Estavam todos em família. Corria o mês de maio de 2015 e estava prestes a começar uma cimeira para sentar à mesma mesa, em Riga, os países da União Europeia (UE) com outros do Leste Europeu. No ato de receção de cada um dos líderes nacionais, havia, ainda assim, uma família que, entre todas as que dividem a política europeia, sobressaía: a do Partido Popular Europeu (PPE). É que ali, a receber os convidados, estavam apenas membros desse grupo de centro-direita: a anfitriã e primeira-ministra da Letónia, Laimdota Straujuma; o Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk; e o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. Vindo do fundo, a dada altura, aproxima-se um quarto membro: era Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, que lá vinha. Apercebendo-se disso, Jean-Claude Juncker pede a atenção da primeira-ministra letã e, já a rir, diz-lhe:
— Aí vem o ditador!
Ainda Laimdota Straujuma se ria da tirada do homem mais importante de Bruxelas, já ele usava a mão direita para apertar a de Orbán. “Ditador”, repetiu Jean-Claude Juncker, em jeito de “olá”, avançando com uma chapada amigável na cara do primeiro-ministro húngaro. Ao lado de ambos, Laimdota Straujuma lançava uma gargalhada nervosa e o polaco Donald Tusk sorria, benevolente.
À altura, era tudo uma piada. Agora, porém, é um caso sério — e pode ter consequências já esta semana. Esta quarta-feira, 20 de março, os partidos do PPE juntam-se para uma reunião em Bruxelas, onde o tema quente é a possível suspensão ou até expulsão do Fidesz , o partido de Orbán, daquela que é, ainda, a maior e mais influente família política na UE. Será o auge de um divórcio que começou quando o Governo húngaro espalhou cartazes por todo o país com a cara de Jean-Claude Juncker e do multimilionário e filantropo húngaro-americano George Soros. Na legenda, lia-se: “Você também tem o direito de saber o que Bruxelas está a preparar!”.
O cartaz, que mereceu tanto acusações de euroceticismo como de antisemitismo (George Soros é judeu), foi criticado por várias vozes europeias — mas continuou a merecer a condescendência do Presidente da Comissão Europeia. “Já chega!”, disse Juncker num evento em Bruxelas, de acordo com o Politico. “Estou muito surpreendido por ver estes cartazes repletos de ódio espalhados pela Hungria. Mas eu não vou ceder, eu não sou assim. Quero ser o oposto disso. Na Europa, não há progresso se as nações estiverem a lutar umas contra as outras. Não há progresso se houver ódio no mundo. Já tivemos isto na Europa. Já chega!”
Se Jean-Claude Juncker demonstrava pouca vontade de avançar para qualquer tipo de quezília, outros fizeram-no sem hesitações. E é aí que chegamos à reunião do PPE desta quarta-feira, com o tema quente da possível suspensão ou expulsão do Fidesz a ser levado a debate por vários partidos de centro-direita, vindos de países de pequena e média dimensão da UE. Além do PSD e do CDS, também fizeram parte dessa iniciativa os membros do PPE de outros países, como a Bélgica, Finlândia, Grécia, Holanda, Irlanda, Lituânia, Luxemburgo, Noruega ou Suécia.
O fim da tolerância perante abusos sucessivos
“Até agora tinha havido alguma capacidade de moderar o Fidesz dentro do PPE, mesmo que isso nos obrigasse a alguma ginástica”, explica ao Observador fonte do PPE. “Mas agora chegou o momento em que a tolerância não pode ir para lá de determinados limites e, aí chegados, temos de clarificar as coisas.”
A todos os partidos que querem agora discutir o futuro do Fidesz no PPE, Viktor Orbán deixou uma mensagem no jornal alemão Welt. “Nem toda a gente entende isto, mas, na sua literatura académica, Lénine chamava a pessoas assim de ‘idiotas úteis’”, disse o primeiro-ministro em entrevista. “Enquanto pensam que estão a lutar numa batalha intelectual, estão, na verdade, a servir os poderes que servem os interesses dos nossos adversários.”
Está visto que, nesta família, já não há razões para sorrisos largos, piadas ou grandes abraços. Mas, na verdade, há muito que a situação não é totalmente fácil ou pacífica entre os vários membros da família PPE — inclusive quando, naquela postura que lhe mereceu acusações de estar alcoolizado, Juncker cumprimentou Orbán daquela forma, em maio de 2015.
Anos antes, em fevereiro de 2012, o Parlamento Europeu já tinha aprovado um relatório onde eram colocadas várias reticências sobre o cumprimento dos direitos fundamentais na Hungria, com alertas para o perigo que enfrentavam a independência dos tribunais, o bom funcionamento eleitoral e também a liberdade dos media. E em 2013, o Parlamento Europeu voltou a aprovar um novo relatório, este redigido pelo então eurodeputado Rui Tavares, onde eram aprofundadas as mesmas críticas.
