de estados diferenciados ou alternativos de consciência.”
Ao serviço da Empresa Íbis
Vicente Guedes nasceu em 1909, num contexto muito específico da criação pessoana. Foi nesse ano que, com o dinheiro herdado da avó paterna, Dionísia Seabra Pessoa, que tinha morrido em 1907, que o poeta criou a Empresa Íbis, Tipográfica e Editora, que instalou no número 40 da Rua da Conceição da Glória, em Lisboa, após adquirir as máquinas necessárias em Portalegre. A íbis era uma ave pela qual Pessoa mostrava especial preferência, imitando-a para divertimento da família, em especial dos sobrinhos, filhos da irmã Teca. Chegou inclusivamente a assinar alguns poemas como Íbis e a escrever uns versos dedicados à ave, nos quais o sujeito poético assume que, quando vê “esta Lisboa”, pensa que gostava de “ser um íbis esquisito/ Ou pelo menos estar no Egito”.
Pessoa tinha inúmeros planos para a tipografia, nomeadamente a publicação de uma antologia de poetas portugueses e brasileiros e a tradução de vários escritores para uma coleção de literatura estrangeira. Estes planos seriam executados pelo próprio poeta, mas também por uma série de figuras que Pessoa imaginou como fazendo parte da empresa. Era o caso de Vicente Guedes, que começou por aparecer nas listas da Empresa Íbis ainda antes de assinar qualquer texto literário, o que, como já vimos, só aconteceu em janeiro de 1910. Essas listas, conservadas no espólio de Fernando Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e reproduzidas na edição de Nuno Ribeiro, Cláudia Souza e Paulo Borges, apresentam-no como poeta, contista e tradutor de autores como Ésquilo, Byron, Shelley e Robert Louis Stevenson. Os poemas que sairiam pela Íbis seriam talvez aqueles nove preservados no espólio com a assinatura de Vicente Guedes, uma vez que, como indicaram Nuno Ribeiro e Cláudia Souza na introdução, foram escritos no primeiro semestre de 1910, provavelmente com a empresa em mente.
Outros colaboradores da Íbis seriam os presumíveis irmãos Otto, Carlos e Miguel. O primeiro seria responsável pela tradução dos policiais de Arthur Morrison e o segundo autor de um “Tratado de Luta, sistema Yvetot”, que apareceu mais tarde assinado por Carlos Otto. Outros planos passariam pela publicação de dois jornais quinzenais, O Phosphoro e O Iconoclasta, adversos à monarquia, ao socialismo, ao anarquismo e ao catolicismo, de duas obras de Charles Robert Anon, outra personagem pessoana nascida ainda nos tempos da África do Sul, e de um romance da autoria de F. Nogueira Pessôa, Reacção. A maioria destes projetos nunca avançou — a Íbis dissolveu-se em 1910, calcula-se que devido à falta de jeito que o poeta tinha para os negócios. Alguns deles transitaram para a editora que Fernando Pessoa fundou nos anos 20, a Olisipo, que chegou de facto a funcionar, a editar livros e até a participar num escândalo em Lisboa, envolvendo obras de António Botto, Raul Leal, publicadas por Pessoa, e Judith Teixeira — a polémica da chamada “Literatura de Sodoma”.
Na opinião de Nuno Ribeiro, Cláudia Souza e Paulo Borges, a Íbis e as personagens que gravitavam em torno da empresa ocupam um papel importante no processo de criação daquilo a que Fernando Pessoa chamou o “drama em gente”. A crer no que o próprio disse a Adolfo Casais Monteiro na famosa carta sobre a génese dos heterónimos de 13 de janeiro de 1935, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos surgiram a 8 de março de 1914, ou seja, quatro anos antes do encerramento da tipografia. Contudo, por altura da Íbis, Pessoa, através dos seus vários projetos editoriais, concebeu algo que estava muito próximo do que viria a ser a heteronímia, como explicou Nuno Ribeiro ao Observador: “Na Íbis, houve como que um ensaio do que viria a ser o ‘drama em gente’. Ou seja, [Pessoa] construiu uma série de personalidades que conceberia como autores dessa empresa, com obras diferentes, projetos diferentes, estilos diferentes, tal como depois aconteceu com o ‘drama em gente’, com Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos”, afirmou.