Mais recentemente, em setembro 2018, perante um novo relatório, uma maioria de 448 eurodeputados, frente a 197 que estiveram contra e 48 abstenções, aprovou a aplicação do Artigo 7º do Tratado da União Europeia, que suspende alguns dos direitos de um Estado-membro. As falhas apontadas varriam a vida socio-política da Hungria de uma ponta à outra: corrupção, liberdade judicial, liberdade de expressão e de imprensa, liberdade académica ou direitos das minorias e dos refugiados, entre outros tópicos ali levantados.
Em todas estas votações, o crescendo de partidos e eurodeputados do PPE que se juntaram às vozes críticas da Hungria de Orbán foi claro. “O problema aqui é uma questão de princípio. Não podemos estar ao lado de um elemento que não respeita o Estado de direito”, diz uma fonte do PPE.
“Isto é a demolição do Estado de direito na Hungria”
Devagar, passo a passo, mas de forma imparável. É dessa forma que Péter Balázs, ex-comissário europeu e ministro dos Negócios Estrangeiros no último governo antes de Orbán, explica ao Observador como tem acontecido aquilo que diz ser “a demolição do Estado de direito na Hungria”.
O primeiro passo, adianta, foi a lei da imprensa. Essa legislação, aprovada no início de 2011, definiu que todos os órgãos de comunicação social podiam ser multados até 700 mil euros, caso o seu trabalho fosse determinado como “parcial” ou “insultuoso” para um determinado grupo pela “maioria” — e a julgar essa “parcialidade” passou a estar um órgão selecionado pelo Governo.
O segundo passo, explica o ex-governante e atual professor na Central European University (CEU), foi a aprovação da Constituição de 2011 — apenas possível porque o Fidesz e os seus partidos aliados controlaram logo, desde 2010, mais de dois terços do parlamento. “Tudo isso permitiu-lhe chegar a uma nova lei eleitoral, limites aos juízes, corte dos poderes do Tribunal Constitucional, exercer pressão nas ONG e até expulsar do país a sua melhor universidade”, referindo-se à CEU, fundada por George Soros, em Budapeste, em 1991.
Na CEU, ofereciam-se diplomas norte-americanos e húngaros, uma vez que a universidade era legalmente sediada nesses dois países. Porém, ao abrigo de uma lei recentemente aprovada, a CEU passou a só poder emitir diplomas húngaros (quando a grande maioria dos alunos procura os diplomas norte-americanos), afastando, na prática, a universidade de Budapeste. Desde então, o grosso dos seus cursos e operações acontece em Viena.
“O Fidesz e Orbán estão a distanciar a Hungria cada vez mais das normas europeias, do Estado de direito, e isto é tudo, claro, contrário aos valores do PPE”, diz Péter Balázs, independente que foi comissário europeu no tempo do socialista Romano Prodi e ministro no último governo socialista húngaro. “O PPE tem de reconhecer que isto já não é o PPE.”
Quando perguntamos à jornalista Anita Komuves de que forma é que a opinião pública húngara está a acompanhar o tema da possível expulsão do Fidesz, a resposta inicial é um sincero “não sei”. E isso deve-se, em grande parte, a um simples facto: “Os media são totalmente controlados por Orbán”.
De acordo com um relatório do Reuters Institute e da Universidade de Oxford (onde Orbán, enquanto jovem, estudou durante poucos meses, ao abrigo de uma bolsa patrocinada, ironicamente, pela fundação de George Soros), mais de 500 meios de comunicação húngaros — somando televisões, rádios, jornais nacionais, locais e também online — pertenciam a oligarcas ligados a Orbán.
Além daqueles media que estão nas mãos dos homens mais ricos da Hungria — alguns dos quais enriqueceram durante os tempos de Orbán, como é o caso do seu amigo de longa data Lőrinc Mészáros, canalizador que deu em milionário com mais de 200 empresas sob o seu comando —, há também aqueles que vão desaparecendo por não serem favoráveis ao statu quo de Budapeste.
“Todos os meses há jornais a serem fechados, a grande maioria por razões políticas. O governo conseguiu, em muitos casos, distorcer o mercado de publicidade, já que as empresas estatais são os maiores compradores de anúncios”, diz Anita Komuves. “Com isto, os jornais independentes passaram a ter zero publicidade, porque nem as empresas privadas se arriscam a que os seus anúncios sejam vistos em páginas de jornais pouco favoráveis ao Orbán.”
Até 2016, Anita Komuves trabalhou para o jornal Népszabadság, uma publicação alinhada à esquerda que habituou os seus leitores (e o governo húngaro) a várias investigações em torno de Orbán e dos oligarcas em seu redor. Em 2014, o Népszabadság foi comprado, juntamente com outras publicações do grupo Mediaworks, por um fundo de investimento austríaco, o Vienna Capital Partners, com alegadas ligações a Orbán. Dois anos depois, em outubro de 2016, o jornal foi encerrado. Semanas depois, o grupo foi comprado pela holding húngara Opimus. Holding essa da qual Lőrinc Mészáros, o tal canalizador multimilionário e bom amigo de Orbán, é o maior acionista.