A curta vida da Íbis fez com que a empresa fosse sempre incluída entre os muitos projetos empresariais falhados de Pessoa. Mas o papel desempenhado na criação do “drama gente”, salientado pelos especialistas na edição dos textos de Vicente Guedes, faz com que não seja assim tão insignificante como tem sido apontado. “Se a Íbis tivesse sucesso, porventura poderia não ter tanta importância quanto o seu fracasso e aquilo que deu origem a esse fracasso”, defendeu Paulo Borges, chamando a atenção para o facto de “o aparente fracasso das iniciativas humanas” poder ser “apenas aparente”. “Os chamados fracassos podem ter uma fecundidade que nos escapa completamente”, disse o professor da Faculdade de Letras de Lisboa. “Se a Íbis tivesse ido para a frente, podemos conjeturar que os heterónimos tal como os conhecemos hoje não existiriam, porque existiram outras personagens, outras obras”, afirmou Nuno Ribeiro. “Isto é uma conjetura, mas talvez se Fernando Pessoa tivesse chegado a realizar a Íbis, não teríamos o Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, teríamos o Miguel Otto, o Vicente Guedes e outras personalidades que ele concebeu como autores da Íbis.”
O escritor do desassossego
Vicente Guedes é também “uma personalidade interessante porque permite acompanhar diferentes fases da criação de Fernando Pessoa”. “Atravessando várias fases, permite-nos ver como é que uma personalidade literária que começa num período pré-heteronímia, em 1909, associado a um empreendimento que Pessoa chegou efetivamente a ter, a Empresa Íbis, foi tendo uma evolução no curso do tempo. Começou por ser contista, com projetos de tradução, e poeta. Numa segunda fase, encontramos um Vicente Guedes autor de um diário que já antecipava de alguma maneira aquilo que viria a ser o Livro do Desassossego, a tal ‘biografia sem factos’”, apontou Nuno Ribeiro. “Então, acompanhar Vicente Guedes e publicar Vicente Guedes é acompanhar diferentes fases da criação literária pessoa.”
Na opinião de Cláudia Souza, Guedes é reflete os “vários anseios de Pessoa”. “O Pessoa que quer ser um contista, o Pessoa que quer ser poeta, um Pessoa tradutor. Acho isso muito bonito”, admitiu a investigadora doutorada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, admitindo que apesar de estudar Fernando Pessoa há vários anos, o poeta nunca deixa de a surpreender. “Há dez anos que estou fascinada com Pessoa. Não paro de ler, de estudar e ele me surpreende, me arrebata, porque é um sujeito que nasceu numa época de um Portugal provinciano, por causa da época”, disse. “Era um cara que estava assim na ponta de tudo, sem Google. Estava lendo o que estava saindo, estava dialogando com o que estava acontecendo no mundo. E ele tem esse anseio da cultura portuguesa absorver isso pelo qual ele está fascinado, tudo o que ele está lendo. Então o Guedes vinha também nessa esteira. Quando apareceu o Guedes tradutor, ele vinha nessa esteira de conhecer as grandes obras, os grandes pensadores. O Vicente Guedes também traduz esse carácter civilizatório que o Pessoa tem, que é tão veemente nele.”
Por essa razão, os investigadores tiveram o cuidado de organizar uma edição que mostrasse “um Vicente Guedes plural”, com poemas, fragmentos do seu diário e as listas em que o seu nome surge. O critério seguido foi o da assinatura. “O nosso critério principal foi [colocar] os textos que tivessem explicitamente a assinatura de Vicente Guedes e isto por uma razão: por exemplo, nas listas, existem muitos textos com diferentes assinaturas e diferentes línguas, inclusivamente”, explicou Nuno Ribeiro. É o caso dos “Contos de um Doido”, que começaram por ser atribuídos a Charles Robert Anon e que incluem títulos associados a outras personagens, como “A Morte do Dr. Cerdeira”, que aparece numa lista de contos de Pero Botelho, ou “Um Jantar Muito Original”, que na lista de Guedes parece em português mas que no espólio de Pessoa está em inglês e com a assinatura de Alexander Search. “Ou seja, Pessoa enquanto não se decidia a publicar, ia experimentado diferentes projetos para organizar as coisas, diferentes assinaturas e até diferentes línguas.”, apontou.
“Fernando Pessoa tinha muitas ideias, que ia tendo e abandonando, e as listas, embora nos deem uma luz sobre os diferentes intuitos que tinha para diferentes obras, não podem ser por si só um critério de organização. Em última instância, a assinatura que está no texto é que tem de valer. Claro que na filologia as coisas são sempre muito complexas”, constatou. “Cada autor, cada edição, tem a sua própria orgânica, a sua própria lógica, e, no caso de Vicente Guedes, dado que é uma personalidade que está no cruzamento de muitos projetos, muitas assinaturas, muitas línguas, só faz sentido organizar aquilo que efetivamente tem o nome dele, senão correríamos o risco de publicar, por exemplo, ’Um Jantar Muito Original’ assinado pelo Alexander Search.”
Este foi também o critério seguido para os fragmentos do Livro do Desassossego reproduzidos no volume. Vicente Guedes foi o segundo autor do Livro, inicialmente assinado pelo ortónimo e depois por Bernardo Soares, a última personalidade a que o projeto foi atribuído, numa fase em que surgia identificado nalguns textos como “empregado no comércio”. “É importante perceber que, habitualmente, quando se fala do Livro do Desassossego fala-se de duas fases e nós esclarecemos na introdução que há três”, explicou o investigador do Instituto de Literatura e Tradição da Universidade Nova de Lisboa. “Há uma primeira em que Fernando Pessoa chega a publicar ‘Na Floresta do Alheamento’, na [revista] Águia, em 1913, em seu próprio nome. Portanto, o projeto começou por ser de Fernando Pessoa em seu próprio nome. Numa segunda fase, sim, encontra-se evidências no espólio de Vicente Guedes enquanto autor do Livro do Desassossego. Essas evidências não passaram do papel para a publicação, mas existem e mostram que, entre 1915 e 1920, há um Vicente Guedes autor do Livro do Desassossego. Depois, entre 1921 e 1928, Pessoa não escreveu mais trechos e, em 1929, publicou alguns em nome do Bernando Soares, mas assinou com o seu próprio nome. Essas são as três fases.”
Guedes deixou o Livro em 1920, mas os especialistas consideram importante incluir os excertos que têm o seu nome, porque “a maior parte dos estudiosos e pessoas que apreciam Fernando Pessoa mesmo não sendo estudiosos vêm Vicente Guedes associado ao Livro do Desassossego”. “Achámos interessante mostrar as outras dimensões dessa personalidade que são menos conhecidas. Existem, fala-se [nelas], mas é sobretudo em manuais de caráter geral. A professora Teresa Rita Lopes fala [em Guedes] no Pessoa por Conhecer; na Teoria da Heteronímia [de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith], existem menções ao Vicente Guedes, mas nas suas múltiplas dimensões; e no recente livro Eu Sou Uma Antologia: 136 Autores Fictícios, de Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari, aparece também o Vicente Guedes nas suas múltiplas dimensões. Mas apesar de tudo faltava uma edição que autonomizasse o Vicente Guedes dessas coletâneas e que mostrasse que efetivamente ele teve uma obra autónoma com projetos autónomos.” Até porque, ao contrário de outras personalidades secundárias, Guedes concluiu poemas. Não deixou apenas rascunhos ou fragmentos. Para Nuno Ribeiro, isso “mostra que Fernando Pessoa já estava a pensar numa dimensão eventualmente publicável”.
Além de traduzir “muitos anseios do Pessoa”, Vicente Guedes é também um “retrato de um homem pós-moderno, que é um homem estilhaçado. Não é ele, já é outro fazendo isso. Isso é fascinante, porque isso é a pós-modernidade. Ninguém é uma pessoa só e a gente já sabe isso”, disse Cláudia Souza. “O Pessoa faz-nos também sentir confortáveis com esse estilhaçamento do eu e a beleza do Guedes está aí, mostra-nos isso, para termos orgulho disso também, desse desencontro que temos connosco o tempo inteiro.” Algo que o estudo de Paulo Borges, que conclui a edição, mostra “muito bem”. “Nos temas que Vicente Guedes vai abordando, já se encontra a génese de muitas das temáticas que vão estar presentes ao longo da obra de Fernando Pessoa. [Por exemplo,] o tédio que ja começa a aparecer na poesia em 1910. O primeiro testemunho de que se tem a certeza de uma data, que é de 1910, [o poema ‘Nunc est bibedum’] já é sobre o tédio, que há-de ser uma das temáticas do Livro do Desassossego. Este é apenas um dos exemplos, mas também, por exemplo, outras dimensões de que o professor Paulo Borges fala, a dimensão da ausência de identidade como possibilidade de outra forma de realidade ou mesmo da pluralidade”, afirmou por sua vez Nuno Ribeiro.