“Quando se vive neste país e se trabalha numa redação, sabe-se muito bem quem é o oligarca que faz as chamadas para lá”, explica. Atualmente, Anita Komuves trabalha no Atlatszo, jornal independente feito por uma equipa de apenas seis jornalistas. Sem um oligarca ou grande capitalista a pagar as contas e sem com receitas de publicidade, o jornal mantém-se apenas com donativos dos leitores, que dão dinheiro diretamente ao projeto ou que descontam 1% da sua declaração do IRS em seu favor. “Funciona bem, mas somos muito pequenos”, sintetiza a jornalista.
Orbán está arrependido ou a pedir que o empurrem para novos voos?
Não é certo qual será o desfecho da reunião do PPE e que futuro é que ela trará para o Fidesz e para Orbán. Também será difícil entender, antes de mais, o que vai na cabeça do primeiro-ministro da Hungria. “Uma coisa que muitos húngaros, em particular os jornalistas, já perceberam é que é impossível entrar na cabeça de Orbán. E o problema é que muitas coisas são decididas na cabeça dele. Por isso, temos por vezes de chegar à conclusão de que não sabemos nada”, diz Anita Komuves.
Nos dias de antecipação da reunião desta quarta-feira, Orbán enviou cartas a todos os líderes partidários que assinaram as cartas a pedir uma votação para suspender ou expulsar o Fidesz. E, nelas, fazia algo que lhe é raro: pediu desculpas.
Na carta que enviou ao presidente dos belgas do CD&V, o cristão-democrata Wouter Beke, Orbán sublinhou que havia “desentendimentos importantes” entre aquele partido e o Fidesz “em temas como a imigração, a proteção da cultura cristã e o futuro da Europa”. Porém, mais à frente, teve em conta o desagrado levantado pela liderança do PPE pelo comentário dos “idiotas úteis”.
“Aquilo é, na verdade, uma citação de Lénine, com a qual eu quis criticar determinadas políticas e não certos políticos”, explicou-se. “Por isso, quero apresentar as minhas desculpas, se a minha citação o ofendeu pessoalmente. Desejo-lhe saúde e muito sucesso nas suas funções de alta responsabilidade.”
Ik aanvaard verontschuldigingen, maar het ging hier niet over belediging tav Wouter Beke. Wel over respect voor Europese waarden en betere samenwerking om buitengrenzen EU te bewaken. Daarin zie ik geen wijziging. @cdenv blijft op lijn: geen plaats voor Fidesz binnen EVP. pic.twitter.com/QdMGcvvQgJ
— Wouter Beke (@wbeke) March 14, 2019
Neste gesto, Anita Komuves vê uma última e genuína tentativa de Orbán se manter na maior família política — pelo menos até às eleições para o Parlamento Europeu, a 26 de maio — do continente europeu. “Penso que ele quer ficar, de maneira a ser mais influente. Estar no PPE significa mais influência. Se ele for para os extremos, para a extrema-direita, terá menos poder. E o facto de ele ter pedido desculpa tem significado. Orbán nunca pede desculpa”, sublinha a jornalista húngara.
Péter Balázs acredita agora que Orbán “está em apuros”. “Ele não calculou bem a sua margem de manobra. Ele tinha duas opções, como assumiu publicamente: ou mudava o PPE ou ia fundava uma nova família política. Neste momento, parece que não vai conseguir mudar o PPE, porque eles não estão dispostos a ir tão para a direita”, explica o ex-diplomata e académico.
O Observador contactou o Fidesz para a elaboração deste trabalho. Em resposta, a equipa de assessoria daquele partido no Parlamento Europeu recusou-se a falar, referindo que a situação “é, para já, muito volátil”.
Fonte do PPE diz ao Observador que às certezas dos partidos que assinaram as cartas a pedir o início deste processo junta-se, para já, o silêncio dos maiores partidos do PPE, como é o caso da CDU e da CSU (Alemanha), d’Os Republicanos (França) ou do Partido Popular (Espanha). “Estes todos estão, para já, numa posição mais de diálogo”, diz essa fonte. “Do outro lado estão os subscritores, que acreditam que já foram dadas várias oportunidades ao Fidesz para se retratar e que seria agora a altura certa para tomar uma atitude.”
A expulsão do Fidesz do PPE não seria, porém, um gesto sem riscos para os partidos do centro-direita. Já a pairar no ar está a hipótese de uma aliança de partidos de extrema-direita e soberanistas — juntando algumas forças como a Frente Nacional (França), Liga (Itália), PiS (Polónia), o PVV (Holanda) ou o Vox (Espanha) — com a participação também do Fidesz de Orbán.
Esta é, mesmo junto daqueles que defendem a sua suspensão ou expulsão, uma preocupação presente, como explica outra fonte do PPE. “Mas isto já chegou a um ponto em que não podemos estar calados”, diz. “Para nós, já chega.”