Para Paulo Borges, é precisamente essa pluralidade que é o mais fascinante. “Onde nós pensamos haver uma pessoa, na verdade há um espaço livre, sem limites, sem definições. Esse espaço é uma espécie de terreno aberto, fecundo, para que surjam várias configurações do eu”, disse ao Observador. “O que é característico de Pessoa, e que também encontro muito nos textos de Vicente Guedes, é que, por contraste com as tradições de sabedoria da humanidade, essa experiência não é vivida como uma experiência pacificante e libertadora. É uma experiência que angustia, que causa horror.” O tema do horror está muito presente na produção literária de Guedes, através de “uma experiência que faz o autor duvidar da sua sanidade, da sua normalidade”, uma preocupação que a personagem partilhava com o próprio Pessoa, que procurava “saber até que ponto a sua genialidade não era uma forma de patologia”.
Na opinião do professor de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa isso “não deixa até de tornar ainda mais significativo e de algum modo irónico que hoje haja um psicoterapeuta e psiquiatra, Richard Schwatz, que propõe uma teoria da personalidade que considera uma patologia e um desvio da norma a suposta unidade do sujeito, a suposta identidade única, ao passo que a multiplicidade interior — o politiquismo, como digo a respeito de Vicente Guedes — é considerado natural e normal. Curiosamente, esse Richard Schwatz, num livro muito recente, cita Fernando Pessoa como um dos exemplos na literatura do que ele propõe ser a normalidade do ser humano na sua complexidade e na sua pluralidade. Um psicoterapeuta aponta Fernando Pessoa como exemplo do que seria natural em nós, quando Fernando Pessoa viveu isso sob o signo da suspeita de haver na sua genialidade uma ponta de loucura ou mesmo uma patologia”.
Isso também é indicativo de que Pessoa não deixava de estar condicionado por “um certo paradigma” de normalidade, “nomeadamente o paradigma da identidade única, que Pessoa subverteu, obviamente. E creio que Vicente Guedes oferece-nos material muito interessante para entendermos essa subversão. É muito isso que me interessa nele, a experiência do vazio polipsíquico, mas sempre com aquela tónica de é uma experiência de um mistério que há em nós, mas um mistério que faz temer e tremer. Que ao mesmo tempo fascina e horroriza. Em Pessoa, há sempre essa experiência ambivalente da experiência do vazio interior, — coisa que também horroriza e que por isso não é pacificante. É desassossegante e por isso é um desassossego”. Uma palavra que parece ser central quando se fala de Guedes: “Nas suas múltiplas fases, e desde a sua génese, Vicente Guedes foi sempre um autor do desassossego, por isso não é estranho que ele tenha chegado a ser o autor do Livro do Desassossego”, comentou Nuno Ribeiro.
Cláudia Souza acredita que esse “horror” tem também a sua “beleza”. “Tem uma corrente muito forte que diz que temos de estar felizes o tempo inteiro, que é saudável ser feliz o tempo inteiro, e não é assim. O desencontro também é muito produtivo. A melancolia também é produtiva. Acho que é esse é um dos grandes ensinamentos dessa polissemia pessoana. Pessoa vivia muito angustiado com essa questão da loucura. Conviveu com a avó Dionísia, que era mesmo louca e tinha crises. Imagine, Pessoa em criança. Devia ser extremamente sensível, aquilo deve tê-lo marcado”, lembrou a investigadora. Mas a loucura, tal como o fracasso, também pode dar frutos — e a Íbis é um símbolo disso mesmo. “O empreendimento da Íbis nasceu precisamente de uma herança dessa avó. Um dos projetos para reunir os contos de Vicente Guedes chamava-se ‘Contos de um Doido’”, apontou por sua vez Nuno Ribeiro, referindo que as “temáticas do desassossego, mas também do sonho, do vazio, do desencontro consigo próprio, da questão da loucura, da genialidade — tudo isso teve a génese no Vicente Guedes e depois acabou por transbordar em múltiplas [personalidades]. Ou seja, Vicente Guedes é de alguma forma representativo de muitas das dimensões que são significativas na obra de Fernando Pessoa.”
Este “significativo” Vicente Guedes “morreu para a escrita pessoana” em 1920, “naquela fase em que se atribui de uma maneira consensual o Livro do Desassossego a Vicente Guedes”, apontou Nuno Ribeiro. Para Cláudia Souza, isso é também “interessante”. “Ele surgiu em 1909 com a Íbis e foi até 1920. Até acompanhou um pouco o período heteronímico”, lembrou a investigadora. “Há muitas personalidades pessoanas que vão aparecendo e desaparecendo, às vezes existe um escrito, dois, mas Vicente Guedes tem esse fôlego, de 1909 a 1920. Ele atravessou com Pessoa um bom período. Esteve ali, no horizonte.” E só por isso, vale a pena falar nele.